Canclini na Cátedra
Entrevista com Ahtziri Molina. Realizada presencialmente, na casa de Ahtiziri Molina, em Coatepec (Veracruz, México), e em um café em Xalapa (Veracruz, México), nos dias 02 e 03 de março de 2024
1º dia de entrevista
Sharine: Obrigada! Já nos conhecemos há dois dias. Não é muito, mas parece muito tempo. Já conhece um pouco meu trabalho. Eu sempre começo as entrevistas pedindo que as pessoas falem um pouco sobre sua trajetória, sobre o que fazem.
Ahtziri: Bom, eu sou socióloga. Também fiz o doutorado em sociologia. Desde a licenciatura, estive interessada em conhecer como é formada a comunidade artística, as implicações para seu trabalho, um pouco do que podem viver os artistas e como se estrutura o campo para que a sobrevivência do artista nesse espaço seja possível. Fiz o doutorado, também em sociologia, na Inglaterra e, quando voltei a trabalhar, vim morar em Xalapa. Antes trabalhei no CIESAS – Centro de Pesquisas e Estudos Superiores em Antropologia Social [Cidade do México]. Não fiquei. Vim para a Universidade Veracruzana, onde, em 2007, começamos um Programa de Pesquisa em Artes. Há pessoas formadas em artes, dança, música, artes plásticas e eu, que sou socióloga, para também termos uma visão das artes, de seu consumo, de sua produção a partir das ciências sociais. Estou na Universidade Veracruzana e, no que agora é o Centro de Estudos, Criação e Documentação das Artes, desde 2007. Lá, os temas com que mais venho trabalhando são, a partir da pesquisa: a estrutura da comunidade artística, o consumo cultural, principalmente dos estudantes, a “terceira função”, que é toda a extensão universitária e as políticas culturais. Esses trabalhos todos também têm me levado ao trabalho com gestão cultural, desde 2010. Montamos um seminário de pesquisa em gestão cultural em 2011, no Centro, com gestores e estudantes de pós-graduação. Fomos um dos primeiros espaços a começar a fazer pesquisa sobre gestão. Isso nos levou a ser parte e, finalmente, a que eu fosse a primeira presidente da Rede Universitária de Gestão Cultural do México. Pelo trabalho, porque agora sou a coordenadora do Centro, também sou presidente da Rede Latino-americana de Pesquisa em Artes.
Sharine: Que bom. É tanto de gestão quanto de pesquisa.
Ahtziri: Sim, a área de gestão termina no ano que vem e continuo sendo da área de pesquisa em artes.
Sharine: Você já conhece um pouco a minha trajetória. Este gráfico mostra a porcentagem da função cultura no orçamento de gastos do governo federal brasileiro. Estava muito baixo em 2020, quando tivemos toda a mobilização social pela Lei Aldir Blanc. Este gráfico apresenta uma comparação entre o investimento em saúde, que, claro, é alto, em educação, em que há mudanças, e em cultura, que é muito baixo no Brasil. Então, tivemos uma mobilização social com milhares de participantes, centenas de reuniões online para criar a Lei Aldir Blanc, medida emergencial que hoje está mudando um pouco as políticas culturais federais no Brasil. Esta é a comparação entre México e Brasil. Penso que está correta pelas atividades que vejo nos museus mexicanos, que são feitas com dinheiro público federal. Mas, com a pandemia e a Lei Aldir Blanc, isso mudou. O orçamento do Brasil está mais alto. Mostro somente o orçamento federal e somente a função cultura. Eu sei que há outras coisas. Mas, de tudo isso, o que mais me interessa é a mobilização social, os grupos que levaram a essas mudanças nas políticas culturais brasileiras. Gostaria de saber como os movimentos sociais, os movimentos dos artistas se relacionam com as políticas culturais aqui no México. Como eles veem as instituições?
Ahtziri: É uma relação complicada por muitos motivos. A organização social a partir de associações ou de regiões pode ser muito difícil de articular. Quando se articula é para atividades como as que vimos hoje [refere-se a um encontro de cultura com a participação de Consuelo Sáizar, que seria indicada à Secretaria de Cultura caso a candidata à presidência da República Xóchitl Gálvez vencesse as eleições de 2024]. Deve-se fazer algo para conscientizar, para chegar a um objetivo muito específico. Mas dificilmente as pessoas se envolvem com questões de mais amplo alcance e complexidade, como seria justamente ir ao Parlamento, falar com algum deputado, etc. Esse tipo de situação é mais complicado. Em algumas ocasiões, tem havido deputados dispostos a estabelecer esses diálogos e, até mesmo, a conduzir o processo. Estou lhe dizendo mais no âmbito do estado de Veracruz que da federação. Essa é outra coisa: se não vivemos na Cidade do México, acompanhar o que acontece na capital é muito mais complicado. Se vai acontecer uma manifestação, se houve uma reunião, se haverá tal apresentação, por mais que lhe digam alguns dias antes, como você se movimenta, como chega até lá, com que recurso? Aqui há uma lei geral, uma lei estadual de cultura, que foi emitida em 2010. Foi porque uma deputada, que é próxima ao setor cultural, em seu momento, cumpriu uma de suas promessas de campanha, que era fazer uma lei de cultura. Ela ganhou em um período de um governador muito desacreditado [Fidel Herrera Beltrán], um governador terrível, que era associado ao narcotráfico, que desfalcou o estado, que provocou destruições na natureza, que vendeu coisas do estado, etc.
Ela estava no partido desse governador. Então, havia certa reticência. Mas ela também era parte do setor cultural. Sua formação é em educação das belas artes. Então, disse: “eu quero, mantenho o compromisso de trabalhar por esta lei”. Estivemos trabalhando em um grupo. Era uma lei pela democratização da cultura, tinha isso como base. E foi feita a lei, mas não foi regulamentada. Isso quer dizer que a lei é letra morta. Então, há intenções, há posturas, por parte de alguns, mais do que dos prefeitos, às vezes dos prefeitos, mas dos “síndicos”, que são os que fazem a contrabalança no interior dos “ajuntamentos” de outros partidos e que têm uma capacidade de decisão. Esses são os “síndicos”, os deputados que permitem que sejam tomadas certas decisões ou que sejam apoiadas certas coisas. Aqui, por exemplo, podem dizer que já existe uma lei de cultura, mas não há regulamento. Ficamos em uma situação pior. Em algum momento, Eduardo Nivón Bolán dizia que era uma das leis estaduais mais completas que conhecia. Estamos falando de 2008, 2010. As coisas mudaram e, agora, já não seria o mesmo. Digamos que as iniciativas cidadãs… Há muita relutância em se aproximar dos espaços políticos. Os espaços do que era o Instituto de Cultura, que agora é a Secretaria de Cultura, ou os cargos de cultura na Secretaria de Educação são vistos como troféus políticos. Então, como esta é uma comunidade pequena, seu amigo ficou ali e pode lhe oferecer algum apoio ou roubou sua namorada e, portanto, você não pode entrar lá. Nas comunidades menores, você conhece muitas pessoas há muito mais tempo. Portanto, as relações também podem ser mais complexas.
Sharine: Por que não há essa relação com a sociedade civil? Não interessa, é difícil por parte do estado? O que acontece?
Ahtziri: Eu acho que o executivo não está muito interessado em atender a uma sociedade civil demandante, e sim em cumprir seu programa de governo que, muitas vezes, deriva do programa de governo estadual e está em consonância com a federação, com o governo federal. Tanto o prefeito como o governador do estado de Veracruz entraram no mandato no mesmo dia e são do mesmo partido [Morena]. Então, o governador Cuitláhuac [García Jiménez] segue muitas pautas da federação. A cultura e outras, mais ou menos, seguem essas pautas. Agora, o interessante é que esse governador tem um irmão que é violinista e que toca na Orquestra Sinfônica de Xalapa. Ele está impulsionando, por sua parte, ou conseguindo recursos por parte do governo, de modo mais vertical. Há mais clientelismo. Isso mantém toda uma parte da família que tem um peso. Mas ele tem conseguido recursos para certas atividades culturais, uma delas é a cinematográfica. Há pouco tempo estreou um filme, Luna Negra [Tonatiuh García, 2023], que teve a ver com ele, que mobilizou recursos, entre outras coisas. Ele faz porque gosta, mas também porque seu irmão agora é o governador. É um assunto em que a família prevalece. Não é uma política aberta e que está sendo feita para todos. A própria secretária de cultura é vizinha do governador, moram na mesma rua e se conhecem desde que eram crianças. Esse foi um critério importante para escolhê-la. Ela já trabalhava no IVEC [Instituto Veracruzano de Cultura], mas não era alguém que estava entre os cargos mais altos ou que tivesse uma presença nacional. Agora é a secretária de cultura. Há vários cargos… Em geral, não é que seja somente neste governo, mas é assim que acontecem as coisas, por meio de clientelismos e de pessoas que sabem como se mover, como ficar parado, que são as que levantam as pautas e tudo isso. Há outros amigos e, também, quem chega a propor projetos de como fazer coisas.
Sharine: No Brasil, algumas políticas são em rede, como o sistema de saúde, que é universal e gratuito. É um pouco diferente do que acontece aqui no México. O programa de educação também funciona em rede. Há um projeto, desde os anos 1960, para fazer um Sistema Nacional de Cultura no Brasil, que funciona assim: o governo federal repassa os recursos para os estados e os municípios para que façam as políticas locais, os editais etc. Mas isso nunca funcionou. Desde 2012, está na Constituição Brasileira, mas não funciona porque não há recurso e há uma discussão: qual será o papel do governo federal, qual será o papel do governo estadual e do governo municipal? Como será isso? Claro, na saúde é mais fácil de estabelecer… Na educação, o ensino básico é do município, o ensino médio é do estado e há universidades federais e estaduais. Na cultura, como se divide? Eu li que há algumas iniciativas no México também, para a federalização da cultura, como o apoio às comunidades. Gostaria de saber um pouco da história das políticas culturais em relação à federalização da cultura.
Ahtziri: No México também há três níveis de governo, federal, estadual e municipal. Cada um toma decisões autônomas em seu nível, mas o que é certo é que, a partir dos editais, e dos modos como as coisas foram se organizando, há editais federais, gerais, digamos, como são os do Sistema Nacional de Creadores de Arte ou o sistema de jovens criadores, que são de caráter federal. Mas há também, por exemplo, os circuitos de teatro ou de dança, as redes por regiões. O governo federal, através da Secretaria de Cultura, lança certas bolsas específicas para os estados: festivais, fomentos às artes, à cultura popular, reforço à infraestrutura cultural, coisas assim. Quem administra esses recursos e decide quais projetos estaduais serão realizados são as entidades de cultura de cada estado, sejam institutos, conselhos ou secretarias. Mas, muitas vezes, a grande maioria dos recursos é de caráter federal, que são repassados aos estados. Acho que esta é uma palavra-chave do que acontece aqui: o repasse. Isso significa que o estado vai administrar e decidir que políticas culturais há aqui, mas vai responder a lógicas federais quase sempre. O município tem recursos pequenos que, muitas vezes, também vêm da federação ou do estado. Bom, vêm do estado, mas incluem dinheiro da federação. Esses pequenos recursos são justamente o que você me mostra sobre o que se considera prioritário: saúde, educação não tanto, porque isso também tem um caráter estadual, mas ruas, bueiros etc. Esse tipo de serviços locais.
Sharine: Mas não para a cultura?
Ahtziri: Há alguns “ajuntamentos” que, quanto maiores, como o de Xalapa ou como o de Puebla, ou como o da Cidade do México, o de Monterrey, o de Guadalajara, mais lhe dedicam recursos específico. Alguns estados também alimentam seus institutos de cultura com recursos próprios. Mas quase tudo é transferido da federação. De fato, aqui, a casa de cultura não é do município, mas é organizada ou administrada pela Secretaria de Cultura do Estado.
Sharine: Há casas de cultura em outras cidades pequenas?
Ahtziri: Sim, em 1997, a primeira diretora do Instituto Veracruzano de Cultura, Ida Rodríguez Prampolini, teve uma visão interessante de como fazer as coisas. Em Xalapa, a oferta cultural de algum modo está coberta, ou a demanda de oferta cultural, porque há a Universidade lá estão o museu, a orquestra, o balé… Todas as diferentes entidades e os estudantes das faculdades. Mas isso não acontece em outras regiões do estado. Então, o que essa mulher fez em seu momento foi implantar casas de cultura em diferentes partes do estado, às quais levava oferta de oficinas ou de apresentações de pessoas que circulavam por diferentes locais. Fez 65 casas em 212 municípios. Quando ela chegou, havia cinco casas de cultura, algo assim. Então, decidiu pulverizar o recurso para que houvesse a presença de casas de cultura em muito mais partes do estado e não centralizado em Xalapa e Veracruz.
Sharine: Você está falando somente de Veracruz. Nos outros estados…
Ahtziri: Cada estado decide como lhe parece melhor. Alguns “ajuntamentos” podem ter sua própria casa de cultura. Xalapa, por exemplo, não tem casa de cultura como tal, tem o Centro Recreativo Xalapeño. Esse não tem o apoio do estado, e sim da cidade. Mas deve-se levar em conta que o governo do estado tem galeria, casa de cultura, pinacoteca em Xalapa. Então, para que querem casa de cultura?
Sharine: Sim, claro. Essa é uma comparação com o Brasil. A maior porcentagem de investimento na cultura é dos estados e municípios, não do governo federal…
Ahtziri: Eu acho que aqui é justamente o inverso. Aqui seriam municípios, estados e federação .
Sharine: Sim, é o que tenho aqui. Não tenho dados dos municípios. Mas, aqui, 60%, mais ou menos, correspondem ao orçamento federal.
Ahtziri: E cada município destina mais ou menos, de acordo com as outras necessidades que tem.
Sharine: Claro, já conhecíamos nossa diversidade cultural no Brasil. É um tema de que falamos muito. Mas, com a Lei Aldir Blanc, tivemos a realidade dos municípios e dos estados. A maior parte das cidades não tem sequer uma secretaria de cultura. Tem algo como secretaria de cultura, educação e tudo…
Ahtziri: Turismo e esporte… Jovens e idosos e tudo o que couber vai aí.
Sharine: Não sabiam como trabalhar com o dinheiro federal ou não tinham pessoas para isso… Foi uma dificuldade no Brasil. Mas, além disso, havia uma questão. Diziam: “em nossas cidades não há artistas. Os artistas estão em São Paulo, no Rio de Janeiro. Aqui temos artesãos, outras coisas”. Claro, é um preconceito. Não é isso que acontece. Mas alguns discursos dos prefeitos eram assim. Há mais gráficos, mas eu escolhi estes. Nas grandes cidades, com mais de 500 mil habitantes, as secretarias investiram o dinheiro da Lei Aldir Blanc em teatro, dança, música. Também em manifestação tradicional popular, mas um pouco menos… Capoeira… Mas nas cidades menores, há artesanato, há manifestação popular também. É uma configuração diferente dos grandes centros. Além disso, há um crescimento da população que se diz negra, que se diz indígena e, também, que se diz evangélica… Há una disputa cultural no Brasil em torno disso. Então, para onde vai o dinheiro? Falo do Brasil para comparar… Como isso ocorre aqui no México?
Ahtziri: Eu acho que são usos diferentes dos recursos e são, portanto, respostas muito distintas. No nível federal, o uso dos recursos responde a duas lógicas: à manutenção e à eventual transformação dos programas de bolsas e de apoios que se formaram e que foram se construindo desde 1989, quando o CONACULTA [Conselho Nacional para a Cultura e as Artes] e o FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes] nasceram com essa lógica de seus programas, como seriam os jovens criadores, os criadores de arte, o apoio aos espaços, o PAICE [Programa de Apoio à Infraestrutura Cultural dos Estados], o PACMYC [Programa de Apoio a Culturas Municipais e Comunitárias], todos esses recursos que as pessoas sabem que, ano após anos, vão chegar e poderão ser utilizados. Essa é uma parte. Depois, há os projetos, que são a marca do governo, os que irão caracterizá-lo, o que deixarão de legado para a nação quando saírem. Isso pode ser, por um lado, os festejos do bicentenário que Felipe Calderón [presidente do México entre 2006 e 2012] fez ou as batalhas contra a fome e a violência, que fez Peña Nieto [presidente do México entre 2012 e 2018], ou a ideia do projeto Chapultepec e do Museu do Mamute no Tren Maya neste momento [governo de Andrés López Obrador]. Cada um teve seu projeto e sua marca. Parece-me que vão além da ideia das políticas culturais, ou contra a violência ou contra a fome ou em defesa da paz e dos direitos humanos. São projetos gerais que permeiam todo o governo federal.
Em âmbito estadual, muitos dos recursos já vêm carimbados aos Estados. São repassados com a mesma lógica: contra a fome, a favor da paz… Aí não há muita liberdade de ação. Os estados propõem algumas coisas de modo mais particular, a partir dos próprios preceitos, ou busca editais internacionais ou nacionais, como o das cidades criativas. Há um programa federal que se chama Pueblos Mágicos, que dá um selo a certos povos que tenham a lógica de serem muito bonitos para que o turismo chegue a esses povos. Povos mágicos, ou seja, se quiser conhecer um lugar rústico interessante, saberá aonde ir, porque há uma rede de povos mágicos. Você diz: “quero ir a este porque já sei que está garantido que é um bom lugar para visitar”. Então, em uma lógica de turismo, vende-se a cultura local, a parte tradicional. O que comemos agora é parte de uma marca de povo mágico, a banana, o feijão, o milho e como são preparados… Muitas vezes, nos menores lugares, e sobretudo quando há esta parte do atrativo, a parte dos recursos de cultura vai, efetivamente, ao turismo. Como nem sempre conseguem obter os recursos, isso é o que vendem, esse tipo de marca que vende o povo mágico. Muitas vezes destinam recursos a eventos, festivais… O festival do milho, o festival do tamal [prato típico mexicano, parecido com a pamonha], o festival da orquídea, do café… Portanto, mais do que oferta cultural permanente, que passará por oficinas, por atenção comunitária constante, tem a ver com atrair pessoas de fora para que venham ao povoado e possam vender mais feijão neste final de semana.
Sharine: Há cotas para indígenas, por exemplo, nos editais?
Ahtziri: Não sei. Parece-me que, por aí, mais do que cotas nos editais gerais, há editais específicos.
Sharine: Para arte indígena, por exemplo…
Ahtziri: Sim, línguas indígenas, por exemplo, coisas assim… Mas há apoio para as culturas populares. Acho que tudo entra, mais ou menos, num mesmo pacote, seja rock urbano ou artesanato ou expressão de danças tradicionais em povos indígenas.
Sharine: Se eu sou um produtor negro no Brasil, por exemplo, eu recebo uma nota mais alta no projeto ou coisas assim. Cada edital é diferente, mas há alguns mecanismos…
Ahtziri: Acho que não…
Sharine: O programa de cultura comunitária do México me interessa por alguns motivos. Eu pensava que fosse similar ao programa Cultura Viva, que temos no Brasil, e aos pontos de cultura. Célio Turino, que foi um dos criadores dos pontos de cultura, esteve aqui no México e publicou nas redes sociais… Mas acho que é um pouco diferente. Como você vê esse programa?
Ahtziri: Houve uma intenção no início do governo de repartir efetivamente os recursos e levá-los a locais menos acessíveis, principalmente locais que tenham relação com ruralidade e com populações indígenas, com populações de poucos recursos, até mesmo urbanas, e que oficinas e outras atividades fossem levadas para lá. Foi apresentado com alarido, mas nunca ficou muito claro o que seria e como seria articulado com o que já existia, nem com quem, nem como seria executado. Em seguida, veio a pandemia e houve menos possibilidades de estruturá-lo. Então, também gostaria de saber o que significa a cultura comunitária.
2º dia de entrevista
Sharine: Uma questão que me interessa muito é que, no Brasil, e eu vejo que aqui no México também, há muitas oportunidades nos editais… Os artistas demandam os editais, as bolsas e tudo isso é importante. Mas penso que pode aprofundar a precariedade artística. Gostaria de saber o que você pensa.
Ahtziri: Efetivamente, acho que a política das bolsas se contrapõe à possibilidade de pleno emprego. Oferece as condições para que a população dedicada às artes, e também a muitos outros setores, como a educação superior, a educação básica, dependa das bolsas para muitas coisas e de apoios estatais para seguir subsistindo em precariedade.
Há anos, com Carlos Salinas de Gortari [presidente do México entre 1988 e 1994], foi estabelecido o Programa de Solidariedade, que, em seu momento, mudaria de nome diversas vezes, mas mantendo a essência de chegar a setores populares e apoiar mães recentes ou mães solteiras, com bebês, para ajudá-las com nutrição para a primeira infância, ou pessoas em situação de vulnerabilidade, dar-lhes um piso de cimento ou algo assim. O que as pessoas declaravam desde os anos 1990 era que, para receber o apoio, precisavam ser muito pobres. Era assim que mencionavam, que dizer, mantendo esse status. Se alguém saía dos níveis, se já havia piso de cimento em casa, se havia passado do fogão a lenha para um fogão a gás, uma série de elementos, então saía do programa e já não lhe parecia tão interessante sair do programa. Portanto, as pessoas começam a encontrar o modo de manter-se também dentro desses programas criados como ajudas temporárias ou específicas. Nem sempre. Obviamente, quando vão à escola e terminam o grau escolar ou os bolsistas, quando terminam a bolsa, etc, vão encontrando outros tipos de apoio.
Nós fizemos, com Bianca Garduño, uma pesquisa sobre os trabalhadores do setor criativo durante a pandemia e os entrevistamos na pós-pandemia. Uma delas, em seu perfil artístico, dedicava-se ao clown nas ruas, como também fazia oficinas de leitura. Essas eram as duas coisas que promovia. Como estava no setor cultural, teve que fechar o espaço. Obviamente, abandonou o clown pelas condições e porque o marido, que era o clown principal, estava doente, com diabetes, tinha maior risco e acabou morrendo no final da pandemia, por volta de 2022 ou 2023. Ela teve que fazer um empréstimo bancário para financiar os gastos tanto com a doença quanto com a morte do marido. Desde a pandemia, saiu do setor cultural e começou a fazer pijamas cirúrgicos. Começou a costurá-los e a vendê-los. Quando a reencontramos, na pós-pandemia, tinha várias fontes de recursos financeiros, mas já não tinha nada a ver com a arte. Ela e a filha entraram no ensino superior, dentro de um programa de governo das universidades Benito Juárez, onde há subsídio para que frequentem a escola. Outro filho também precisou conseguir bolsa para entrar no ensino preparatório. Nós, nesse cálculo final, contamos que ela tem atualmente cinco fontes de recursos diferentes, pelos pijamas, pelos filhos que vão à escola, porque ela vai à escola e já não me lembro o que mais… Porque recebeu uma oficina por parte do governo municipal. Aí recompôs sua economia para subsistir e considera que, atualmente, vive melhor do que na pandemia ou antes da pandemia.
Mas toda essa economia, efetivamente de bolsas, é fictícia porque, no final das contas, uma série de elementos irá desaparecer com o tempo. Na Cidade do México, há um programa que me parece terrível, quanto a condições de emprego, que tem a ver com o programa Pilares. São espaços e um programa feitos para chegar aos centros comunitários. Acho que há mais de duzentos centros similares na Cidade do México. São espaços do tipo comunitário, que têm atividades culturais, desportivas e, também, de formação básica em computação, em algumas atividades laborais também, corte e costura, carpintaria, forja, esse tipo de coisas. É muito bom para que as comunidades onde chegam possam se integrar e fazer alguma atividade. No entanto, por mais que tenham uns duzentos programas, a maioria das pessoas que ministra as oficinas não são empregadas, mas bolsistas. Então, muitos dos egressos da Universidade Nacional Autônoma do México, que estão iniciando as carreiras de Arte e Patrimônio, que é o equivalente e, de algum modo, tem outras vertentes, como gestão cultural, cultura e comunicação… Os Pilares têm sido um dos destinos principais desses egressos quando terminam sua atividade. Mas sempre são bolsistas. Ficam sem emprego, sem experiência, embora estejam ministrando suas oficinas. Tampouco geram direitos e contagem de tempo para aposentadoria e sempre estão renovando as bolsas de modo temporário. O que me disseram é que, nos últimos tempos, principalmente a partir da pós-pandemia, estão trabalhando com um módulo em que os próprios oficineiros têm que convidar e trazer público a suas oficinas. Fazem com que eles promovam a atividade, consigam as inscrições e somente depois de certa quantidade de pessoas inscritas é que são contratados e recebem a bolsa. Também os fazem participar das manifestações do governo municipal e, em algumas ocasiões, também querem a presença de quem participa das oficinas.
Sharine: Qual é a relação entre o investimento público e privado na cultura?
Ahtziri: O investimento público atende um setor que o privado não atende. Há tanto investimento público como privado, como vimos na conta satélite. O que se refere às telecomunicações, plataformas, rádio, televisão, até mesmo o cinema, grandes companhias, como Televisa, TV Azteca, agora Netflix, Amazon, tem investimentos também em jogos ou na moda. São áreas que interessam ao setor privado. O estado se encarregou de incentivar, mais do que de atender, a produção artística e a educação, a formações nas artes, principalmente. Em alguns setores do artesanato… Alguns setores, porque há muito menos escolas de artesanato, muito menos programas de incentivo, reformulados ou feitos de novas maneiras. Mas, sim, as artes, digamos, têm sido, de algum modo, deixadas de lado ou confinadas para que sejam atendidas pelo estado. Há algumas academias de dança particulares. Há algumas escolas de desenho gráfico, de artes plásticas, na Cidade do México, onde as mensalidades são altíssimas. Mas a educação em artes, a profissional, diferentemente de outros países, basicamente recai sobre o setor público.
Sharine: Não há universidades particulares na área de artes?
Ahtziri: As particulares chegam a dar cursos, por exemplo, na história da arte, mas não em formação de quadros. Bom, agora a Universidade Panamericana, que é do Opus Dei, tem uma formação importante em música. Mas, basicamente, estamos falando de alguns programas. E, na realidade, é o setor público, através de suas universidades federais e estaduais, do INBAL [Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura], que está oferecendo educação pública em artes.
Sharine: Por isso, os alunos da universidade são os mesmo que estão no circuito do teatro, na produção de artes visuais…
Ahtziri: Há algumas outras escolas, por exemplo, a SOGEM, Sociedad General de Escritores de México. Ela tem alguns cursos de licenciatura em escrita criativa. Parece-me que também em atuação ou dramaturgia. Conseguiram cumprir o número de vagas para serem reconhecidos. Mas, na verdade, não competem nem em matrículas, nem em visão nem em alcance com a universidade pública. É muito mais restrito o alcance dessas outras instituições.
Sharine: É a mesma coisa em outras áreas?
Ahtziri: Não, isso acontece em artes e em pesquisa. As universidades particulares quase não têm pesquisa. Também deixam a pesquisa, em grande medida, ao setor público. Por exemplo, há alguns casos paradigmáticos da educação particular, que são os que têm um nível mais alto. Há o Instituto Tecnológico de Monterrey. Esse instituto foi criado pelos próprios empresários da cidade de Monterrey, que é uma cidade claramente industrial. Então, eles buscam formar seus quadros de dirigentes, principalmente de engenheiros, de administradores, de relações públicas para suas indústrias. É uma das escolas mais caras, mas também mais pujantes e de onde saem mais bem preparados nesses temas e, principalmente, com relações que levarão esses atores ao mercado, efetivamente. Há também o Instituto Tecnológico Metropolitano, que é onde Ernesto Piedras trabalha. Lá são formados principalmente administradores, quadros de funcionários e pessoas que vão trabalhar em empresas, com economia, direito, relações internacionais, administração. Esse é o espaço que têm. E a universidade particular católica [Universidade Panamericana]. Tem um pouco menos de presença agora, embora a Universidade Iberoamericana, que é jesuíta, tenha formação em humanidades e outros cursos. Apesar de ter programas de pós-graduação, quem se forma nesses programas trabalha no setor público, por exemplo, em museus ou coisas assim, ou encontra um campo de pesquisa no setor público.
Sharine: Esta é uma comparação entre os hábitos culturais dos brasileiros e dos mexicanos. No Brasil, 61% das pessoas nunca foram a um espetáculo artístico, de dança, teatro… Eu acho que, no Brasil, está correto porque há cidades muito pequenas, que não têm um teatro ou coisas assim. É semelhante ao México. Mas os dados do Brasil são de 2022 e, do México, de 2010 porque não consegui encontrar…
Ahtziri: De quando são os dados? Quando foram obtidos? Porque não sei se são nacionais ou referem-se às grandes cidades.
Sharine: São dados da Encuesta Nacional de Hábitos Culturales. O que você pensa da relação entre os públicos e os artistas, as atividades culturais no México?
Ahtziri: Acho que este é um tema inacabado, não? Agora, que está muito na moda falar em cadeia de valor, parece que os programas ou as lógicas de produção nunca olharam de modo completo: da produção ao público. Isso significa que as pessoas são educadas para que atuem de certa maneira, que dancem de certa maneira. Quem monta o espetáculo e dá dinheiro para a produção está interessado em receber informações sobre a quantidade de pessoas que frequenta o espaço? Não, porque se supõe que alguém já se encarregou disso. Parece que, nas escolas, muito poucas vezes se preocupam com que vai aos espaços, como fazer que as pessoas cheguem…
Uma coisa interessante que diziam é que o governo não tem se encarregado de criar públicos. Essa é uma visão comum do setor cultural, dos próprios artistas, que consideram que essa tarefa não é deles. Parece-me que é uma lógica fragmentada, como se fosse apresentada em partes, que não nos permite ter um público maior. Embora haja boas produções, as pessoas não estão chegando por falta de hábitos, por não ser algo que lhes interessa, por falta de recursos e de interesse. Há muitas outras coisas para fazer. Hoje competem, além da oferta cultural em geral, com as artes, em particular. O teatro independente El Rincón de los Títeres é um caso interessante porque tem gerado público para o teatro porque todos os domingos do ano, invariavelmente, com exceção de quatro, que são Natal e outros, há uma sessão de teatro de bonecos às 13h. As famílias sabem que podem assistir, ter uma atividade e fazer algo mais, ter uma comunidade onde as crianças possam ver algo interessante e sentir-se em casa. Esse trabalho que estão fazendo aqui, ou em alguns outros espaços, requer muita constância, requer, portanto, muito recurso, muita atenção e, também, a possibilidade de quem pode chegar a esse espetáculo e como. Nesta cidade, por exemplo, o preço dos ingressos equivale a 2 ou 2,5 salários-mínimos. Estamos falando de 7.500 pesos para famílias que devem ser de quatro ou de seis pessoas. Não é o ingresso por pessoa, mas o ingresso familiar. Se você vive nas periferias da cidade ou no centro, mas principalmente nas periferias, precisa considerar o transporte de sua família. São 100 pesos por vez para vir ao centro. Imagine alguma atividade gratuita. Quando está aqui, quer comer alguma coisa. As crianças precisam ir ao banheiro. Alguma coisa extra, um sorvete… São 300 pesos por mês, ou um pouco mais… As pipocas, e não sei mais o que… Torna-se proibitivo, embora as atividades sejam públicas. Então, se falássemos em pessoas com um pouco mais de recurso ou com outro tipo de perspectiva, seria mais viável. Mas a precariedade das pessoas e o fato de que a oferta cultural está concentrada no centro ou em diferentes espaços aos quais devem se transportar e de que muitas vezes nem se informam sobre o que há… Isso faz com que as pessoas, no sentido da democratização da cultura, não cheguem, não tenham acesso ou não possam regressar à atividade uma segunda vez. Essa parte é muito complicada. Por exemplo, o público que vimos no happening no museu [Museo de Antropología de Xalapa] já está convencido. Não é preciso convencê-los de nada. Eles já estão convertidos à arte e à cultura porque são setores médios, profissionais, próximos às artes ou à ciência ou à comunicação, ciências sociais, humanidades. Não somente o que diz respeito a uma expressão artística, mas a um espaço social de convivência, de distinção, diria Bourdieu. E vão por outro motivo.
Sharine: Para terminar, vou juntar duas perguntas. Por que você acha que as políticas culturais são importantes, apesar de tudo isso? O que você pensa das eleições que estão próximas?
Ahtziri: As políticas culturais são importantes? Seria uma pergunta melhor: “são importantes as políticas culturais?” Há pouco tempo, estive em um seminário no Chile, onde um dos palestrantes, creio que era o australiano [Justin O’Connor], dizia: “as políticas culturais por parte do estado foram absorvidas pelo mercado”. Quer dizer, estão em outra parte. O modo como estão sendo geradas as dinâmicas e as atividades culturais hoje em dia chama-se Netflix. A possibilidade, efetivamente, de montar um espetáculo e o que isso implica, ou de dar uma oficina, etc, o estado mantém e está apoiando. A ideia é que apoiam setores que, de outro modo, não teriam um respaldo e não poderiam florescer. Mas, como você diz, foram vinculados a essas bolsas e isso está gerando condições em que não há, exatamente, um desenvolvimento real ou pessoal das capacidades artísticas. Há quem consegue, efetivamente, viver da arte e tem uma renda interessante. Mas tem a ver com estratégias pessoais e com os grupos pessoais de referência, onde e como estão se movimentando para fazer suas tarefas. Isso é importante: tanto as habilidades que têm para inserir-se no mercado, para que possam subsistir, como os espaços e os núcleos, com quem e como se relacionam. Há pouco tempo, me falaram de um escultor, um carpinteiro, ou melhor, um “ebanista”, que é um carpinteiro fino, que orientou seu trabalho para a criação de móveis para o trabalho artístico, uma mesa para pintar aquarela, um tipo de estante para fazer cerâmica. Compreende as necessidades e, portanto, encontrou nichos de trabalho muito específicos. Mas a grande maioria não tem essas ferramentas; descobrem muito tarde, já que saíram da escola, encontraram dificuldades e disseram: “por que não me ensinaram isso na escola?” “Porque você também não estava tão interessado em aprender”. Mas há, sim, uma lógica nas escolas sobre o que vale a pena ensinar e para que. Penso que há uma ruptura importante no entendimento de que essa cadeia de valor teria que ser vista de modo completo desde a formação do estudante, até as bolsas ou quando lhes dizem: “vou lhe dar um capital inicial, uma empresa”. Neste país, a ideia da arte como uma atividade produtiva que lhe permita viver a partir de sua empresa e de seu trabalho, como um profissional independente, ainda está muito satanizada. Considera-se que a arte não deve ser vendida, que a arte tem essa ideia do místico, do simbólico, que não deveria ser vendida. Mas, também, de que vive quem a produz?
Sharine: Claro, não há sustentabilidade nas bolsas ou nos apoios dos governos.
Ahtziri: Você pode continuar vivendo das bolsas, mas não é sustentável e é uma economia fictícia.
Sharine: E pode mudar, como ocorreu no Brasil. Tínhamos os editais, alguns deles, mas outros artistas eram selecionados…
Ahtziri: E qual a minha opinião sobre as eleições? Vamos ver… Acho que, efetivamente, o paradigma do que fazer com e sobre a cultura mudou nesse sexênio. O que virá será uma linha semelhante, embora a origem social de Claudia Sheinbaum possa pressioná-la e levá-la a outros horizontes. Acho que, pelo desempenho de AMLO [Andrés Manuel Lopez Obrador], pelo tipo de tecido social que tem feito, de apoio a comunidades de modo específico, as pessoas irão buscar a continuidade deste governo. Portanto, vejo como muito mais provável a vitória de Claudia Sheinbaum sobre Xóchitl Gálvez. Parece-me que o que ela pode propor, por sua origem social, é algo um pouco mais próximo às belas artes e ao elitismo. Mas, por sua postura política e de continuidade, o que está fazendo pode seguir também nesta linha do comunitário, de continuar repartindo mais os apoios. O que ela fez, na Cidade do México, foi este trabalho dos Pilares. É iniciativa de seu governo que sejam bolsistas. Por esse motivo, para mim, haveria uma linha complicada para o desenvolvimento das artes, porque seguiríamos na lógica tanto do clientelismo quanto de gerar as bolsas. Acho que, provavelmente, o próximo sexênio seguirá este caminho.
Sharine: Obrigada!
Ahtziri: Eu que agradeço!