Canclini na Cátedra

Entrevista com Alessandro Azevedo. Realizada presencialmente, no escritório da Representação Regional do Ministério da Cultura, no Complexo Cultural Funarte SP, em São Paulo, no dia 17 de agosto de 2023

Sharine: Estou estudando as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Estou trabalhando com o Prof. García Canclini, que fica no México, e com o Prof. Martin Grossmann, na USP. Estou fazendo algumas perguntas para pesquisadores, artistas e também para pessoas que trabalham no Ministério da Cultura. Como você é representante do Ministério aqui em São Paulo, quis falar com você. Qual a sua trajetória na gestão cultural e sua relação com as Leis Aldir Blanc, com a Lei Paulo Gustavo e com a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura?

Alessandro: Meu histórico é de fazedor de cultura. Sou ator e palhaço há muitos anos. Eu diria que venho, nesse fazer cultural, há mais de três décadas, atuando como ator e como palhaço e, depois, como militante cultural. Acho que são as fases em que me entendo como gente: fazedor, militante na luta por políticas públicas para a cultura nas três instâncias (município, estado e união). Sempre estive nos fronts de luta, reivindicando políticas públicas para a cultura. Felizmente, a gente teve mais vitórias do que derrotas. Digo “a gente” porque essas lutas não são feitas sozinho, é sempre acompanhado de muita gente. Sempre conseguimos. Descobrimos o caminho do legislativo, a atuação no legislativo, mais do que no executivo diretamente. O legislativo é a casa que formula as leis. Percebemos que a atuação teria que ser ali para construirmos as políticas públicas de forma mais consistente por meio de leis, projetos de leis. Desde a elaboração do projeto de lei até o processo de mobilização e aprovação dessa lei, a sanção da lei e toda essa trajetória. Eu atuei em alguns mandatos de parlamentares. Atuei com o Nabil Bonduki. Antes de atuar com o Nabil Bonduki, eu já tinha atuado com o Deputado, que foi Vereador e agora é Deputado Federal, Vicente Cândido. Também já tinha atuado com o José Eduardo Cardoso, que foi Ministro da Justiça na época em que comecei a fazer saraus. Ele me emprestou o escritório dele ao lado da PUC [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo] para fazer os saraus, que faço há 27 anos, o Sarau do Charles. O meu contato com o poder público, com o legislativo, foi a partir daí: José Eduardo Cardoso, depois o Vicente Cândido, Nabil Bonduki. Trabalhei com o Alexandre Padilha, que agora é Ministro das Relações Institucionais. Enquanto ele foi Deputado Federal, eu fui assessor e atuava na parte das políticas públicas para a cultura. Alguns projetos de lei que foram protocolados e são da autoria do Padilha são projetos que eu ajudei a mobilizar e a fazer a elaboração do texto. No poder executivo, é a primeira vez que estou atuando. Participei dos movimentos como fazedor, como trabalhador da cultura, na parte do poder legislativo e, agora, no poder executivo. É a primeira vez que estou atuando no poder executivo. Agora vai sair a representação do Ministério da Cultura na Cidade de São Paulo.

Sharine: No legislativo, você nunca teve um mandato? Sempre foi assessor?

Alessandro: Não, sempre fui assessor e já fui candidato algumas vezes. Fui candidato a deputado estadual. Foram as candidaturas que eu tive. Nessas últimas eleições, em 2022, fizemos uma candidatura coletiva, que é a forma que temos de conseguir estar neste lugar. A estrutura é feita de uma forma que é difícil para quem não é um pop-star, um conhecido, um “cara” que tenha um programa na TV, uma grande liderança, um grande líder, conseguir ocupar esse espaço de decisão e poder. Então, temos que arranjar estratégias. Seguindo o exemplo de outras candidaturas coletivas, da área da cultura também, eu me lancei nessa.

Sharine: Mas não foi eleito?

Alessandro: Não. Tivemos 16.265 votos. Foi uma votação bacana e percebemos: “aqui tem um caminho”.

Sharine: Em 2023, com a volta do Ministério da Cultura, a situação de fomento no Brasil mudou em relação aos últimos anos. O que você acha que teve de continuidade e de mudança. Não estou falando somente dos governos Bolsonaro e Temer. Refiro-me ao período anterior também. O que continua em relação a políticas públicas da época do primeiro governo do Lula ou até mesmo anteriores. O que teve de mudança?

Alessandro: Acho que voltamos a falar em políticas públicas de boca cheia. Agora vamos discutir políticas públicas porque há uma escuta do poder executivo, há espaço para falar sobre. O lançamento desses novos editais da Funarte, com R$ 52 milhões de reais, do Ministério da Cultura, com a Paulo Gustavo, e também a transversalidade com outros ministérios, com o Ministério da Justiça, com o IPHAN [Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]. Tem uma oferta gigante de editais. Agora começamos a falar em conferências, um espaço que os trabalhadores e as trabalhadoras da cultura encontram para discutir políticas públicas, para se encontrarem, para se verem. Era uma coisa que tinha sumido da nossa história: falar de políticas públicas e, de fato, estar em um lugar onde se pode discutir políticas públicas. Sabemos que as conferências são muito importantes, mas têm uma praticidade em sua aplicação ainda aquém da que a gente deseja. Quantas diretrizes tiramos em conferências e quantas são aplicadas e implementadas. São raras. Mas ainda é um espaço. Vamos lá, brigamos, discutimos, vamos para o conflito das ideias. Mas é importante ter isso, é necessário. Estamos falando agora de editais, coisas de que nem se ouvia falar. Então é a continuidade dos editais que existiam, agora com mais força. Eu acho que a sociedade civil hoje ocupa um lugar na discussão das políticas públicas para a cultura muito maior do que alguns anos atrás. Acho que o fazedor de cultura tem essa característica: quando a situação está muito ruim, ele se lança, se une e ainda trabalha com pauta única. Você é dessa área também, você sabe que, quando o assunto é cultura, para discutir, cada um tem uma ideia, mil coisas. Mas, na dificuldade, aprendemos que precisamos trabalhar com pautas únicas, escolher pautas únicas para juntar todo mundo. Foi assim na Aldir Blanc e na Paulo Gustavo.

Sharine: Então você acha que foi a dificuldade que gerou…

Alessandro: É impressionante, mas foi a ausência de espaço para discutir as políticas públicas, a priorização de outras culturas. A Secretaria de Cultura continuou existindo, o governo que estava em exercício continuou fazendo a cultura. Mas era outro tipo de cultura. Era uma apologia às armas, uma apologia a um monte de outras coisas que não são o que estamos acostumados a discutir no campo simbólico da cultura, na ideologia, na prática, nas vivências. Acho que tem um grande diferencial, voltarmos a poder discutir de “boca cheia” e falar “cultura”!

Sharine: A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e a Lei Paulo Gustavo estão agora no centro das ações do Ministério da Cultura. Como você acha que elas influenciam a própria estrutura do Ministério, o conjunto das outras políticas culturais e, também, as instituições antigas, como a própria Funarte, por exemplo?

Alessandro: Eu acho que a aprovação, a implementação e, agora, a operacionalização, da Paulo Gustavo, por exemplo, foram um estopim para dar uma esquentada no que nós (eu digo “nós” porque, embora esteja na gestão pública agora, ainda me considero um fazedor de cultura) sempre almejamos, que era a implementação do Sistema Nacional de Cultura. Essas leis, para a maior parte dos municípios, já são um ensaio, um esquenta para a implementação do Sistema Nacional de Cultura. Agora a relação com a Paulo Gustavo é de compromisso dos municípios e estados de estarem, em julho do próximo ano, com seus Sistemas Municipais e Estaduais implementados. É um compromisso de quem recebe o recurso. Acho que caminhamos para isso porque escutamos falar do Sistema há quase vinte anos. Olha quanto tempo foi necessário e quantas coisas foram necessárias para sentirmos a importância de um Sistema Nacional de Cultura, que faz com que os recursos cheguem à ponta. Uma amiga até me corrigiu e disse: “rede não tem ponta, rede é tudo igual”. Então, chegar à rede, preencher essa rede toda, chegar aos lugares onde era mais difícil chegarem recursos públicos para a cultura e agora começam a chegar. Na adesão à Paulo Gustavo, o número foi de 98,6%. Poucos municípios ficaram de fora. Aqui no Estado de São Paulo, dos 645 municípios, só 21 não aderiram. Acho um passo importante para nós. Isso vai impactar na estrutura interna. Acho que o Ministério e a Funarte nunca tiveram tanto recurso em editais. Aí nós nos damos conta de outra coisa: a dificuldade de operacionalizar tudo isso.

Sharine: De executar, não é? Às vezes, os órgãos devolvem dinheiro…

Alessandro: Exatamente, é a dificuldade. Não tem servidor e servidora necessários para o volume de trabalho. Tem que ter concurso público para servidores e servidoras, já.

Sharine: Nos municípios e estados também.

Alessandro: Alguns municípios não têm secretaria, não têm departamento, não têm uma secretaria de cultura. É mais difícil…

Sharine: Então, de alguma forma, a Paulo Gustavo vai ajudar…

Alessandro: Vai provocar. O município que ficou de fora, que não tem estrutura… Imagina, teremos agora a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, por cinco anos. Os municípios vão querer receber recursos, até porque os próprios trabalhadores e trabalhadoras da cultura, que virem os municípios ao lado recebendo, vão dizer: “por que a gente não recebe? Por que não tem estrutura?” Vão pressionar para que isso aconteça.

Sharine: Entendi. Tomara. Você acha que essas mudanças serão duradouras?

Alessandro: Não podemos dizer nada… Eu comentava com amigos e amigas: “nós levamos tanto tempo construindo nacionalmente as políticas públicas, havia os setoriais… De repente, com um decreto, com uma canetada, o governo seguinte vai e derruba”. Não posso dizer que isso vá ficar para sempre. Mas uma coisa é certa: a diferença é que nós, que somos da área da cultura, os trabalhadores e trabalhadoras da cultura, não deixamos barato. Você vê: nós fomos para cima. No momento mais difícil, nós nos apropriamos das ferramentas que havia, de forma remota, buscando apoio de parlamentares, de servidores, de gestores, tudo para fazer aprovar aquela Lei.  Isso foi irreversível. A nossa mente e o nosso fazer, depois que dilataram… isso se torna quase irreversível. Ninguém vai falar: “não vou lutar mais”. Nós lutamos. Derrubamos o veto presidencial, lutamos pela sanção, para que a lei saísse. Derrubamos várias coisas: vetos e etc, tudo por conta da mobilização. Isso é irreversível: a postura que a sociedade civil assume depois que você expande sua consciência e sabe que é necessário lutar para conseguir algo. Isso é irreversível. As instituições ainda são frágeis neste sentido. Um decreto, uma nova lei, uma canetada de um presidente ou coisa parecida, e volta… Mas a sociedade, na cabeça, fica irreversível. Você entende que tem que lutar e caminhar nessa direção.

Sharine: Legal. A Aldir Blanc foi criada em um contexto de pandemia. É justamente o que estamos falando: nós entendemos que houve uma dificuldade financeira, uma dificuldade social e as pessoas se engajaram para conseguir os recursos para a lei. Na Paulo Gustavo e na Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, já não havia tanto esse contexto. Mesmo assim, houve essa adesão, de que você falou, da própria sociedade civil. O que você acha que contribuiu para a aprovação dessas leis, apesar do veto?

Alessandro: A Paulo Gustavo, embora não estejamos mais no momento de pandemia, ainda é uma lei emergencial. Ela tem essa característica de lei emergencial. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura… Eles nem estão mais chamando de Aldir Blanc 2 porque é muito diferente da 1. Eu não tive a oportunidade de ver a regulamentação da Política Nacional Aldir Blanc, como vai ser. Mas os parceiros que estão trabalhando nela falam que existe muita diferença entre a Política Nacional Aldir Blanc e a Lei Aldir Blanc. Facilita-se o uso do recurso, até porque há outros decretos que ajudam, o Decreto de Fomento à Cultura, que ajuda a fazer uso desses recursos sem ficar tão amarrado à prestação de contas. A Política Nacional Aldir Blanc já aponta uma cota “X” para o Cultura Viva, coisa que não havia na primeira, e outras cotas mais… Eu acho que isso se deve justamente à experiência que se teve com a Lei Aldir Blanc e, agora, com a Paulo Gustavo, que considero como sendo leis emergenciais. Embora não estejamos mais na pandemia, o setor cultural ainda sofre com seus reflexos. Foi o primeiro setor a parar e vai ser o último a recuperar o fôlego da economia, embora existam pesquisas que apontam que o setor cultural tem o PIB mais alto do que o da indústria automotiva, de 3,11%. Eu acho que essas mudanças que virão daqui para sempre se devem justamente a essa vivência com as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, que já foi um pouco melhor do que a anterior.

Sharine: Mas o que ajudou o Congresso, por exemplo, para que as leis fossem aprovadas?

Alessandro: Mobilização popular. Isso foi o que pegou “os caras”. Pegamos, no ano passado, ano de eleição… O Congresso estava ali… E houve muita pressão. A sociedade se organizou muito bem. Percebeu-se que não daria para ir sozinhos. Os trabalhadores e trabalhadoras precisavam de parlamentares. Isso foi feito de um jeito que fazíamos tabelas para saber quais parlamentares estavam favoráveis. Íamos computando: em tal estado, o parlamentar “X” vai votar sim, ou vai votar não. Íamos acompanhando. Quando o cara votava não, íamos lá, ligávamos. Rolava uma estratégia de ficar ligando, mandando e-mail. Aquela casa tem 513 parlamentares, chegávamos ao número de 420, 430 parlamentares votando a favor. Eram dois terços do parlamento, digamos assim, favoráveis àquilo. Por quê? Por pressão da sociedade, pressão popular. É o poder popular indo para cima.

Sharine: Legal. Muitos articuladores da Lei Aldir Blanc, como você por exemplo, hoje estão no Ministério. Você acha que isso contribui para o processo de institucionalização da cultura ou não?

Alessandro: Eu acho que sim. Eu acho que ajuda porque eu e outros trabalhadores da cultura temos essa vivência, sabemos quais são as bandeiras, os pleitos que nós lutamos por vinte anos para implementar como políticas públicas. Acredito que a maioria das pessoas que está hoje no poder executivo venha dos movimentos populares. Então, acredito que, embora não tenhamos o poder de decisão, que cabe mais à Ministra ou ao Secretário Executivo, contribuímos para a permeabilidade das pautas populares, trazemos isso para a discussão dentro do executivo e ajudamos na organização desses movimentos também. O fato de ter alguém que esteve no front de luta, agora ocupando um lugar de poder, de decisão… Embora a gente não decida muito, o espaço em que estamos é um espaço de decisão. É por isso que contribuímos, e muito, para que essas pautas mais progressistas dentro do poder executivo, avancem.

Sharine: Já falamos um pouco, mas, se quiser falar um pouco mais: 100% dos estados e mais de 98% dos municípios aderira à Paulo Gustavo. Como foi feita a articulação para esses gestores estaduais e municipais aderirem à lei?

Alessandro: A diferença entre a Aldir Blanc e a Paulo Gustavo é que, na Paulo Gustavo, criamos os comitês estaduais. Esses comitês foram importantíssimos para uma série de coisas, foi um modelo que nos ajudou muito. Por exemplo, cada estado montava, no WhatsApp, seus grupos de mobilização e, ali, se discutia as plenárias, se discutia as pautas, fazia-se as mobilizações, bolava-se as estratégias para pressionar os parlamentares. Então, o diferencial na Paulo Gustavo, que eu acho que foi um diferencial muito importante, que já foi um avanço em relação à Aldir Blanc, foi a criação dos comitês estaduais da Paulo Gustavo. Primeiro, surgiu um grupão, que reunia gente do Brasil todo. Depois, com as reuniões, com as plenárias que fazíamos, percebemos que precisaríamos ter uma ação no território. Aí começaram a surgir os comitês estaduais da Paulo Gustavo. Cada estado começou a se organizar. Foi por isso que, quando fizemos esses mapas para discutir nossa mobilização dentro do parlamento, cada estado pressionava seu representante, fosse ele um deputado federal ou um senador. Ficávamos pressionando a partir dos comitês estaduais da Paulo Gustavo. Foi ali o espaço de articulação e percebemos, baseados na Aldir Blanc, que era muito importante que a composição fosse de trabalhadores e trabalhadoras da cultura, parlamentares e gestores públicos, servidores. Misturamos todo mundo que estava a fim de aprovar a lei.

Sharine: Então, há parlamentares nos comitês também?

Alessandro: Sim. Nós pegávamos cada um desses comitês e chamávamos os parlamentares para fazer parte. Os que iam participar eram principalmente os do campo progressista ou que tinham pelo menos um olhar para o campo progressista. Eles faziam parte desses comitês. Há alguns parlamentares e deputados federais que estão nos comitês nacionais e estão nos estaduais. Eles nos ajudavam a mobilizar.

Sharine: Entendi. Esses comitês que agora fazem parte da estrutura do MinC surgiram com a articulação da Paulo Gustavo?

Alessandro: Esses comitês que serão consolidados agora, eu acredito que tenham uma inspiração aí. Mas o Lula, em campanha, já falava que queria que cada estado tivesse esses comitês, formados pela sociedade civil, para descentralizar a atuação do Ministério da Cultura.

Sharine: Então são duas coisas diferentes…

Alessandro: Os comitês da Paulo Gustavo são criados de maneira informal. Não têm nenhuma formalidade. Montamos esses comitês nos grupos de WhatsApp. Esses tais de comitês, que agora serão um braço do Ministério da Cultura, serão constituídos por pessoas da sociedade civil, mas vai ter uma entidade que vai geri-los, que estará sob o guarda-chuva do Ministério da Cultura.

Sharine: Uma entidade da sociedade civil também? Uma organização social…

Alessandro: Uma OSCIP, algo assim.

Sharine: Entendi. Qual a diferença entre os comitês e os conselhos?

Alessandro: O comitê é composto única e exclusivamente pela Sociedade Civil. Os conselhos municipais, estaduais são mistos. Há gente do poder público junto com a sociedade civil. A maioria dos conselhos não é deliberativa. Eles têm uma outra função, uma regularidade. Esses comitês serão uma extensão na implementação das políticas públicas do governo federal na área da cultural.

Sharine: Provavelmente serão feitos editais…

Alessandro: Eles vão ajudar nos territórios porque vão ser agentes culturais. Eu ouvi falar que terão alguns servidores também. Mas não é como a composição de um conselho. Estão tomando cuidado para que não haja sobreposição de funções entre o conselho estadual e esses comitês. Eles vão atuar no território com o intuito de assegurar a implementação das políticas públicas federais na área da cultura.

Sharine: As entidades serão escolhidas por editais?

Alessandro: Haverá um chamamento para escolher qual a entidade.

Sharine: Provavelmente essa entidade irá montar os comitês…

Alessandro: É para facilitar a contratação dessas pessoas. Como o governo vai fazer um concurso? Para facilitar que essas pessoas sejam contratadas e atuem nos territórios, será desse jeito.

Sharine: Além dos comitês e dos conselhos, ainda há os escritórios regionais…

Alessandro: O escritório é institucional. Os comitês não são institucionais.

Sharine: Entendi. Já falamos sobre isso, mas, se quiser reforçar: é um requisito da Lei Paulo Gustavo que os estados e municípios implementem ou consolidem os Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura. Você acha que isso vai alterar o Sistema como foi pensado originalmente ou será mantida a concepção original?

Alessandro: Para ocorrer a transferência fundo a fundo, é preciso ter o CPF da Cultura, que é Conselho, Plano e Fundo, municipal, estadual e federal. Essa organização está dentro do que foi previsto. Nunca conseguimos ter isso funcionando. Pode até ser que altere alguma coisa da ideia original, mas, na prática, nem sabemos como funciona. Temos apenas uma ideia de como é. Falamos que a gente espera que Sistema Nacional de Cultura seja um SUS [Sistema Único de Saúde] da Cultura. Imagine, se não fosse o SUS, nesse momento de pandemia… Teria sido catastrófico, pior ainda, não é? Eu não saberia dizer se vai ser diferente do que foi imaginado. Mas acredito que está dentro do horizonte do que foi imaginado. É que nunca tivemos o Sistema funcionando, a pleno vapor. Mesmo aqui, em uma cidade como São Paulo, não tem um Conselho de Cultura, não temos o sistema implementado no município. Também não temos o Sistema Estadual de Cultura funcionando. Temos um fundo, que não sabemos quanto tem de recursos e um conselho que foi montado, mas quem escolhe os membros é o governador. Ou seja, esse formato de conselho é muito antigo. Eu acredito que sim, que a implementação do Sistema Nacional de Cultura, do Sistema Estadual e dos sistemas municipais vai fazer com que a gente tenha ideia, de fato, do que foi pensado há mais de uma década. E só agora começamos a perceber a importância dele. Quantos municípios falam: “nossa, vou receber recursos?” Para você ter uma ideia, a cidade onde nasci, na Paraíba, chama-se Puxinanã. Deve ter uns cinco ou seis mil habitantes. É uma cidade pequena. Eu liguei para lá, vi na tabela, e tinha 150, 200 mil reais para aquela cidadezinha. Eu falei para as pessoas de lá: “vocês precisam aderir, mostrar para as pessoas, para o prefeito…” Aí rolou, eles aderiram à Paulo Gustavo. Então, você imagina, como é novo isso. Lá no interior da Paraíba, que nunca teve um recurso público para os trabalhadores da cultura. Os artistas lá, assim como em outros municípios, sobrevivem do mercado, do que vendem, do que fazem, nunca receberam um recurso público nessa área. Então, você percebe a força de um Sistema Nacional de Cultura, com recursos.

Sharine: É o que você falou: parte dos artistas hoje vive de projetos que são contemplados por mecanismos de fomento, sejam eles diretos ou indiretos. Não em todos os lugares, mas, pelo menos, aqui em São Paulo, nos grandes centros. Esses mecanismos são importantes, mas não resolvem a precariedade do trabalho. Os artistas continuam sem ter renda fixa, sem ter aposentadoria, sem essas questões de cidadania mesmo, que são importantes. Como você acha que as políticas públicas podem melhorar ou atuar nessas condições?

Alessandro: Embora existam os editais, eles já são uma seleção. Muita gente fica de fora, não recebe recursos. Na maioria das vezes, os valores dos prêmios dos editais são muito baixos. Não dá para pensar em um plano de trabalho com duração mínima de um ano. É uma programação de um mês, dois meses, três meses, no máximo. Acho que a política pública que está estabelecida ainda não é uma política pública que seja suficiente para alguém sobreviver no país. Os recursos são poucos e é muito irregular. Se eu concorro em um edital e ganho neste ano, pode ser que, no próximo edital, eu não receba recursos. Isso provoca uma interrupção. Eu gostaria muito que todo trabalhador e toda trabalhadora da cultura pudessem, de acordo com suas necessidades, acessar alguns recursos públicos para dar continuidade. Acho que a maioria das políticas públicas não é pensada como política pública de continuidade. Vemos aqui, na cidade de São Paulo, que o Fomento ao Teatro já tem o pensamento voltado para isso. São projetos de continuidade. Embora a lei tenha sido atacada de diversas formas, tentando interromper esse ciclo, sempre com a argumentação “são os mesmos”, essa política pública surgiu com propostas de dar continuidade aos grupos que fazem pesquisa, que têm um repertório. Esse era o propósito dessa lei. Isso fez a diferença na realidade dos grupos de teatro da cidade de São Paulo, os grupos que receberam o fomento. O montante é alto, dá para pensar na estruturação do coletivo, do seu grupo, por um ano ou por anos. Tem gente que pega o fomento por dois anos. Isso faz a diferença. Você consegue estabelecer uma regularidade no seu trabalho de pesquisa, de formação. Muitos grupos oferecem formação. Eu acredito que tem que mudar um pouco essa concepção do que é fomentar a cultura.

Sharine: Então, como você acha que deveria ser?

Alessandro: Na minha opinião, devemos ter algo que seja perene, de continuidade, e valores que sejam suficientes para atender as necessidades de um indivíduo, no caso do artista, ou de um coletivo. Acontece que os valores são muito baixos. Por exemplo, o PROAC [Programa de Ação Cultural] é uma política pública aqui do nosso estado. Em 2004, 2005, eu fazia parte de um movimento que lutava pela criação do Fundo Estadual de Cultura, do Estado de São Paulo. Naquela época, em 2005, nosso pleito era de R$100 milhões. Nós estamos em 2023. Foram necessários quantos anos? 17 anos para chegarmos ao patamar de R$100 milhões. O PROAC chegou, no ano passado, ao patamar de R$100 milhões. Mas veja quanto tempo foi necessário para chegarmos a esse patamar. Nesses editais, os valores são de R$50, R$60 mil. Isso é uma gota d’água no oceano. É muito pouco. Por isso eu acho que tem que se pensar em mais recursos para a cultura. Hoje o PROAC, pelo menos a pesquisa que se tem, do montante de projetos apresentados, atende a 5%. É pouquíssimo.

Sharine: Por outro lado, não tem como o Estado ajudar todo mundo…

Alessandro: Ele precisaria, acho, de algo da ordem de R$2 bilhões para cobrir todas essas demandas.

Sharine: O Estado de São Paulo?

Alessandro: O Estado de São Paulo… Precisaria de algo um pouco maior do que isso, R$2 bilhões. Agora está vindo muito recurso federal: R$ 750 milhões, incluindo o recurso que vai para o estado e a outra metade, que vai para o município, um pouco mais da metade… Depois vem a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura.

Sharine: Mas pode-se pensar em algum outro tipo de fomento, um outro tipo de política…

Alessandro: Eu acho que precisamos quebrar a cabeça para discutir qual o mecanismo que pode ser criado para fomentar a cultura como ela merece ser fomentada e para que os trabalhadores da cultura tenham mais estabilidade. A maioria dos trabalhadores e trabalhadoras não tem um teto. Pensar nessas condições básicas, como fazendo parte desse fomento a esse nicho de trabalhadores da cultura, trabalhadores da sociedade, precisa oferecer isso, casa própria… Precisa-se pensar em uma política mais ampla, que não seja somente o recurso dos editais. É pensar em moradia, saúde, educação para os trabalhadores da cultura, para que isso também faça parte desse pacote do fomento e de recursos. Eu acho que tem que ser uma política muito mais ampla. Para isso acontecer, tem que ter transversalidade entre secretarias e ministérios, para que façam uma coisa combinada. É como a segurança pública do país. Muita gente fala assim: “tem que fazer um trabalho nas fronteiras, tem que juntar o exército, tem que juntar a polícia militar, polícia civil, marinha. Tem que ser uma coligação muito ampla”. Eu acredito que, hoje, um trabalhador da cultura não se satisfaz e não resolve sua vida só com dinheiro de edital, só com recursos de edital, principalmente porque os valores são baixos. Tem que se pensar em uma política pública muito mais ampla, que pense em moradia, saúde e educação também.

Sharine: Nos últimos anos, houve uma repercussão bem negativa das políticas culturais. Houve questionamentos sobre a Lei Rouanet, entre outros. Como você acha que as políticas públicas também podem envolver outras parcelas, parcelas muito maiores da sociedade civil, no sentido de formar público, fortalecer a institucionalidade, trabalhar com os processos de mediação?

Alessandro: Você falou da Lei Rouanet, que foi alvo de muitas críticas. Mas eu acho que, no caso da Lei Rouanet, isso passa por um desconhecimento grande. Muita gente fala: “beneficia isso, beneficia aquele”. Precisamos entender que não é que tira dinheiro de um lugar para cobrir as demandas da cultura. Você conhece um pouco a estrutura, você sabe que há uma comissão que julga, que é renúncia fiscal, que não é recurso direto dos cofres públicos, do tesouro. É uma isenção do imposto de renda, assim como tem a renúncia fiscal no estado de São Paulo do PROAC ICMS. No município também há essas leis de renúncia fiscal… Mas eu me perdi um pouco em sua pergunta.

Sharine: Eu queria saber como fazemos para formar um público para as artes, para a cultura, que seja muito mais amplo do que uma política pública que atenda aos artistas.

Alessandro: Eu acho que quem mais tem que quebrar a cabeça sobre isso são os gestores públicos. Como criar programas ou ações de uma secretaria ou de um ministério para que a finalidade seja o público? Realmente, você tem razão. Em todos esses editais, o principal beneficiado é o fazedor, embora tenha contrapartidas, como espetáculos gratuitos… Eu tenho certeza de que o que falta é um alinhamento entre o que o poder público imagina, em termos de gestão, e o que o fazedor precisa. O trabalhador da cultura não quer receber o recurso e apresentar só para seus pares. Ele quer mostrar para plateias e públicos diferentes. Mas isso precisa estar dentro de um contexto que é gestão pública. Como pensar ações em que o recurso que você investe – porque é um investimento – na cultura chegue às pessoas que são contribuintes do município, do estado e da união. Acredito que tenha que passar por uma elaboração grande. Assim como falamos sobre o Sistema Nacional, precisamos pensar como o objeto desses projetos pode chegar mais diretamente à sociedade. Eu, por exemplo, como fazedor, vou apresentar meus espetáculos nos lugares onde há menos ofertas. Vou a uma “quebrada”, vou a um município, a um bairro onde não há nada, onde às vezes nunca chegou um espetáculo. Eu gosto de ir a esses lugares. Gosto de levar a experiência para esses lugares. Não acho que só o fazedor, o trabalhador da cultura, vai ter essa solução de fazer com que isso chegue a quem tem que chegar, para um público que não tem oferta e que tem muita demanda. Eu, particularmente, não acredito que isso deva ser uma iniciativa só de quem faz cultura. Isso tem que ser iniciativa também combinada com a gestão pública. Isso tem que ser um projeto de como fazer. Alguns projetos têm um pouco esse perfil de fazer com que esses espetáculos cheguem ao público. Por exemplo: os Pontos de Cultura, o Cultura Viva atuam no território. Aconteceu uma novidade na forma de fazer o repasse: não é por linguagem, é territorial. Acho que isso já é um caminho. Acho que o Cultura Viva já aponta nessa direção, de sair desse lugar de o recurso vir e ficar com o fazedor de cultura. Eu acho que o Cultura Viva já é uma política de estado que aponta nessa direção, que vai aonde as pessoas precisam. É no território, são os povos de terreiro, são os povos indígenas, povos ciganos, todos esses povos, todos esses fazedores. É circo, é dança, é música, é tudo, e funciona, vai aos lugares onde não há equipamentos públicos. A cultura chega até lá. Eu acho que todo ponteiro tem essa concepção. Ele nunca imagina “eu vou levar a cultura”. Ele pensa: “eu vou estabelecer trocas”. Cultura tem em todos os lugares.

Sharine: Para finalizarmos, como você acha que, em um mundo ideal, deveriam ser os fomentos e as políticas para a cultura no Brasil?

Alessandro: O mundo ideal é ter recursos para todas as categorias, para as mais diversas faixas: a galera que já está há mais tempo no mercado profissional, os intermediários, os jovens que estão começando. Deveria haver uma linha de fomento para todos esses níveis e atender a todas as pessoas, e que as pessoas não precisassem concorrer umas com as outras. Que fosse necessário apresentar apenas um objeto, perceber se há consistência, para que não tivesse concorrência. Eu acredito que ainda vamos viver para vivenciar isto: para fazer uso de recursos públicos, não precisar se submeter a esse tipo de editais.

Sharine: É isso! Quer falar mais alguma coisa?

Alessandro: Só agradecer por ser uma pessoa que se propõe a escutar as pessoas, fazer essa pesquisa, ter lutado por esse espaço que está aqui. É só isso. Só agradecer.

Sharine: Imagina! Eu que agradeço!

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