Canclini na Cátedra
Entrevista com Alexandre Barbalho. Realizada presencialmente, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (RJ), no dia 17 de outubro de 2023
Sharine: Obrigada pela participação. Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc. Em um primeiro momento, eu trabalhei com a articulação pela Lei, falei com várias pessoas que participaram da mobilização social e, agora, estou tentando entender quais serão as consequências dessa lei daqui para frente. Já tivemos alguns desdobramentos, como, por exemplo, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, a Lei Paulo Gustavo e uma parte da estruturação nova do MinC [Ministério da Cultura]. Para começar, gostaria que falasse um pouco da sua trajetória na gestão cultural, na pesquisa em política cultural e, também, sua relação com as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.
Alexandre: Eu comecei a pesquisar sobre políticas culturais no meu mestrado em sociologia, em 1994. Eu pesquisei as políticas culturais na época do regime militar com foco no estado do Ceará, que foi o primeiro estado do Brasil a ter uma Secretaria de Cultura, em 1963. Daí o meu interesse. Foi esse dado que me levou a fazer essa pesquisa. No mestrado, eu pesquisei esse olhar do Brasil e do Ceará durante o regime militar. No doutorado, eu dei continuidade a essa pesquisa. Eu peguei a política cultural da abertura, dos primeiros anos após o regime militar. Mas também com foco no Ceará, a partir de uma política muito forte que teve lá, que foi uma referência nacional, de uma época em que o governador foi Tasso Jereissati. O Ceará tornou-se uma espécie de vitrine para o Brasil a partir das políticas de modernização, e eu vi essas políticas de modernização na área da cultura, em especial para o audiovisual, que se tornou também uma referência. Daí minha migração. Eu sou formado em história e em ciências sociais. São duas graduações. Fiz mestrado em sociologia. Mas, no doutorado, como o foco era o audiovisual, eu achei que a comunicação seria um espaço disciplinar mais interessante. Então, fiz graduação na Universidade Federal da Bahia. Meu mestrado foi na Universidade Federal do Ceará. Eu fiz doutorado na Bahia, em comunicação. Desde 1994, eu pesquiso políticas culturais, vou ampliando e trazendo novas questões. Como produtor, como gestor cultural, não tive nenhuma relação com a Lei Aldir Blanc. Eu tenho me detido sobre a Lei em alguns artigos. A Lei não é o foco de uma grande pesquisa minha. Mas, em alguns artigos, eu pego principalmente a questão da participação, da mobilização social. O que mais me interessa na Lei é a grande mobilização social para o agendamento junto ao Congresso e junto à Presidência da República e, depois, a mobilização para a implementação. Ou seja, a questão da participação interessa mais do que, propriamente, a sua efetivação, os seus resultados práticos. Não tenho ligação como produtor poque não sou, de fato, produtor cultural nem gestor. Como acadêmico, é muito mais esse olhar para a questão do agendamento e da participação social.
Sharine: É exatamente o foco da minha pesquisa. Em 2023, com a volta do Ministério da Cultura, a situação do fomento à cultura e às artes no Brasil mudou em comparação com os últimos anos. Quais as continuidades e mudanças em relação a políticas públicas anteriores? Estou pensando na história mais geral, desde os anos 1980, 1990…
Alexandre: você falou 2003?
Sharine: 2023. Quero saber sobre essa mudança que ocorreu agora, em relação ao governo Bolsonaro.
Alexandre: É paradoxal, para usar suas próprias palavras, é espantoso. Mas, na verdade, a mudança se dá no governo Bolsonaro. Não é em 2023. Ela vai se dar em 2020, com a Lei Aldir Blanc. Você tem um aporte, como todo mundo que está na área sabe, nunca visto na área da cultura. Mas não é uma política do governo Bolsonaro. Essa que é a questão. É uma política que surge a partir dessa mobilização ampla do campo cultural. Eu não sei se é o caso, mas acho que isso tem a ver com o que estamos discutindo. Eu tenho uma tese. É um processo de politização do campo cultural, que vai se dando progressivamente, paulatinamente, a partir de 2003. O que eu chamo de politização do campo cultural? É a entrada, neste campo, de valores próprios ao campo político: a questão da participação, da deliberação, da representação. Isso se dá na medida em que vamos vivenciar, nesse período, a partir de 2003, algo que outros setores das políticas públicas já tinham vivenciado, como a saúde, como a educação, que é a realização, por exemplo, de conferências, é a construção de um plano nacional participativo, a criação de um Conselho Nacional de Política Cultural deliberativo e equitativo, entre o poder público e a sociedade civil, a construção do Sistema Nacional de Cultura e, também, o Programa Cultura Viva, com os Pontos de Cultura. Estou pegando, aqui, quatro políticas de estado, digamos assim, o Plano Nacional, o Sistema Nacional, as Conferências e o Programa Cultura Viva, que, me parecem, colocaram para os agentes culturais o exercício da política. Muitas pessoas que participaram desse processo já vinham de experiências anteriores, mas não dá para comparar a quantidade de pessoas que foram envolvidas com as conferências, as milhares de pessoas que foram envolvidas com as conferências ao longo das três versões, as milhares de pessoas envolvidas com os Pontos de Cultura no Brasil ao longo desses anos, com o que ocorria antes. Você tinha experiência de conselhos de cultura municipais, em algumas cidades. Mas estou falando de um processo em âmbito nacional. Eu leio essa grande mobilização em torno da Lei Aldir Blanc a partir desse processo. Eu acho que isso é uma mudança muito grande em termos de financiamento, mas é uma mudança que se dá a partir de um processo anterior. O que muda? No momento de crise sanitária, há uma janela de oportunidade que se abre para o campo cultural para que esse campo possa pautar, agendar um governo que era totalmente contrário ao que ocorria antes. Eu não acho que o governo Bolsonaro não tinha uma política cultural. Eu acho que ele tinha uma política cultural. Não acho que seja um estado anticultural. É um estado cultural, com outra concepção de cultura, com outra percepção em relação à que vinha anteriormente. Tem uma disputa simbólica clara aí. É uma categoria nativa das guerras culturais tentando dar conta disso. O que muda em termos de financiamento, me parece, é esse agendamento do financiamento por parte do campo. Eu acho que essa é uma grande diferença.
Sharine: Você falou sobre o Governo Bolsonaro… As pessoas começaram a falar sobre a Lei Rouanet, por exemplo, gente que não é da área de cultura. É como você falou: não é que não houvesse política cultural….
Alexandre: Não era a que queríamos. Mas isso não significa que não tivesse… Eu diria mais: não foi somente na Secretaria Especial de Cultura que se deu essa política cultural. Estou falando em política cultural no sentido de cultural politics e não de cultural policies. Temos essa disputa simbólica, do entendimento sobre o que é a nação, o que é o povo brasileiro, em outras Secretarias ou em outros Ministérios. Por exemplo, o ministério da Damares [Damares Alves, foi Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Brasil entre 2019 e 2022]. Ali se deu uma disputa simbólica e, portanto, se deu uma disputa política-cultural, nesse sentido de cultural politics. O próprio Ministério da Saúde, durante a pandemia de COVID-19, quando fazia um debate sobre o que é e o que não é a COVID-19, fazia uma discussão também na área simbólica. Se falamos sobre cultura também em sentido amplo, temos que pensar que esse debate também é um debate cultural. Eu acho que havia, ali, uma política cultural. Havia uma postura, uma compreensão desse grupo de fazer um embate, de fazer um contraponto, certamente, a uma proposta anterior que foi se construindo, participativamente, envolvendo seguimentos que nunca haviam sido contemplados por políticas culturais, a população preta, os povos indígenas, o movimento LGBTQIA+. Tudo isso traz uma questão moral, uma pauta moral, que é, volto a dizer, uma pauta cultural. Tem uma disputa moral, uma disputa pela liderança moral, que, para mim, é uma política cultural.
Sharine: A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e a Lei Paulo Gustavo estão no centro das ações do Ministério da Cultura atualmente. Como elas influenciam a estrutura do Ministério da Cultura e o conjunto das políticas culturais? Elas alteram o papel de instituições federais mais antigas, como a Funarte, o IBRAM ou o IPHAN, por exemplo? Na sua visão, essas mudanças serão duradouras?
Alexandre: Acho que ainda é muito cedo para dar qualquer resposta consistente a isso. Com certeza, pelo volume de recursos com que essas duas leis vão trabalhar, em especial a Paulo Gustavo. Especial no sentido de que a Paulo Gustavo está fortemente ligada a um setor, que é o audiovisual. A política para o audiovisual vai ser fortemente impactada por esse recurso, no que diz respeito à Paulo Gustavo. Acho que haverá adequações, reorientações em relação à política cultural do audiovisual a partir da Paulo Gustavo. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura tem um potencial de impacto muito interessante, que é a questão federativa, na medida em que é uma transferência regular, programada, em cinco anos, para os governos estaduais e municípios. Se nós pensarmos em todo o esforço de construção e de implementação do Sistema Nacional de Cultura, que é um esforço que vem desde 2003, com Marcio Meira à frente da Secretaria de Articulação Institucional, inicialmente por ele, a Política Nacional Aldir Blanc vai redimensionar o Sistema. O Sistema foi pensado há 20 anos. É preciso repensar, repactuar o Sistema. Mas a matriz, a lógica, ou seja, a proposta do Sistema permanece. Eu acho que o que vai acontecer é uma repactuação, uma readequação do Sistema a esse novo formato. Mas isso é fundamental. A Lei Aldir Blanc vai colocar em prática a transferência fundo a fundo, que era uma das questões pendentes do Sistema. Outra coisa muito interessante, que também acompanho, é: mesmo que nunca tendo tido a transferência fundo a fundo, de fato, e mesmo com os governos Temer e Bolsonaro, que não incentivaram, ainda que pontualmente, municípios continuaram aderindo ao Sistema. Meu entendimento disso é que é exatamente esse processo. Quando o campo cultural de um pequeno município, de um médio município, de um grande município, entende que, se aquele município adere ao Sistema, ele vai ter um conselho paritário e que, portanto, pode ter uma voz dentro da gestão pública, que vai ter um plano municipal também construído coletivamente, vai ter que ter um órgão gestor minimamente organizado… Ou seja, há uma profissionalização da participação e da gestão. Então, há uma demanda, no meu entendimento, dos agentes culturais municipais aos seus gestores, ao prefeito, à prefeita, para que eles façam essa adesão, mesmo que não tenha recursos. O recurso vai ser simbólico, não vai ser um recurso financeiro. Acho que a Política Nacional Aldir Blanc vai potencializar o Sistema ao trazer o recurso financeiro. Ao acrescentar, aos recursos simbólico e político, o recurso monetário, digamos assim.
Sharine: A Lei Aldir Blanc foi criada em um contexto de pandemia, com forte participação da sociedade civil. Parte da força desse movimento veio da situação de emergência (dificuldades financeiras, espaços culturais fechados, etc). Com a melhora da pandemia, grande parte do setor artístico e cultural manteve o engajamento para aprovação e implementação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e da Lei Paulo Gustavo. O que contribuiu para a aprovação das leis em 2022, mesmo em um governo contrário a essas políticas públicas?
Alexandre: Já dei um pouco a pista desse entendimento, que é esse processo de politização. Temos um campo cultural muito mais capacitado em termos de compreensão da lógica da política e, também, da lógica da política pública. Isso está muito mais espalhado pelo país. Então, temos um primeiro momento de estagnação, mas não foi somente no campo cultural, foi também nos outros campos, com a eleição e o primeiro ano do Governo Bolsonaro. Todo mundo ficou meio estagnado, inclusive o campo cultural. Mas, como você disse, a situação de emergência é uma janela de oportunidade que faz reacender aquilo que estava ali latente. Isso permanece. Eu acho que essa mobilização permanece. É claro, a vitória da Lei Aldir Blanc alimenta mais ainda, empodera ainda mais esses agentes que estiveram liderando ou que estiveram juntos nas mobilizações, pensando que a mobilização pela Lei Aldir Blanc se deu de forma virtual. As mobilizações pelas outras duas leis já estão presenciais. Então, junta-se ao virtual a questão presencial, procurando fortalecer ainda mais o movimento. Amplia ainda mais as possibilidades de negociação. Eu acho que é isso, é um desdobramento do que já vinha antes e, mais imediatamente, um desdobramento da própria mobilização da Lei Aldir Blanc. Não dá para entender a Política Nacional Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo se não entendermos que a Lei Aldir Blanc foi resultado dessa mobilização.
Sharine: Muitos articuladores da Lei Aldir Blanc hoje fazem parte da equipe do Ministério da Cultura. Como esse fato contribui para o processo de institucionalização da cultura?
Alexandre Barbalho: Temos que ver que alguns desses mobilizadores já tinham participado do Ministério da Cultura. Na realidade, esse é um dado interessante. Por exemplo, Alexandre Santini comentou, aqui neste encontro em que estamos, na Casa de Rui Barbosa, na fala de abertura do encontro: “eu sou cria desse processo. Em 2004, era um jovem que entrou num ponto de cultura. Comecei a participar do Ponto de Cultura. Do Ponto de Cultura, entrei no Pontão”. Então, o Santini veio da Sociedade Civil, dos Pontos de Cultura, dessa relação, dessa interface, da sociedade civil com o Ministério da Cultura por meio dos editais. Ele se torna um gestor, primeiro no âmbito federal, no próprio Ministério da Cultura, depois em Niterói (RJ). Esse é um dado muito interessante. A formação política de pelo menos duas gerações. São quase vinte anos dessa política toda. Duas gerações são formadas dentro dessa lógica, nesse movimento que vai de formação de agentes culturais, que estão no campo da cultura, que vão para esse outro campo, que é o campo da política cultural, o campo político-cultural, esse campo híbrido porque é um campo que junta política e cultura. Nesse vai e vem, até mesmo no campo da política cultural governamental. Você tem o campo político-cultural dos movimentos, mas também tem o campo governamental. Então, há esse vai-e-vem. É preciso estar atento a isso: muitos que estão no Ministério hoje já estiveram antes e já estiveram também na sociedade civil. Eu vejo como um movimento rico, de oxigenação do Ministério, de uma troca entre essas duas possibilidades de atuação, na sociedade civil ou dentro do governo. Não vejo como problema, vejo como virtude nesse sentido.
Sharine: É também um trânsito entre os movimentos sociais e a institucionalização…
Alexandre: Exatamente.
Sharine: Às vezes, parece que são coisas opostas, mas não são…
Alexandre: Minha compreensão de Estado vem a partir de uma leitura de Bourdieu. O Estado, para mim, é um campo de disputas, é um metacampo. Não vejo o Estado como aparelho de reprodução da burguesia, como um bloco monolítico. O Estado, ele próprio, é um campo de disputas. Por isso, podemos entender também que, no governo do Bolsonaro, que tem uma concepção de política cultural contrária ao que vinha se efetivando, mesmo nesse governo, há espaço para que, por dentro e por fora, se agende a Lei Aldir Blanc e ela seja implementada. Eu fiz uma pesquisa… Antes da Lei Aldir Blanc, eu levantei que políticas, que ações os estados tinham feito para a questão emergencial. Quase todos os estados já tinham lançado editais, antes da Lei Aldir Blanc, editais emergenciais voltados para todos os segmentos, até mesmo a população indígena. Mesmo governos cujo governador, recém-eleito, era apoiador do governo federal, estava alinhado ideologicamente com o governo federal, mesmo alguns deles, não todos, lançaram editais, por exemplo, contemplando cultura indígena, contemplando cultura quilombola, alguns até cultura LGBTQIA+. Ou seja, é preciso estar atento a essa complexidade, essa possibilidade que você aponta, de quem está nos movimentos sociais. O Estado não é uma entidade abstrata, que paira… O Estado somos nós. Eu sou o Estado porque sou funcionário público. Eu me considero Estado. Você também é. Você está na Funarte, então você é Estado. Essa coisa é porosa. Em especial no caso brasileiro, isso é uma especificidade do Brasil. O cargo de confiança, o cargo de indicação existe nas gestões públicas, nos países de modo geral, mas, no Brasil, esse quantitativo é muito alto, a quantidade de pessoas que você pode indicar uma vez eleito. Isso significa uma entrada muito grande de pessoas que não estavam no Estado e que passam a participar do Estado. Essa é uma ligação muito forte entre o Estado e a sociedade civil. Você estava na sociedade civil, mas “puxa, fui chamado para ser assessor ou secretário”. No outro dia, estou Estado. Depois termina aquela gestão e eu volto para a sociedade civil. Então, este é um movimento que me parece muito interessante.
Sharine: É muito rico… Não sei se você acompanhou, mas vamos conversando… 100% dos estados e 98% dos municípios aderiram à Lei Paulo Gustavo. Foi um número bem maior do que já tinha sido na Lei Aldir Blanc. Sabe como foi feita a articulação? Como os gestores estaduais e municipais percebem a lei?
Alexandre: Eu realmente não teria elementos para responder. Não me debrucei sobre isso, não acompanhei. Acompanhei um pouco mais a Lei Aldir Blanc, de fato. Mas, sobre essas duas leis, não tive proximidade com o processo.
Sharine: Quer falar sobre a Aldir Blanc?
Alexandre: Acho que já falamos… Foi muito esse processo de mobilização. Eu intuiria, mas é uma intuição. É uma coisa impressionista porque não tenho o dado, não tenho elementos. Mas, de uma forma impressionista, eu diria que esse processo se amplia exatamente por conta de uma vitória na Lei Aldir Blanc. “Foi possível, nós conseguimos! Então, vamos conseguir mais.” Isso é um efeito exemplar. Você tem um efeito exemplar e tende a virar uma referência, virar um exemplo. Você fala: “Nós conseguimos ali, em um momento tão difícil politicamente”. A pandemia permanece. Melhoraram os números, a vacinação. Mas a pandemia permanecia no momento das duas leis. Ainda vivíamos em um período de emergência. A crise sanitária, mesmo diminuindo, permanecia. Então, havia um contexto, a janela de oportunidade ainda estava aberta. Só que estava muito mais aberta porque já tinha ocorrido uma vitória. Foi muito mais fácil convencer outros gestores… Tem um dado muito interessante: em vários municípios menores, com a Lei Aldir Blanc, o Secretário de Cultura ou o Diretor de Cultura ou Diretor de uma fundação de cultura daquele município tem mais recursos do que seu colega da saúde ou da educação. Isso é um fato. Um prefeito ou uma prefeita estarão muito atentos a essa possibilidade de chegar recursos mesmo diante da possibilidade de prestar contas. Sabemos que houve muito receio. Até mesmo com toda a reação, com todo o processo que a Lei Aldir Blanc provocou de rever ou de relativizar essa prestação de contas. Nós estávamos em uma mesa agora, discutindo o caso do Ceará, que promulgou uma lei que facilitou a prestação de contas. Isso, para a Política Nacional Aldir Blanc e a Paulo Gustavo, já foi um ganho de experiência da Lei Aldir Blanc.
Sharine: Implantar ou consolidar o SNC [Sistema Nacional de Cultura] é um compromisso dos entes que recebem recursos da Lei Paulo Gustavo. Esse requisito fortalece o SNC como foi pensado originalmente, altera ou atualiza a concepção original? Ou as duas coisas?
Alexandre: Talvez já tenhamos falado sobre isso. É uma readequação, porque o momento é outro. Acho que é um dado interessante. Vamos ver o que vai acontecer. Mas a priori, eu vejo como positivo. Posso até reavaliar isso depois. Mas acho que essa exigência de vinculação – ou seja, adere à Lei, adere ao Sistema -, em um primeiro momento, é positiva para aquilo que eu avalio que o Sistema tem de positivo, que é fortalecer a institucionalização da cultura, promover uma profissionalização da gestão cultural. Você vai ter gestores. Não pode mais ser um “gestor qualquer”, que vai “ocupar aquela pasta sem importância”. Você precisa ter uma pessoa que saiba lidar com o fundo, tem que ter alguém que vai lidar com os recursos que vão chegar. O gestor vai ter que ter a sabedoria política de lidar com conselho paritário. São demandas e exigências que forçam a institucionalização e forçam o comprometimento político na gestão. Eu considero como positivo. Claro, não havia essa previsão. Não tinha como obrigar, no sentido de dizer: “como este município não vai aderir?”. 2% não quiseram aderir à Lei Paulo Gustavo. Você falou 98%?
Sharine: 98%.
Alexandre: Então, a grande maioria quis e isso fortalece o Sistema.
Sharine: 98% é uma marca impressionante. Nunca teve essa marca na área de cultura.
Alexandre: O interessante é ver por que esses 2% não quiseram. Talvez seja uma pesquisa interessante. Ficamos sempre pensando no número grande de adesões. É um número bem pequeno, mas acho que diz alguma coisa também.
Sharine: Eu sei que grande parte dos que não aderiram são cidades pequenas, com menos habitantes. As maiores, com certeza, têm mais estrutura para executar.
Alexandre: Para executar, prestar contas…
Sharine: Acho que, em parte, passa por isso. Parte dos artistas vive de projetos contemplados por mecanismos de fomento direto ou indireto. Embora esses mecanismos sejam importantes, não resolvem a precariedade desses profissionais, que muitas vezes não têm renda fixa e direitos como aposentadoria, por exemplo. Como as políticas públicas podem melhorar essas condições?
Alexandre: Essa questão é um nó central. Você vai ter sempre uma produção que não tem mercado. A política cultural deveria estar sempre voltada para essa produção que não tem mercado. Ao mesmo tempo, é difícil pensar que o Estado possa dar conta dessa grande quantidade de produtores culturais. Estou falando dos artistas, quem produz bens simbólicos. É difícil que o Estado possa dar conta da manutenção, da profissionalização dessa grande quantidade de produtores culturais. Acho que sempre vamos ter essa dificuldade. Não é uma dificuldade somente do Brasil. Quem trabalha, quem estuda a economia da cultura, sabe que a situação dos trabalhadores da cultura é uma situação precária, de intermitência. Há alguns dispositivos interessantes, que o Brasil poderia copiar. Por exemplo, o da França, que tem um sistema de seguridade social. Entre um projeto e outro, entre uma peça e outra, o ator fica seguro socialmente. Existem alguns mecanismos que podem ser copiados, que podem ser pensados. Mas me parece que não é possível equalizar a demanda pela oferta de recursos que o Estado pode oferecer. Acho que vamos ter sempre este problema entre aquilo que se deseja, que se reivindica, e aquilo que o Estado pode dar conta. Mas acho que é possível amenizar essa situação.
Sharine: Nos últimos anos, houve uma repercussão muito negativa das políticas culturais, com questionamentos sobre a Lei Rouanet, por exemplo. Como envolver parcelas maiores da sociedade civil nas políticas públicas para a cultura e as artes, de modo a reforçar sua importância (também para os diferentes públicos) e fortalecer a institucionalidade?
Alexandre: É uma pergunta difícil. Por que eu acho difícil? A política cultural não se dá no vazio, se dá numa conjuntura. Nós vivemos, no caso do Brasil, um processo de empobrecimento material, financeiro. Foi um momento em que nós tivemos uma certa ascensão cultural no governo Lula. Depois, houve uma deterioração dessas condições de vida. Isso tem se ampliado mais ainda. O mapa da fome está voltando. Isso faz com que a população esteja muito mais preocupada com o que ela vai garantir da sobrevivência física, da comida, do trabalho, de onde morar, do teto, do que ficar pensando em política pública de cultura. A cultura está ali se fazendo. Ninguém está destituído do fazer cultural. Senão, não estaríamos aqui falando que o campo reivindica a concepção de cultura. Estamos todos inseridos, somos seres da cultura também. Não só isso, mas somos seres da cultura. Precisamos perceber que outras expressões culturais seriam fundamentais para populações que estão em situação de rua, estão em situação de vulnerabilidade social. Que outras formas de cultura seriam fundamentais para elas, além daquelas que vivenciam? É muito difícil colocar isso como uma pauta para uma grande parte da sociedade que está vivendo dessa forma. Acho que a primeira questão é essa. A segunda é: exatamente porque as políticas culturais… Não é à toa, como você falou, que há uma oposição à Lei Rouanet. Na realidade, é uma lei que veio com o Governo Collor, que não tem nada a ver com os governos petistas. Pelo contrário, desde o início do governo Lula, houve a tentativa de reformular a Lei Rouanet. Isso nunca foi para frente exatamente porque os interesses contrários eram grandes. Mas todo esse processo de política cultural foi contrário a essa política cultural que estava vigente, que estava incentivando, que estava promovendo, estava apoiando as culturas quilombolas, as culturas das religiões afro-brasileiras, as manifestações culturais LGBTQIA+, por conta das questões ligadas à expressão das sexualidades, às expressões dos movimentos feministas e, portanto, de uma cultura anti-machista, anti-sexista, anti-misógina, das culturas indígenas, das cosmologias indígenas. Todas essas expressões culturais se chocam com outras expressões culturais (vou falar no plural porque nunca é singular) conservadoras, que estão bastante fortalecidas atualmente no país. Há visões culturais conservadoras. Grande parte delas é alimentada pelo neopentecostalismo, pelo crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais. Esse é um dado cultural irremediável no país. Nós vamos passar por um processo que é único na história da humanidade, de uma população, do tamanho da do Brasil, mudar de religião, da maioria da população mudar de uma religião para outra de forma espontânea. Tivemos o Império Romano e, depois, o catolicismo. Houve uma grande mudança populacional. A população mudou de uma religião para outra, mas o Estado obrigou. Podemos pensar no Estado Islâmico, que obriga e tal. Mas, no Brasil, isso está se dando de forma espontânea. O Estado não está obrigando ninguém a mudar de religião. O país, que era o maior país católico do mundo, vai se transformar em um país onde a maior parte da população vai ser evangélica. É evangélica dentro desta perspectiva neopentecostal. Esses valores culturais, morais, por exemplo, ser contra o aborto, ser contra o casamento homoafetivo, ser contra as expressões religiosas afro-brasileiras. Estamos falando de expressões culturais. Então, se você tem uma grande maioria da população que é contra essa visão do movimento feminista, do que seria uma cultura feminista, uma cultura da sexualidade, uma cultura das religiões afro-brasileiras, das cosmologias indígenas, é difícil achar que uma política cultural que adere a esses valores possa ter uma grande aceitação popular, se a grande maioria da população, se uma parte considerável da população se encaminha para valores conservadores. Há aí uma questão difícil para ser resolvida, para ser equalizada. Como vai se dar isso? Acho que não vamos mais escapar desse processo. Não vamos mais escapar disso que costumo denominar guerras culturais. Por que são guerras culturais? Porque são políticas culturais distintas em embate, provocando, portanto, este contexto. Eu tenho um aluno de doutorado, um jovem pobre, oriundo das classes populares, preto, de família evangélica, que teve uma formação para ser pastor. Largou e foi foi fazer doutorado em sociologia. Ele disse uma coisa muito interessante: “Alexandre, há dois temas sobre os quais a esquerda nunca vai conseguir dialogar com a maioria da população evangélica”. Ele não disse “toda a população evangélica”, ele disse “a maioria”. São as questões, por exemplo, do aborto e do casamento homoafetivo. São temas inegociáveis e são temas fundamentais para uma política cultural progressista, para uma política cultural que dê conta das diferenças. Esse embate está posto. Algum lado vai abdicar. Eu acho muito difícil que o outro lado abdique. Para qualquer um dos dois lados, é muito difícil que abdique dos seus valores, daquilo em que ele acredita. É uma coisa da especulação… Saímos do dado concreto e ficamos especulando: o papel de uma política cultural seria o de fazer essa mediação. Como é possível a convivência entre as diferenças? Não estou falando da diversidade. A diversidade, dentro de um conceito neoliberal, da UNESCO, significa que nós somos diversos, mas somos unos. Estou falando das diferenças em que as arestas… É como se você pegasse dois quebra-cabeças, misturasse, tirasse algumas peças e montasse. Algumas peças não vão se encaixar jamais… Como lidar com essa dificuldade?
Sharine: Ainda bem, não?
Alexandre: Entende o que estou falando? É uma situação muito, muito delicada. Uma vez, já faz bastante tempo, o Gilberto Gil ainda era Ministro… Ele rodou o Brasil. Teve um encontro em cada região para discutir um programa do Ministério da Cultura, para discutir os editais com as universidades, era um seminário. Teve o primeiro edital. Houve críticas… Para lançar o segundo, o pessoal do Ministério, com o Gilberto Gil, foi fazendo reuniões com pessoas do campo, pesquisadores e agentes culturais. Uma delas foi em Salvador. Um dos temas do Seminário, que poderiam ser abordados, era Identidade e Diversidade. Eu disse: “Era preciso colocar Identidade, Diversidade e Diferença”. Estou falando de 2005, para ser mais preciso. O tema da diferença dá conta desses embates culturais que não se resolvem a partir da lógica da diversidade. Ao mesmo tempo, o Ministro disse: “Mas você não está falando de cultura, está falando em termos de classe social, de lutas de classes”. “Não, estou falando em política cultural e trago aqui o exemplo da sua cidade, Salvador. Eu fiz o doutorado na Bahia, morei lá e acompanhei o fato de algumas igrejas evangélicas, de alguns evangélicos atacarem, profanarem os terreiros de umbanda, de candomblé, os ataques aos pais de santo”. Eu disse: “são duas visões de mundo irreconciliáveis”.
Sharine: É uma coisa que está vindo há muito tempo. É que não percebíamos.
Alexandre: São duas visões de mundo, a priori irreconciliáveis. É preciso discutir isso. Eu volto a esse tempo porque acho que um dos papeis das políticas culturais nesse processo é: como podemos conviver com a diferença? Qual a possibilidade de conviver com as diferenças? É uma questão que eu discutia. Tem uns textos meus, mais ensaísticos, de 2003, 2004, 2005, que acho que estão muito atuais hoje. É preciso dar conta das diferenças, diferenças de sentido daquilo que é radicalmente outro. A guerra que estamos vendo agora, entre Israel e Palestina, é isso. É uma guerra cultural. São duas visões de mundo radicalmente outras. Como conciliar essas duas visões de mundo? É preciso, senão uma vai exterminar a outra. A mais forte vai exterminar a mais fraca. Não é que você tenha que deixar de ser islâmico ou deixar de ser judeu. Mas como você pode ser islâmico, você pode ser judeu e cada um professar a sua crença, a sua cultura? Claro que é meio naif isso… É uma coisa do ideal. Mas que a questão está posta, está posta. Como vai ser resolvida eu não sei…
Sharine: Você já falou um pouco, mas, de modo ideal, como imagina deveria ser o fomento à cultura e às artes no Brasil?
Alexandre: Eu acho que tem que ter um conjunto de instrumentos. Não pode ser só uma solução. Temos que fortalecer o orçamento do Ministério. O Ministério tem que ter uma política cultural. Ele vai eleger prioridades, vai eleger áreas de atuação. Precisa de um orçamento direto para fazer isso. Pode fazer diretamente, como opção política. Se estamos em um governo democrático, aquele governo foi eleito democraticamente e, portanto, tem o apoio popular, o gestor da cultura foi indicado por aquele que está eleito. Portanto, ele está ali legitimado pelas urnas. A priori, teria autoridade democrática para estabelecer prioridades, como em todas as áreas. “Nós temos prioridade em tais áreas, temos que fazer uma ação, desenhar políticas para esses setores que nós indicamos como emergentes ou como debilitados”, seja lá qual for o motivo daquele agendamento. Ao mesmo tempo, esse Fundo Nacional, o dinheiro direto do orçamento tem que alimentar os editais. Acho que os editais são muito importantes. Também são uma forma de fazer direcionar o recurso. O edital tem o seu escopo, mas é aberto para a sociedade. Uma coisa é o governo dizer: “nós vamos construir um museu afro porque é preciso”. Ele faz isso por sua decisão. Outra coisa, é dizer: “Vou abrir um edital para apoiar museus comunitários, quilombolas, porque é preciso apoiar essa rede”. São duas políticas voltadas, digamos, para o mesmo setor, a questão da memória da cultura afro-brasileira. Mas, em um, ele vai interferir diretamente, construir com recursos e administrar. Os editais são uma outra forma de atuação do Estado. Quanto aos editais, uma coisa interessante que o governo Lula fez foi chamar a atenção das empresas públicas: “vocês podem utilizar uma parte do imposto que vocês devem para fazer o marketing da empresa, mas uma parte tem que ser em conjunto com o Ministério. Não é possível que a Petrobrás tenha uma política de cultura sem nenhum tipo de relação com o Ministério. Esse foi um ponto interessante. Ele trouxe recursos para dentro da cultura a partir do Ministério. Esse recurso já estava na Cultura, mas estava sendo gerido pela Petrobras, pelo Banco do Brasil, pela Caixa Econômica. O governo traz o recurso para dentro do governo. Nós temos o direito de decidir para onde vai uma parte desse recurso, ainda que seja para editais, mas editais para os quais identificamos uma área a ser contemplada. Esse é um dado interessante do governo. Pouca gente fala sobre isso. Então: fortalecimento do orçamento do Ministério para ter esses dois tipos de ações… Acho que as leis de incentivo são importantes, mas elas têm que ser refeitas. Precisamos voltar a exigir uma parte de dinheiro novo. Ou seja, a empresa não pode ter 100% de dedução. Tem que ter um teto máximo: se é 70%, se é 80%, se é 50%, é uma discussão a ser feita politicamente. Mas é preciso que acabe com o 100%. A empresa está fazendo marketing com dinheiro público, está vendendo a imagem da empresa sem tirar nenhum tostão do bolso dela. É preciso acabar com o 100%, colocar dinheiro novo, que o empresário tem que tirar como investimento dele no marketing cultural. A lei também tem que ter dispositivos – a Lei Aldir Blanc e a Paulo Gustavo já trazem isso… A Lei Aldir Blanc porque é automaticamente de repasse, mas a Paulo Gustavo tem esse dispositivo de federalismo. Não é possível que as leis, por conta de a economia estar concentrada no eixo Rio-São Paulo, mais especificamente em São Paulo, só beneficiem os produtores culturais paulistas. É preciso que haja dispositivos que garantam uma disposição federativa desses recursos. Esse é outro dado importante. E outras formas de financiamento, de risco mesmo. Acho que é preciso um conjunto de ações, de motivações, de campanhas, de esclarecimento para que haja uma lógica de empreendedorismo. Você tem um conjunto de produções culturais que pode ser beneficiado por empréstimos com algum tipo de juros mais baixos, com algum tipo de facilidades. Mas acho que é preciso criar mecanismos de mercado também, mesmo que seja um pouco mais facilitado, como microcréditos. Acho que precisamos criar instrumentos para quem quer empreender e, ao mesmo, motivar esse empreendedorismo, essa lógica do empreendimento na área cultural. Assim voltamos para sua questão: como dar conta desses trabalhadores da cultura que ganham mal, que vivem mal? É preciso dar elementos para que eles possam não depender tanto do Estado.
Sharine: Porque é muito frágil… Vem um governo de direita ou que não acredite muito na cultura…
Alexandre: Mas estamos falando tudo de forma ideal, não é? Não estou levando em consideração essa fragilidade do governo. Estou levando em consideração que seja uma política de Estado. Mas tudo isso de forma ideal. Para efetivarmos, a conjuntura política teria que ser muito favorável para que essas mudanças acontecessem.
Sharine: Então, era isso. Você quer falar mais alguma coisa sobre o assunto?
Alexandre: Acho que já falamos muito.
Sharine: Obrigada!