Canclini na Cátedra
Entrevista realizada com Célio Turino, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 16 de novembro de 2020.
[Sharine] Gostaríamos que contasse histórias sobre artistas e outros profissionais de cultura que se engajam politicamente na elaboração de políticas públicas para o setor. A partir dessas histórias, quais seriam os anseios e as motivações dos artistas e de que modo afetariam a sociedade em geral?
[Célio] Eu participei desde o início dessa construção. Tão logo começou a pandemia, no início de março, eu escrevi um texto, dizendo da necessidade de uma lei específica para a cultura, por perceber o quanto estava sendo afetada pela pandemia. Algumas pessoas do Congresso me procuraram, pedindo ajuda e eu comecei a ajudar na formulação de propostas. Não há como entender a Lei Aldir Blanc sem conhecer o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, tanto do ponto de vista teórico, conceitual, quanto do ponto de vista da ação e mobilização. A Lei Aldir Blanc, ainda no início de março, era chamada de Emergência Cultural. O nome Aldir Blanc foi apresentado no dia da votação no Congresso, pela Jandira Feghali. A história da construção se deu a partir dessa experiência da Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, e os mobilizadores também. Não houve tanta participação dos artistas, digamos assim, mais profissionais. Houve do artista vinculado a movimentos comunitários, via Pontos de Cultura.
Não sei qual a extensão da sua pesquisa, mas, se você pegar a gênese dessa construção, vai perceber que as principais lideranças e os mobilizadores vieram e foram formados a partir dos Pontos de Cultura. Depois a Lei ganhou a dimensão maior de interlocução, maior aderência. Tanto que a lei foi uma surpresa. Você poderia fazer uma comparação com a proposta de lei semelhante, assinada pelos deputados José Guimarães e André Figueiredo[1]. Também foi apresentada uma lei em São Paulo muito semelhante, via movimentos de artistas e ela não prosperou, teve só uma mobilização em rede, por internet, mas não se efetivou. Qual o segredo de a Lei Aldir Blanc ter se efetivado? Na articulação e na mobilização pelos territórios, a partir do processo de consenso progressivo que foi se estabelecendo a ponto de, surpreendentemente, num contexto de guerra cultural, de ataque às artes e à cultura, desmantelamento do Ministério da Cultura, ser aprovada uma lei com valor considerável. Foi o maior programa, em termos de investimento da união, do país.
Antes disso, o programa que mais mobilizou recursos foi o que eu dirigi e idealizei, os Pontos de Cultura e o Cultura Viva, que no meu período – fiquei seis anos no Ministério da Cultura – chegou a R$ 800 milhões. Faz 10 anos. Deve estar hoje em R$ 1,2 bilhão ou R$ 1,3 bilhão, atualizando o valor. Mas isso no prazo de seis anos. Agora, num período de poucos meses, coloca-se o equivalente a mais de dois anos de captação de recursos pela Lei Rouanet. Então, foi uma vitória surpreendente e que pegou muita gente meio desapercebida. Houve um conjunto de ações. A concepção da lei bebe na Cultura Viva e nos Pontos de Cultura, até mesmo quanto ao conceito de “espaço cultural”, o conceito alargado de espaço simbólico, não somente parede e telhado, não somente um teatro físico. Pode ser uma sombra de uma árvore também, desde que se demonstre que, na sombra daquela árvore, foram realizadas atividades culturais regularmente ao longo de dois anos. Isso eu apresentei em vários encontros.
A lei Aldir Blanc também avança no conceito de “ativo cultural”, possibilidade de aquisição de ativos culturais. O que seria isso? Pode ser um poema, podem ser apresentações artísticas, teatro, obras de arte, fotografias. Esse conceito não foi bem assimilado pelos gestores e está sendo menos utilizado do que poderia ser. Mas é um grande avanço nesse sentido. A lei também incorporou três princípios de política pública que foram expressos no texto. O primeiro deles é o da universalidade. Esse é um outro avanço fundamental. Até então, o máximo que nós chegamos foi à política de edital público. Mesmo os Pontos de Cultura, que foi o programa de que eu cuidei, que teve maior escala no país, chegou a 1.100 municípios, 3.500 comunidades, com 8 a 9 milhões de pessoas envolvidas, segundo estudos do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2009]. Eram uma seleção por edital. Com a lei Aldir Blanc, os incisos I e II são por cadastro, que é o acesso universal. Isso tem um efeito que ainda não foi tão bem compreendido. Por exemplo, está muito à frente de uma política de cotas porque, se o acesso é universal, o atendimento é pleno.
[Sharine] Você poderia explicar, um pouco mais, como funciona o acesso universal?
[Célio] É só demonstrar que se preenche os requisitos para acesso à lei que se tem acesso. Basta demonstrar que aquele espaço, que não precisa ser um espaço com paredes, tem funcionamento regular ao longo de dois anos, e se tem o direito a isso. Assim como basta a pessoa demonstrar que é trabalhador ou trabalhadora da cultura. Houve o recorte do governo federal, que foi o mesmo do auxílio emergencial, de R$ 28 mil reais de renda anual, declarada no Imposto de Renda, até 2018. Isso restringiu um tanto desse universo. Mas a gente fez uma negociação para aprovar a lei, para que o governo federal não vetasse a lei e a encaminhasse. É algo que pode ser utilizado, esse princípio do acesso universal, em políticas públicas futuras e permanentes, como, por exemplo, já se demonstrou: a política de subsídio a corpos artísticos estáveis da sociedade ou a espaços culturais. Isso não pelo método meritocrático, entre aspas, ou seletivo. Eles têm o acesso por ser. Tanto que, no conceito de espaço, se incorporam esses espaços simbólicos. A aldeia indígena é um espaço cultural. Há espaços afetivos e de identidade, muito mais do que o que se conhece no conceito mais ocidental, urbano, da arte como algo dissociado da vida. É a arte incorporada ao processo da vida, remetendo ao próprio conceito da Cultura Viva. Esse é o primeiro princípio, o da universalidade.
O segundo princípio, como a lei mesmo diz, é o da emergência. Se você olhar, no último artigo, colocamos em destaque a aplicação da lei para a excepcionalidade, no caso do período da pandemia. Vou deixar um parêntese para aplicação nos níveis municipais e estaduais. Depois eu retomo. Então, ela incorpora esse princípio, que é o da desburocratização e da emergência na ação cultural. O terceiro princípio é o da descentralização. Foi uma descentralização radical. Em qual sentido? Sou historiador, mas gosto de fazer uns cálculos, sempre. Era preciso inflacionar a distribuição do recurso. Teria o fundo de participação dos estados e municípios, mas não seria tão bom porque iria distorcer demais. Esse fundo ficou muito destinado a municípios menores. Então, os estados e municípios maiores não se importaram muito com a construção e o cálculo de distribuição dos recursos do fundo de participação dos municípios (FPM) e do fundo de participação dos estados. Não seria uma boa divisão. Fizemos uma equação e eu falei: população e fundo de participação dos estados e municípios, na ordem de 80% população e 20% FPM. Na prática, o efeito é o seguinte: um estado como São Paulo recebeu o maior valor final, mas o menor valor per capita, o que dá R$ 5,70 por habitante, enquanto o Amapá recebeu um valor menor final, mas um maior valor per capita, de R$ 24,00 por habitante. Acho que ficou distorcido. Eu ainda teria aproximado um pouquinho mais. Mas, enfim, tinha que fazer. Fiz nesta mesa, à mão. Tinha que sair e assim foi feito.
A lei foi aprovada já com critérios de descentralização dos recursos, uma descentralização radical. Para você ter uma ideia, o Sistema Nacional de Cultura chegou, no máximo, a dois mil municípios com alguma adesão ao sistema. São 5.570 municípios no Brasil. Como esses municípios iriam assumir os recursos? Eles não tinham uma estrutura para assumir, mas se decidiu correr o risco. Eu não tenho os dados de cabeça, mas mil e tantos municípios não acessaram o recurso e o recurso está indo para os governos estaduais, para complementar. Então, são esses três princípios: o conceito de espaço; o conceito de aquisição de ativo – que foram as inovações -; e o método.
Nós conseguimos fazer uma reunião, dia 30 de abril de 2020, com Rodrigo Maia. Quem participou foi a deputada federal Perpétua Almeida, líder do PCdoB, que pediu a reunião. Foi a deputada federal Jandira Feghali quem articulou a reunião, mais o José Guimarães e o André Figueiredo, que assinaram um dos projetos de lei. Não foi o projeto de lei encabeçado pela deputada federal Benedita da Silva[2]. O da Benedita da Silva propunha a questão da renda: era um salário-mínimo para todos os trabalhadores e trabalhadoras da cultura. Esse era o ponto. Tinha também outras questões, que você pega pela lei, de prazo, de editais, de prestações de contas. Ocorre que isso não contemplava, e apontamos que era necessário incorporar esse outro universo da cultura. Foi incorporada a questão do espaço cultural do projeto de lei assinado por esses dois deputados, como eu lhe disse. Depois houve mais quatro outros projetos de lei, pegando o audiovisual e outros aspectos. Houve a reunião, a Jandira Feghali me convidou como consultor, mais para orientação teórica, e a Zélia Duncan, como artista. Nós conversamos. Foi uma ótima reunião com o Rodrigo Maia. Ele se comprometeu a encaminhar a urgência da lei e assim foi.
Naquele momento, eles me pediram um cálculo de quanto custaria, mais ou menos, a lei. Eu falei que daria em torno de R$ 800 milhões a R$ 1,2 bilhões. Estávamos com este universo. Foi bom porque o Rodrigo Maia achou um valor bem acessível, concordou e se comprometeu com isso. Quando ele encaminhou a urgência da lei e se comprometeu a nomear a Jandira Feghali como relatora, fomos procurando justificativas para apontar um montante de valor para a votação. Percebemos que o saldo, um saldo fictício, contábil, acumulado no Fundo Nacional de Cultura, ao longo da história do fundo, desde o século passado, estava em R$ 2,87 bilhões de reais. Então, chegamos aos três bilhões. A partir da reunião que houve com o Rodrigo Maia, disparamos a mobilização.
[Sharine] Então a mobilização aconteceu depois da reunião. Como foi, de fato, a mobilização popular e como ela influenciou, de alguma forma, a aprovação da lei? Qual foi a influência dessa mobilização?
[Célio] Até então, era um grupo pequeno, de quinze pessoas. Era um grupo de WhatsApp. Quando pediram para que eu ajudasse, chamei uns amigos. Havia também a assessoria da Benedita da Silva, de deputados também e foi-se misturando. Eles se precipitaram, acharam que a lei deveria ser apresentada logo e com foco na renda. Mas isso não iria atender porque a cultura não é individual, ela depende das coletividades. Por isso, o debate sobre o conceito de “espaço”, nesse sentido mais comunitário, era tão crucial. Apresentamos outra lei. Então, foi assim. Quando houve a reunião de 30 de abril, eu fiz um áudio, assim que acabou a reunião, comunicando o que tinha acontecido, e esse áudio deu uma viralizada boa, nessas redes de pontos de cultura e, também, de gestores. Começou a haver o retorno de gestores, de movimentos culturais. Nós começamos um processo de webconferência. Há o canal Emergência Cultural.
[Sharine] Sim, eu assisti a algumas conferências. São bem bacanas.
[Célio] Eu devo ter participado de uma centena ou mais. Mas houve muito mais que centenas de webconferências em todos os lugares. Tivemos webconferências temáticas, só com gestores estaduais, depois com gestores municipais, por estado, por tema, todos os recortes, circo, teatro, pontos de cultura… É uma população vastíssima. Isso tudo levou, mais ou menos, uns quarenta dias. A lei foi aprovada pelo Senado em 4 de junho de 2020. Mas nós começamos a mobilização no dia 30 de abril e reunimos milhares de pessoas. Teve um dia que eu participei por 14 horas de webconferências, sentado aqui. Quase todas têm esse Espírito Santo do Cerrado de fundo[3]. Saía de um estádio e ia para outro. Havia reuniões até a madrugada… A Jandira Feghali teve um papel fundamental. Foi de uma escuta única. Não conheço outro parlamentar com esse padrão de escuta. Digo isso francamente.
Então, começou a mobilização artística. Aliás, a mobilização artística, sobretudo desse mundo mainstream da arte, foi pequena. A grande mobilização foi de artistas de circo, de pontos de cultura, violeiros, do pessoal da dança de salão e assim foi. Nós fomos incorporando. Era um processo de escuta. Eu falo sobre o processo de consenso progressivo. Estou escrevendo sobre isso. Falei tanto de consenso progressivo, mas não há muita referência escrita. Estou escrevendo um artigo sobre o que é consenso progressivo e qual a base teórica do consenso progressivo porque vem de práticas… Remete à Grécia, mas remete a práticas de culturas comunitárias presentes hoje. Chiapas, com o zapatismo, é todo em consenso progressivo. Estive várias vezes lá. Acompanhei também uma mobilização na Bolívia, sobre o parque Tipnis [Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure]. Foram dois meses de construção de consenso. O Evo Morales queria fazer uma carreteira, queria fazer uma estrada para cruzar o Parque Tipnis, que seria o equivalente a fazer uma estrada no meio do Parque do Xingu. Seria com dinheiro brasileiro, do BNDES e empreiteira brasileira. Houve uma mobilização e não se fez. Mas, para chegar ao processo decisório, eles levaram dois meses.
Aqui também. Íamos incorporando o conceito de “espaço”, incorporando a “cultura alimentar”… Uma série de proposições foi incorporada. Tem um outro item na lei, que não é uma inovação, mas é importante e, talvez por vício, tanto gestores quanto artistas olham mais para ele, que é o caminho dos editais. Mas isso é um vício. É um equívoco porque o melhor da lei não está no edital. Mas todo mundo está com aquela visão meritocrática, mesmo o artista, que quer colocar no currículo que ganhou o prêmio da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, para se achar melhor que os outros. Então, houve essa construção. Quando foi para a votação, nós mapeamos todos os votos no congresso, os 513 deputados federais. Houve um processo de mapeamento, houve até mesmo uma mobilização da base mais do campo da direita, do bolsonarismo, do pessoal de circo, de sertanejo, que foi o que permitiu que, quando a lei foi a voto, todo esse ambiente estivesse costurado. O único partido que votou contra foi o Novo.
[Sharine] Você acha que a participação popular chegou a influenciar? Se não houvesse a articulação popular, não haveria aprovação da lei?
[Célio] Foi determinante. Foi isso que fez a lei. Foi um consenso progressivo a partir dos territórios, via método dos Pontos de Cultura e da Cultura Viva. Foi isso que ocorreu. Isso eu sustento. Tudo o que você pegar, o que for levantado, você vai ver que é isso. Você não vai ver mobilização de grandes artistas, de grandes grupos de teatro. Hoje, talvez, eles sejam até mais beneficiados do que os populares e a turma do circo, porque depois entra o lobby na aplicação da lei. Mas, na construção conceitual, teórica, no método de mobilização, foram esses grupos populares. Eu diria que foi uma das maiores mobilizações sociais deste ano, no país. Se pegarmos o levantamento, deve revelar milhares e milhares, talvez dezenas de milhares de participações. Veja uma diferença muito clara: Eu participei da campanha pelo auxílio emergencial, de R$ 600, porque participo de um outro movimento “A economia de Francisco e Clara”, e defendo a renda básica, a renda mínima. Mas a lei do auxílio emergencial foi feita de cima para baixo. Era toda organizada. Eu vi como era, eu era representante: vinha tudo pronto, as leis prontas, o que tinha que escrever. Vinha tudo mastigado do escritório de Brasília. Bom, e foi aprovada a lei. Mas a lei foi totalmente capturada, do ponto de vista narrativo, pelo Governo Bolsonaro porque não foi uma conquista a partir de um processo educativo, na mobilização social. Ao receberem o auxílio emergencial, as pessoas identificavam nele a dádiva. O direito virou uma dádiva, o que é diferente da Aldir Blanc. O fato de ser um dinheiro da União, mas que vai para estados e municípios também. Eu espero que não tenha, também, a apropriação política indevida nos municípios e estados. Alguma pesquisa irá indicar. No final, eu percebo que não houve.
[Sharine] Conversamos sobre o processo de elaboração da lei Aldir Blanc, os fatores que mais contribuíram para implementação, as dificuldades percebidas por artistas e profissionais da cultura, os principais atores sociais envolvidos – você me deu uma grande pista sobre os pontos de cultura. Há duas perguntas que acho que seria bacana se pudéssemos, agora, aprofundar: qual a relação entre a lei Aldir Blanc e o Sistema Nacional de Cultura? Você acha que a lei traria continuidade ou fortalecimento para esse sistema? Qual a importância desse sistema para a cultura brasileira e para os artistas?
[Célio] O Sistema Nacional de Cultura, que estava em desuso, apesar de todo o esforço, foi retomado e sua importância foi percebida a partir da necessidade de aplicação da Lei Aldir Blanc. Você pode ver – talvez valha um cruzamento – que muito poucos municípios que aderiram ao sistema não receberam o recurso da Lei. Provavelmente, esses municípios – talvez até a totalidade dos que não acessaram a lei ou que não se mobilizaram em torno dela – não tinham nenhum tipo de compreensão ou adesão ao Sistema Nacional de Cultura. Eu sei de um dado. Vou falar de cabeça, não sei se o dado é este, exato: nos 15 primeiros dias após a aprovação da Lei Aldir Blanc, houve 45 adesões de municípios ao Sistema Nacional de Cultura.
[Sharine] Foi um dos dados que eu levantei na minha pesquisa.
[Célio] Esse é um acelerador do sistema, da valoração do sistema. Eu diria que é um grande legado da lei porque, se o pessoal aderiu, tem aquele famoso CPF – conselho, plano e fundo, que provavelmente não havia. Talvez não houvesse nem órgão gestor de cultura no local. Num município pequeno, o prefeito viu lá que tinha R$ 200 mil ou R$ 500 mil para receber. Talvez não houvesse um funcionário cuidando de cultura ou, no máximo, aquele funcionário que cuida da festa da padroeira, da festa de aniversário da cidade, foi designado para cuidar de cultura. Isso é um legado também. Acho que a Lei precisa ser bem analisada. É importante que tenha estudos como o seu, ainda mais acompanhado pelo Canclini, que vai dar um ganho, um peso nisso. A Lei precisa ser bem avaliada para que seja perenizada.
[Sharine] Você acha que há chance de continuidade da lei? Talvez não a lei em si, como foi criada agora para a emergência, mas alguns de seus pontos principais?
[Célio] Esse método, sim. Eu penso que sim, mesmo que não seja nesse valor anual, de três bilhões, mas é possível. Não sei quantos municípios realmente receberam, acho que foram 3 mil e poucos.
[Sharine] Eu tenho esse dado aqui. Se quiser, eu abro. Foram 75% dos municípios brasileiros. É bastante coisa.
[Célio] Quatro mil municípios…
[Sharine] Em torno disso…
[Célio] Conseguiu-se criar um sistema de distribuição do recurso, apartidário, com critério uniforme de distribuição. Por que não esse sistema, como acontece com o SUS, permanentemente? Mesmo que seja com uma verba de R$ 1 bilhão por ano, que seja feita a distribuição dessa forma. É um dinheiro razoável. Eu penso que é importante estudar bem a aplicação da lei agora. Antes de estudá-la, a lei deve ser bem aplicada, não ter nenhum tipo de desvio, nenhum tipo de problema. Em segundo lugar, deve ser bem estudada para que sejam apontados os resultados, os erros e para que possa servir de referência para políticas permanentes.
Veja como era o ponto de cultura, como começou. Quando eu assumi, o Ministério da Cultura tinha cinco funcionários. Era 2004. Em 40 dias, já estávamos com o primeiro edital de Pontos de Cultura na rua. Foi em 14 de julho. Eu entrei no dia 30 de maio. Em 45 dias o programa estava pronto, com metas, edital, na rua. Em dezembro de 2004, nós chegamos a 72 pontos. Deu trabalho para chegar a isso em 31 de dezembro. Em janeiro, nós abrimos um novo edital. Foram 2.500 projetos inscritos; selecionamos 800. Conseguimos conveniar uns 600. Isso era direto. Dá um trabalho que vocês não imaginam. A partir de 2007, eu fiz as negociações para transferir o recurso para estados e municípios. Negociação, não, para todos os estados e municípios grandes, eu ligava e propunha. Em 17 de dezembro, surgiu um dinheiro. Eu e um funcionário ligamos para todos os secretários de estados e municípios com mais de 500 mil habitantes e negociamos. Pegávamos contrapartida, eles davam contrapartida. Nisso, conseguimos saltar de 700 para 2.500 pontos de cultura em um ano, no decorrer de 2008. Chegamos a 2010 com 3.500 pontos de cultura. Mas veja o esforço, o trabalho que deu. Imagine se conseguíssemos chegar, em quatro ou cinco meses, a 4 mil municípios, fazendo com que o município tivesse recurso para garantir o espaço, que é um ponto de cultura. Estou dizendo conceitualmente. Desdobre: um município de 5 ou 10 mil habitantes recebeu 50 ou 100 mil reais, repassou para 3 ou 4 espaços, financiou artista… Seria uma capilaridade que nunca houve no Brasil.
[Sharine] Últimas perguntas para fecharmos: você acha que há diferença entre financiamento público e privado para a produção artística e cultural? Como essas possibilidades acabam se combinando no dia a dia? Quais são as posições, as opiniões dos artistas e profissionais da cultura, com quem você tem contato, em relação às instituições culturais?
[Célio] A cultura é um bem comum e, como é intangível, perpassa a todos, a todas e a tudo também. Não há como o estado se ausentar. Só o estado tem condições de assegurar uma política que seja ampla. Vide o exemplo da Aldir Blanc. Nenhum instituto privado, nenhum patrocinador chegaria nem a 1% do que a gente chegou. Basta ver que o conjunto do recurso captado pela Lei Rouanet – que é incentivado – é de R$ 1,2 ou 1,3 bilhão. Isso é o conjunto. Não há parâmetro de comparação, em termos de escala. Em segundo lugar, há a universalidade. Sempre, pelas instituições privadas, há alguma seleção, de alguma forma. Sempre há uma curadoria. São excelentes curadorias. Não há nenhum juízo de valor. Estou dizendo que sempre vai haver um corte, pela dimensão, pela escala, porque não existe a vocação pública, por mais que seja aberto ao público e de acesso amplo. Nenhuma instituição tem a vocação pública, só o estado. Acho que é isso. Pode-se comparar a Lei Aldir Blanc com tudo o que o SESC [Serviço Social do Comércio], o Itaú Cultural, as empresas privadas mobilizaram nesse período da pandemia. São coisas super meritórias, não estou criticando nada. Pode-se colocar os dados em uma tabela, acho que não é tão difícil mensurar. Não estou falando sobre o orçamento do SESC, mas sobre o investimento direto. O SESC SP faz live todo dia. Eu mesmo já fui palestrante, fiz curadoria de projeto e acho tudo maravilhoso. Mas, se você somar tudo, não há comparação. Somente quanto à lei Aldir Blanc, fora as outras coisas… Agora, eles têm um papel complementar importantíssimo, por quê? Porque o estado tem a obrigação e tem os meios para assegurar a base, mas há outras ações. Entra aí o papel das instituições e mesmo das empresas. Eu não vejo um conflito. O conflito é quando se deixa só para o mercado. Aí há um conflito porque a exclusão será enorme. A lei Aldir Blanc já demonstrou que é possível fazer uma divisão razoável. Depois, claro, é preciso ajustar.
[Sharine] Qual a importância, para as comunidades, os pontos de cultura e a comunidade local, da articulação por uma lei federal para a cultura ou de um financiamento público para a cultura local?
[Célio] Eu vou te falar pelo Cultura Viva. O Ponto de Cultura só se realiza na articulação em rede. Se ele é um ponto isolado, ainda não pode ser caraterizado como um ponto de cultura. Por isso temos muitas ações: o ponto de cultura, a identificação da micro rede que atua no território. Em torno do ponto de cultura, como centro de recepção e irradiação, há as ações, como as de saúde, os pontinhos de cultura, o Interações Estéticas. E vão se fazendo as intersecções, criando uma grande rede. São realizados eventos, chamados de Teias, com todos os pontos de cultura, com milhares de pessoas, para que tenham essa dimensão de consciência, porque o ponto de cultura só se realiza na rede. Desde 2011, o governo federal passou a não compreender a dimensão da Cultura Viva e dos pontos de cultura. Houve uma burocratização, houve uma incapacidade de compreensão dessa dimensão. É uma rede complexa. É simples quando apresentamos. É um ponto, mas é um ponto que tem uma complexidade. O pessoal não quer ver. Não tem dimensão teórica, técnica ou conceitual para compreender. Praticamente, as ações foram deixadas de lado, inclusive o Interações Estéticas. Não lembro qual foi o último…
[Sharine] Foi em 2010 ou 2011, talvez.
[Célio] Foi quando eu saí do Ministério da Cultura. Chegamos a fazer o evento com 15 pontos de cultura no Reino Unido, na Inglaterra. Foram para lá e voltaram. Eu até fui convidado, gentilmente, pelo pessoal lá da Inglaterra. Eu já não era secretário, mas fui. Teve um efeito bárbaro. O teatro do Eugenio Barba, o Odin Teatret, esteve com um ponto de cultura. Houve muitas interações que perduraram por anos a partir desse trabalho. Mas houve um descaso e até um desmonte do programa a partir de 2011. Foi inegável. Mas olha que coisa interessante. As organizações comunitárias, pelo menos uma parte delas, uns 60% ou mais um pouco, se mantiveram como pontos de cultura, mesmo sem receber recursos, mesmo sendo atacadas. E, em 2014, houve a experiência da aprovação da lei Cultura Viva[4], que foi um projeto da Jandira Feghali também. Então, é uma construção, não são coisas aleatórias. A experiência da construção da lei Cultura Viva também foi fundamental para a Lei Aldir Blanc. Posso dizer, com toda a convicção, que sem a Cultura Viva e os Pontos de Cultura não haveria a Lei Aldir Blanc. Sem a construção da lei Cultura Viva, em 2014, não haveria Lei Aldir Blanc.
[Sharine] E sem a participação popular, também, que essa lei gerou.
[Célio] Eu percebi que houve melhor compreensão e apropriação dos Pontos de Cultura junto às organizações de bases comunitárias, aquelas enraizadas na comunidade. Algumas organizações que participaram dos Pontos de Cultura criaram uma verba e se diluíram, desapareceram, tomaram outro rumo na vida. Mas aquelas sólidas, que foram pela primeira vez reconhecidas, empoderadas, puderam desenvolver o trabalho com autonomia, com protagonismo, estão aí até hoje, tanto que a cultura brasileira é beneficiária dessa mobilização. Infelizmente, quando entra na estrutura do Estado… Por exemplo, o pessoal do circo está sendo injustiçado. Eles tiveram papel fundamental para implementação da Lei Aldir Blanc. Mas os municípios não querem dar recursos para eles porque não têm sede no município.
[Sharine] Como se circo não fosse itinerante…
[Célio] São esses problemas… Eu falei da construção da lei e de seus postulados teóricos. Agora tem a aplicação. Estão surgindo os resultados. Acho que ainda leva um tempinho para termos um quadro. Uma pergunta para você, agora invertendo. Eu acho que poderia ver com o Prof. García Canclini se houve alguma experiência no mundo – na América Latina, eu sei que não houve – semelhante à Lei de Emergência Cultural no Brasil.
[Sharine] O Juan Brizuela está trabalhando com a comparação – mas o foco dele são os pontos de cultura – entre Brasil, Argentina e México. Pelo que conversamos, nas últimas vezes, de fato, não houve nenhuma experiência semelhante à Lei Aldir Blanc, pelo menos aqui na América Latina.
[Célio] Eu digo uma Lei de Emergência Cultural. Na experiência brasileira, é um volume razoável, são R$ 600 milhões de dólares, não é pouco dinheiro. É bastante interessante saber sobre outros países que tiveram experiências semelhantes. Valeria fazer um estudo comparado. No período da COVID-19, o que houve? Trabalho intermitente. Mas, no caso da Inglaterra, por exemplo, aplicaram o que já tinham. Não sei se foi algo a mais. Eu tentei procurar isso. Não achei nada, nenhuma lei específica de emergência cultural e COVID-19. Boa sorte!
[Sharine] Muito obrigada!
[1] Célio Turino refere-se ao Projeto de Lei nº 1089/2020, de autoria de José Guimarães, André Figueiredo e Fernanda Melchionna, que “dispõe sobre a concessão de benefícios emergenciais aos trabalhadores do setor cultural”.
[2] Projeto de Lei nº 1075, de 26 de março de 2020.
[3] Célio Turino refere-se à decoração de sua sala.
[4] Lei nº 13.018, de 22 de julho de 2014.