Canclini na Cátedra

Entrevista realizada com Chris Ramirez, por Sharine Melo, pela ferramenta Google Meet, em 27 de maio de 2021.

[Sharine] Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc. Estou estudando os movimentos sociais que culminaram nesta lei, a articulação em rede para elaboração da lei e, depois, para sua implementação. Agora, estou começando a focar um pouco mais na execução e nos resultados. Acho que poderíamos começar com você contando um pouco de sua trajetória profissional e de sua participação nessa articulação.

[Chris] Boa tarde! Sou a Christiane Ramirez. Todo mundo me conhece por Chris Ramirez. Sou produtora cultural. Tudo começou quando eu era produtora cultural, nos anos 1990. Eu cheguei a São Paulo em 1991. Tinha passado no vestibular para publicidade e propaganda, me inscrevi pelo CIEE [Centro de Integração Empresa-Escola], para começar a trabalhar, e acabei entrando em uma empresa de produção cultural. Eu era uma garota de 19 anos. Já produzia. Mas não sabia o que era a questão política, toda a construção. Na ocasião, Luiza Erundina era prefeita de São Paulo e Marilena Chauí era Secretária de Cultura de São Paulo. Estávamos discutindo a tal da Lei Sarney. Era o processo de redemocratização do Brasil. Na época, havia o grupo Burti, que era uma gráfica, uma das mais poderosas do Brasil. Era uma época super chique. Eles colocaram aquela antena colorida, que transmitia arquivos por satélite. Imagine! Nós imaginávamos isso nos anos 1990.

Sobre a minha trajetória: comecei na cultura nos anos 1990, quando cheguei a São Paulo. Na época, estava sendo discutida a Lei Sarney. Ainda não existia a Lei Rouanet. Na verdade, havia um processo de redemocratização no Brasil. O José Sarney, que era presidente na época, montou novamente o Ministério da Cultura e estava reformulando as políticas de fomento. Sérgio Rouanet foi a pessoa que instituiu as políticas, até mesmo as conhecidas como Lei Rouanet. Trata-se de todo um programa nacional de fomento. Cheguei a São Paulo em 1991 e comecei nessa disputa de debater cultura desde então. Essa mosquinha me pegou. Eu trabalho na área cultural. Sou uma especialista na área de direito autoral, patrimônio histórico e gestão pública na cultura. Estou fazendo, neste momento, um curso de gestão pública, pela Anhembi-Morumbi, à Distância, aproveitando a pandemia de COVID-19 para aperfeiçoar meu conhecimento em relação aos três poderes. É uma questão que senti muito em nós, como sociedade. Não temos nenhum conhecimento em relação à política. Nós preferimos nos abster sobre essa relação, o que é péssimo porque, se vivemos em sociedade, já somos atores políticos. Não existe “eu não gosto de política”. Da mesma forma, desconhecemos em absoluto os três poderes. As pessoas falam “eu odeio o governo” e entra tudo nesse balaio.

Em realmente sou uma pessoa que gosta muito de pesquisar e estudar sobre as áreas em que atuo. Eu me aprofundo realmente naquilo que considero importante. Como sou uma pessoa que se tornou uma referência, uma formadora de opinião no setor cultural no país (são 32 anos de cultura), tenho que, no mínimo, ter conhecimento e ter pesquisa para que possa, de fato, orientar as pessoas e meus pares. Este é um pouco da minha trajetória. Vim para Brasília para trabalhar. Atuei em São Paulo na área cultural. Morei dez anos em Florianópolis. Nessa ocasião, eu me deparei com o Sistema Nacional de Cultura e ajudei na implementação. Eu era servidora pública e trabalhava como voluntária, ajudando as pessoas a entender o que é um fórum, o que é um estatuto, o que é uma plenária… Como é isso, esse processo democrático? O que é o Estado Republicano de Direito? Eu fazia essas orientações para nos instituirmos como corpo político porque acredito que toda nação só é soberana quando tem muito bem instituída a questão identitária e cultural. Não existe um país, que se torne uma nação, que não tenha a cultura como um de seus pilares de desenvolvimento social. Essa é minha luta. Essa é minha vida, na verdade. Eu luto por isso. Trabalho há quase quarenta anos nisso. Estou com 48 anos. Tenho 34 anos de carteira assinada. Essa é minha luta.

Eu vim para Brasília, trabalhei no Ministério da Cultura, coordenava o Conselho Nacional de Política Cultural. Fui a última coordenadora, na gestão progressista do país. Depois, o conselho foi praticamente extinto, como sabemos. Ele não tem uma função operacional, nem uma agenda permanente como estrutura básica de um setor na pasta federal. Então, é absolutamente negligenciado. A partir daí, eu assumi – gosto muito de dizer – a Fundação Brasileira de Teatro, que é o legado de Dulcina de Moraes. Fui uma das gestoras que assumiu no período de pós-intervenção do Ministério Público. Foi a primeira prestação de contas, ao Ministério Público Federal, da Fundação Brasileira de Teatro Dulcina de Moraes, apresentada desde 1996. Dali, Benedita da Silva me convidou para trabalhar com ela na Comissão de Cultura[1]. Sigo com Benedita. Nós saímos da comissão em março deste ano porque, em 2020, as comissões ficaram sem operação. Porém, a mesa diretora permaneceu, com o presidente e sua assessoria técnica. Hoje estou no mandato da deputada Benedita da Silva. Essa é minha trajetória na cultura brasileira.

[Sharine] Conte um pouco sobre sua relação com a Lei Aldir Blanc, especificamente. Como foi a articulação, qual foi o seu papel e o da deputada?

[Chris] Eu, particularmente, tenho uma paixão por esse processo porque, quando Benedita me convidou para estar com ela na comissão, tinha um grande desafio: iniciar a gestão de uma comissão dentro de um setor que já havia sido declarado inimigo do governo. Benedita tem um perfil conciliador, tem uma diplomacia nos seus atos, além de ter, obviamente, um conhecimento político que é inenarrável, é absoluto. Então, Benedita decidiu: primeiro, ela instituiu o partido da cultura e convidou todos os parlamentares do Congresso Nacional, sabendo da desigualdade. Posto isso, ela resolveu instituir o partido da cultura. Nós tínhamos uma missão: defender as principais políticas da cultura brasileira, entender as fragilidades do setor cultural e compreender por que é sempre essa luta. A cada gestão, a cultura arregaça as mangas, vai para rua, luta, passa chapéu. Ela disse: “Chris, eu queria uma pessoa com uma experiência como a sua, de vivência, de produção, de executivo e de estudo, porque precisamos organizar essa situação”.

Ela pegou a relatoria da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Rouanet, para construir parte da solução. É importante separarmos. Na época, a Lei Rouanet realmente estava sendo readaptada. Ela pegou esse relatório pronto para apresentar possibilidades de melhoria na Lei Rouanet. O que poderíamos mudar para descentralizar? E pegou também a questão da regulamentação do streaming, que está em pauta agora, a questão dos novos formatos de transmissão e distribuição de conteúdo audiovisual brasileiro. É importante lembrar que 24 países já possuem esses princípios. O Brasil só estaria se atualizando para ter os mesmos direitos e poder fazer parte do pacto internacional. Junto a isso, o deputado Paulo Teixeira estava trabalhando na regulamentação do Sistema Nacional de Cultura. Benedita chamou o Parlamento e disse: “vamos instituir o Partido da Cultura? Vamos separar as diferenças? Temos um setor de 10 milhões de trabalhadores, de 130 mil empresas, e precisamos achar uma solução para essas empresas”.

Quando terminou 2019 e começou 2020, estávamos exatamente distribuindo o relatório da comissão de cultura. Tínhamos um balanço. Sabíamos o que estava acontecendo e sabíamos da fragilidade da cultura brasileira. Nessa ocasião, eu adoeci. Para quem não sabe, em Brasília, em março, é um período de seca. Eu adoeci. A Benedita também adoeceu. Ela chegou do Rio e ficou com gripe, o que é natural nesse período. Nós estamos vivendo isso agora. Então, nós fomos mandadas para casa. Havia 18 casos de COVID-19 na Câmara. Nesse processo, a Benedita chegou de viagem e me entregou uma pastinha, dizendo: “Chris, esses são os pedidos da Cultura porque muitos estados e municípios já estão em processo de paralização total da Cultura”. Havia muitas denúncias de editais cancelados. Tudo o que tratava de mulher, negros e LGBTQIA+ foi cancelado, sem justificativa operacional, porque são defendidos na Constituição Federal. Ela me deu uma pasta com um bloco de documentos e foi embora. Eu tinha que ir para casa; a Câmara nos mandou para casa. É importante lembrar que lá tem um só sistema de ar-condicionado. Uma pessoa espirra e 15 mil funcionários pegam COVID-19. É grave mesmo. Na hora em que entrou no carro, ela me disse: “você tem uma tarefa. Você vai nos apresentar um estudo, vai montar uma comissão com os consultores legislativos e organizar a lei para a cultura. Nós temos que apoiar esse pessoal. Temos que ajudá-los. Eles não terão trabalho. Não conhecemos essa pandemia. Vamos fazer alguma coisa para o setor cultural”. Eu comecei. Isso foi no dia 12 de março. No dia 14, começaram os decretos estaduais e, no dia 16 de março, a deputada Benedita pediu o início da construção da Lei da Cultura. Ali nós construímos o Projeto de Lei nº 1.075.

Duas questões são importantes: nem o Congresso Nacional nem a Câmara existiam de modo virtual, porque estava tudo começando. Também não existia, na época, nenhum orçamento vinculado a esses trabalhadores da cultura. Nós temos um lapso dentro da estrutura – e estou trabalhando nisso agora – que é a formalização das profissões: o CNAE [Classificação Nacional de Atividades Econômicas], o que não é considerado como MEI [Micro Empresa Individual] e 78 profissões que a Fundação Getúlio Vargas hoje já entendeu que são da Cultura. Quer dizer, nós temos esse lapso de formalidade do setor cultural. Nós tivemos que fazer essa engenharia. Como construir? O que fizemos? O Projeto de Lei da Aldir Blanc foi o 1.075, da Deputada Benedita da Silva e de mais 25 nomes: Joênia Wapichana, Marília Arraes, David Miranda, Edmilson Rodrigues, Natália Bonavides, Fernanda Melchionna, Airton Faleiro, Lídice da Mata, Paulo Teixiera, Marcelo Freixo, Túlio Gadêlha, Margarida Salomão, Sâmia Bomfim, Luiza Erundina, Alexandre Padilha, Talíria Petrone, Carlos Veras, Chico D´Angelo, Gleisi Hoffmann, Erika Kokay, Alexandre Frota, Maria do Rosário e Rosa Neide. A deputada Alice Portugal também pediu para participar e a mesa não concedeu. Mas nós concedemos sempre o nome dela, como reconhecimento. Foi por um lapso de gestão porque não havia o processo da Câmara dos Deputados Virtual e a mesa não acrescentou. Mas ela é coautora de honra. A deputada Áurea Carolina estava em licença-maternidade, mas, com a equipe dela, nós construímos essa Lei.

A Lei tinha um primeiro objetivo: pegar as leis possíveis e viáveis. A consultoria da Câmara é maravilhosa. São eles que subsidiam todo esse processo: o que é legal, a Constituição, o que pode, o que não pode. Nós tínhamos o acúmulo da Comissão de Cultura e sabíamos as exigências e possibilidades. Por exemplo: ampliar o prazo de projetos culturais que estavam com recursos na conta, pegar o modelo Cultura Viva para um desembolso de verba para espaços culturais, tendo uma média de R$3mil a R$5mil. Na época, não existia orçamento de guerra, renda básica. Não existia nada disso. Isso tudo entrou em abril e maio. Nós estamos falando do dia 14 de março de 2020. Quer dizer, essa lei contemplaria qualquer ação que o Congresso Nacional fizesse para beneficiar os setores de trabalhadores e de produção e serviço no Brasil. Nós deixamos uma lei aberta, genérica, cabível para tudo o que pudesse ser construído. Assim foi. Depois, a Deputada Jandira Feghali pegou a relatoria e fez, como falamos, esse “tricô”, essa tecelagem maravilhosa, que foi a Lei Aldir Blanc 1.

Eu tenho algumas críticas, depois que executamos. Sabemos que não é uma questão da Deputada Jandira, é a questão da ausência de um Ministério, de Regionais da Cultura, de uma estrutura. Sabemos que as eleições de 2018 alteraram o cenário do país como um todo e todas as estruturas de determinadas áreas. Qualquer área de conhecimento que promove reflexão não necessariamente tem ideologia de esquerda, mas tem a capacidade do pensamento do outro, e isso é algo de que não gostam. Estávamos nos deparando com essa situação. Havia a preocupação de construir uma possibilidade digna para o setor cultural, de analisar a função desse repasse descentralizado. É importante dizer que, na ocasião, estávamos discutindo como seria o repasse. Já havia sido dito que a gestão toda seria tratada dentro do gabinete do Ministro.

Até o pessoal do Sistema Nacional de Cultura comentou: “olha Chris, preparamos tudo para usar o Sistema para fazer esse repasse. Só que isso está sendo tratado no Gabinete do Ministro”. A Secretaria Especial de Cultura passou do Ministério da Cidadania para o do Turismo e isso só foi resolvido em abril. Até hoje, o orçamento da Cultura segue no Ministério da Cidadania, parte dos cargos segue no Ministério da Cidadania e a outra parte foi para o Turismo. Quer dizer, não havia como fazer uma gestão integrada e sistemática dessa política pela Secretaria Especial de Cultura. Nós pegamos exatamente o Artigo 16A da Constituição, que descentraliza os Estados e Municípios. Essa foi a base da construção da Lei Aldir Blanc. Achamos uma solução justa e legal para que pudéssemos construir o processo do perfil profissional, formalizar os informais, dar garantia à nossa construção identitária, que vem através da arte e da cultura brasileira, e dar, digamos, um suspiro, um acolhimento, um amparo nesse momento. Buscamos também, de alguma forma, contar com o país todo, porque sabemos que quem segura o “rojão” da cultura são os Estados e Municípios. Na verdade, quem gera os recursos são Estados e Municípios e o Distrito Federal. Então, a partir dali foi construído com eles.

O Projeto de Lei da Deputada Benedita foi composto por cinco cartas especiais. Uma delas tinha mais de 130 mil assinaturas. Só para você ter noção. É a do pessoal da baixada do Rio de Janeiro, de todas as comunidades de periferia e favela. Todas. Que produzem cinema, vídeo, hip-hop, artes plásticas. A maioria da galera mora na Espanha, na Alemanha. Ninguém está aqui mais. Essa turma foi atendida pelo Sistema Nacional de Cultura, em 2006, foi instruída pelo Cultura Viva e pelos Pontos de Cultura. Todo mundo que trabalhava, os jovens que saíram do tráfico, que foram fazer música… Nós recebemos o documento desse grupo. São duas páginas de documentos de pessoas que nos mandaram cartas e do Fórum Nacional de Secretários. Eles disseram: “precisamos, no mínimo, disso”. Ali começou todo esse processo da Lei Aldir Blanc. Quando eu era do Conselho – participo de alguns grupos até hoje, dos colegiados -, eu chamei a turma: “vamos construir juntos”. Esse foi um processo construído também em 2019. Eu não consigo dissociar porque isso começou no dia 27 de fevereiro e o projeto propriamente dito da Lei Aldir Blanc, no dia 14 de março. Estávamos muito envolvidos no processo, vivendo a comissão, fazendo a entrega da comissão, sabendo de todos os problemas, e entrou isso. Para nós, foi fundamental criar uma solução descentralizada, utilizar os recursos do Fundo Nacional de Cultura e analisar esse processo como um experimento mesmo, um processo histórico que nunca aconteceu neste país. Mas acho que nós pegamos de surpresa. Ninguém imaginava. Fomos mais rápidos que eles, e acho que é um sucesso. Você sabe que a luta ainda continua e, com certeza, vamos falar disso depois.

[Sharine] Sim. E como foi a passagem do Projeto de Lei da Deputada Benedita da Silva para o final, da Jandira Feghali?

[Chris] Acontece o seguinte: no processo legislativo, existe uma coisa que se chama “apensar”. O primeiro projeto que entra na Casa acolhe os demais projetos de lei. O Projeto da Deputada Benedita foi o primeiro. Depois entrou o projeto da Deputada Jandira. Ela não assinou. Quando você é autor ou coautor de um projeto, você não pode ser relator. Então, ela fez um esquema, que ajudou a construir. Ela participou. Ela iria assinar o primeiro, o Projeto de Lei nº 1075. O primeiro telefonema que a deputada Benedita deu foi para ela. E ali ela disse: “não, vou pegar a relatoria para conseguirmos vencer”. Não havia comissões, estava tudo no Plenário, e Jandira é uma mulher muito aguerrida, uma parlamentar aguerrida, uma leoa, que chamamos. Então, ela pegou o projeto. Os grupos já estavam meio organizados. O Mídia Ninja tem um poder de comunicação como ninguém. Há o grupo Emergência Cultural, que é um grupo do Pablo Capilé, do Mídia Ninja. O Mídia Ninja e o Fora do Eixo são o mesmo grupo, separados por área de atuação. Chamaram todo mundo para o debate e para acompanhar o processo que a deputada Benedita vinha fazendo.

Nesse processo, a deputada Benedita teve duas perdas de familiares. Ela disse: “Chris, eu preciso me retirar. Já volto”. Quando foi realizada a primeira reunião da Emergência Cultural… Teve uma no sábado, de que participei e, na segunda, que era nacional, a Benedita apareceu. Ela voltou, e já voltou com aquela coisa Benedita da Silva. Foi uma parceria geral durante o processo. No total, são muitos os autores desse projeto. O projeto 1.075 foi o principal. Foram apensados o 1.089, depois o 1.251, o 2.571 e o 2.780. No total, eram quase 111 parlamentares assinando o mesmo projeto. A deputada Jandira fez aquele relatório. Nós discutíamos de madrugada… e volta, vai, publica, tira, vai e volta, não sei o que. E saiu a Lei Aldir Blanc. Quando foi para o Senado Federal, o senador Jaques Wagner já tinha aprovado o orçamento de guerra, que era a Emenda Constitucional 106. Se dependêssemos do Governo Federal para descontingenciar a verba para a Lei Aldir Blanc, acho que não teria acontecido até hoje. Então, o Marcos Souza, do Senado, disse: “aprovou aqui, gente! Fala com a Jandira, orçamento de guerra!”. Chamamos o Fórum de Secretários Estaduais de Cultura e apresentamos para eles. Teve um relatório, que a Jandira alinhou com o governo, que fala: “nós operamos, nós repassamos, vamos usar o Fundo Nacional de Cultura”. Nós falamos: “não vamos cair nessa, não, Jandira… Vamos para os Estados e Municípios, orçamento de guerra”. Então, o Senador Jaques Wagner aprovou a Lei 1.075, que já era a Lei Aldir Blanc. A decisão foi unânime.

Jaques Wagner aprovou a Lei Aldir Blanc com crédito extraordinário, incluindo a capoeira, de forma descentralizada aos Estados e Municípios. Eu me lembro, como se fosse hoje, dele falando isso. Eu tenho mente fotográfica. Então, assim foi feita. Ela teve, totalmente, a contribuição de todos os setoriais da cultura. Todos os gestores foram ouvidos o tempo todo. A ideia, de fato, era criar uma medida emergencial. Ninguém estava preocupado em fazer uma lei, em aparecer. O objetivo era dar suporte para um setor que vinha sendo destruído. Em 2019, nós sabemos, toda a política foi parada, houve várias denúncias, criminalização, rompimento de acordo de cooperação técnica, descumprimento de termos de cooperação técnica, ausência de repasses de membros parlamentares para contratos já formalizados na Plataforma Mais Brasil. Nós enfrentamos isso na comissão de cultura. Então sabíamos que ou criávamos uma solução para a cultura brasileira ou iríamos de fato cooperar para que fosse assassinada como os 450 mil brasileiros estão sendo. Nós sabíamos disso. Isso já era um diagnóstico do relatório apresentado sobre 2019. A Lei veio com essa perspectiva e dentro dessa tecelagem toda aí.

[Sharine] E quais são os resultados da Lei até agora? Já estão sendo publicadas as estatísticas? Ainda tem muito pouca coisa, não é? Acho que os dados são mais dos estados e municípios… 

[Chris] Eu falei que tenho algumas críticas… Acho que algumas coisas ficaram muito soltas. Precisávamos definir melhor a questão das despesas dos espaços culturais, precisávamos definir melhor a questão da prorrogação do prazo, da prorrogação dos projetos culturais[2]. Você vai ao Salic Web, por exemplo, da Lei Rouanet… Eu fui produtora por 16 anos, então estou acostumada com a Lei Rouanet. No Sistema, há um cronograma de execução orçamentária, há um cronograma de produção de execução, há contratação, há contratos que você fecha por um período porque às vezes sai mais barato, lembrando que, na Lei Rouanet, há tabelas que balizam os custos. Quer dizer, não era possível prever um projeto de acordo com um decreto pré-pandemia. Seria necessário alterar o cronograma de execução orçamentária. É isso que diz a lei e isso não foi seguido.

O que vejo é o seguinte: a Lei poderia ter sido um pouco mais clara, mesmo respeitando os princípios da hegemonia e da discricionaridade dos entes federados. Quando fala sobre as políticas públicas, poderia ter apontado um pouco melhor. A questão dos cadastros eu achei uma grande falha. A Benedita tentou retirar a obrigatoriedade da homologação a partir dos cadastros, por duas razões. A primeira é que eu estava no Ministério da Cultura quando toda a equipe do Cultura Viva foi exonerada. Quer dizer, tínhamos uma política sem continuidade. O segundo ponto é que não caberia, numa lei emergencial, vincularmos a homologação aos cadastros, nem mesmo o dos beneficiados. Os Municípios seriam responsabilizados por esses beneficiários, criminalmente, como diz a regulamentação do Decreto 10.464, diante de uma política que não existia mais e nem era incentivada, porque a lei não deu incentivo para que fossem estruturados os cadastros. Essa é a grande crítica que eu faço até hoje, como gestora pública que sou também. Tenho currículo para falar em nome de gestão pública. Essa é minha maior crítica.

A outra questão é: foi uma lei muito bem aceita, que teve praticamente 74,9% de adesão.  1614 municípios, se eu não erro, não aderiram à lei, muitos com medo de assumir um compromisso, com recursos na conta em novembro, e ter que mudar a gestão de acordo com o processo eleitoral em dezembro, deixando para o outro a prestação de contas no seu nome, e vinculado a esse cadastro de homologação. Eu acho que deveria ter sido o seguinte: a partir do decreto que cada município e estado teria que publicar sobre o uso do recurso, isso ficaria como um compromisso da prefeitura, do município, não do gestor. A obrigatoriedade desses cadastros tinha uma boa intenção, que era firmar, fortalecer a possibilidade de um cadastro. Mas não no meio de uma pandemia, não sem o Ministério da Cultura, não sem os recursos previstos para isso.

A adesão foi muito boa, mas a execução foi baixa. Existe o Plano Nacional de Cultura. Em nenhum momento foi solicitado que fossem seguidas as regras do Plano Nacional. Poderia ser um critério, como a Lei Paulo Gustavo apresenta: seguir as metas do Plano Nacional de Cultura para o cumprimento de forma emergencial. Isso é uma análise, pela baixa execução. Eu acredito que foi um processo histórico, absolutamente benéfico, teve uma adesão, vamos arredondar, de 75% dos entes federados, teve uma execução que chegou a 70% também. Muitos desses recursos estão na conta, parados desde o dia 31 de dezembro porque ninguém confia em mexer nesse dinheiro enquanto não for discutido. Eu acho que agora, no dia 2 de junho, caduca a Medida Provisória 1.019. Então, com a decisão do Tribunal de Contas da União, os municípios e estados terão uma tranquilidade.

Acho que foi um grande processo, foi um grande aprendizado para todos nós. É fundamental ter políticas públicas. É fundamental ter mecanismos como o Sistema Nacional de Cultura, como já experimentamos no SUS [Sistema Único de Saúde] e na Educação, que funcionam muito bem. Todos os estados e municípios que instituíram comitês paritários com a sociedade e com o setor conseguiram abranger os beneficiários e atender a ponta. Os Estados e Municípios que mantiveram a política centralizadora beneficiaram os mesmos e, provavelmente, serão punidos. O Decreto diz que isso vai ser apurado e ele concede ao Tribunal de Contas da União dez anos para essa averiguação, após a entrega da prestação de contas pelos entes federados. Mas, de uma forma geral, eu acho que houve uma ausência muito grande, porque o Governo Federal publicou 14 diplomas que regulamentavam a lei. Esses 14 diplomas possuem inconformidades entre eles. O próprio decreto de regulamentação não respeitava os prazos da Lei. O próprio cronograma do Comunicado 1, de 2020, que estipulou como prazo final 26 de outubro… Se o Estado recebe o dinheiro em 26 de outubro, ele não tem quatro meses para desenhar o empenho. Eles ignoraram isso. Eu responsabilizo a gestão federal pelo prejuízo da aplicação da Lei Aldir Blanc. Acredito que todos aqueles que se empenharam, aderiram e peitaram a realidade assumiram o compromisso e disseram: “vou colocar esse dinheiro no município porque é um dinheiro que está vindo e vai circular; esse dinheiro vai pagar aluguel, esse dinheiro vai pagar imposto, esse dinheiro vai beneficiar um espaço cultural para que não feche, esse dinheiro vai comprar remédio, vai ser usado na farmácia, no mercadinho… e vai aumentar a dignidade das pessoas. É que isso está em mim. Eu vivi esse processo. Até hoje eu vivo este projeto. Então, não tenho como não me empolgar.

Na página do Sistema Nacional de Cultura, há todos esses dados. No geral, apresentam baixa execução dos municípios. Na maioria da estrutura de quem aderiu ao Sistema Municipal de Cultural ou ao Sistema Nacional, que construiu seu Sistema Municipal, as secretarias foram desmontadas e voltou o X-Tudo, que é a secretaria que abarca lazer, cultura, turismo e educação… Há uma pessoa lá, que assume a pasta da cultura e você sabe que é assim que funciona. Eu conheço este país. Eu viajei por 21 anos, documentando o patrimônio histórico deste país e até mesmo a produção industrial. Então, acho que conheço um pouquinho. Quer dizer, você tem o período eleitoral, uma pandemia, o negacionismo, as pessoas morrendo. Nós temos que nos adequar, todos nós. A maioria das prefeituras não tem telefone, não tem computador para as pessoas trabalharem. Havia um prazo de 15 dias para um processo gigante: estruturar decreto, publicação, normativo, regulamento, falar com a controladoria, conseguir aprovar plano de ação pela Plataforma Mais Brasil, esperar a resposta do governo federal, responder diligência, abrir edital, fazer processo simplificado, fazer cadastro, homologar cadastro… Eu acho que nós fomos maravilhosos. Eu acho que, diante de todas as dificuldades, nós fizemos um excelente trabalho.

Acho que houve, sim, uma grande evolução até mesmo em relação às diferenças políticas. Eu falei com todo o Brasil todos os dias e não ouvi ninguém falar “PT” ou “Bolsonaro”. As pessoas queriam comer, as pessoas queriam dignidade. Dignidade, não era comida… As pessoas queriam dignidade, queriam ser respeitadas pela sua profissão e nós concedemos isso. Foi uma vitória do legislativo. Acho que o legislativo teve que assumir esse protagonismo porque senão teríamos umas 10 milhões de pessoas morando nas ruas e passando fome. Muitos estão. Acho que conseguimos atender 3 milhões de pessoas e que se ajudam. Todo mundo que recebeu ajuda contribuiu com cestas básicas para seus pares, contribuiu com pagamento de luz, telefone… Eu ajudo até hoje todas as pessoas que pedem: papel-higiênico, sabonete, dinheiro para xampu, dinheiro para o remédio. Eu ajudo porque toda a Cultura fez isso em todo o Brasil e até hoje continua fazendo. Acho que foi um projeto de exercício de cidadania excepcional, foi um projeto apresentando que a gestão pública, quando bem aplicada, funciona sim e funciona bem. Estado e municípios conseguiram fazer a maior lei da história deste país para atender ao setor cultural. O mérito é todo do setor cultural e dos gestores públicos.

[Sharine] Com certeza! Para nos encaminharmos para o fim da entrevista, qual a preocupação que vocês tiveram com a formação de público? A Lei Aldir Blanc foi toda voltada para auxílio emergencial aos artistas e trabalhadores da cultura. Isso é essencial, com certeza. Mas e o acesso do público, o acesso da população a esses espetáculos, a essas obras de arte que foram produzidas? Vocês chegaram a pensar nisso?

[Chris] Nós pensamos. Queria dizer uma coisa antes de concluir a resposta: a deputada Benedita da Silva sempre se preocupou em não usar esse projeto para se sobressair ou ter protagonismo. A deputada Benedita construiu essa lei com o setor cultural e para o setor cultural. Em nenhum momento houve vínculo partidário. Ela diz: “sou autora da lei, mas fui uma peça nesse jogo porque era meu papel na época, de presidente da comissão. Eu só fiz a escuta. Nós transformamos o apelo do setor em uma lei, e a deputada Jandira manteve esse processo”. É importante que isso seja dito. Não foi uma lei construída para se sobressair a partir das dificuldades do setor, para se sobressair politicamente ou partidariamente. Foi uma lei que tinha um objetivo absoluto e único: o amparo ao setor cultural. Sobre a questão do público, existia um problema. Bem na época em que a deputada Jandira estava fechando esse relatório, tivemos um momento drástico da COVID-19. Foi quando passou de 800 para 2.300 mortes por dia. Foi um choque. Saímos de 15 mil para 80 mil contágios por dia. Foi uma coisa absurda em um mês e meio. O que nós pensamos? Que o público fosse a partir de escolas públicas e da comunidade. Nossa preocupação era de que todo produto cultural fosse criado e gerido, respeitando aquele que estava recebendo o recurso para sobreviver. Todos os setores foram beneficiados.

Na época, o governo deu amparo para todo mundo, entregou um trilhão e trezentos bilhões para os bancos privados, que estavam com lucro, não tiveram prejuízo, e brigou para dar uma renda básica de R$200 para a população brasileira. Nesse contraponto, é importante lembrar que o setor cultural tem uma média salarial de dois a três salários-mínimos. É uma área especialista. Ninguém ali acordou sabendo. As pessoas estudam, são técnicos, profissionais, dedicam-se. Normalmente, você trabalha seis meses num projeto, focada naquilo, sua vida é aquilo. Não podíamos comparar essas pessoas, que bancam um espaço cultural, que bancam seus esforços… Eles falam em empreendedorismo. São empreendedores brasileiros, que precisavam de um amparo. Meus colegas Alexandre Santini e Célio Turino, que estiveram com a deputada Jandira, muito mais próximos da relatoria, do processo final, preocuparam-se que houvesse dignidade para esse artista criar e devolver o produto para a sociedade. Por isso, foi concedido um prazo de 120 dias. Mesmo que esse produto seja distribuído após a pandemia, quando normalizar, que seja distribuído nas comunidades e nas escolas públicas. Em relação à questão do público, houve essa preocupação.

Mas houve também uma preocupação da capacidade de criação do artista que está passando fome, que não tem como pagar um aluguel, que não tem o que fazer com a pensão do filho, que não tem a mãe… Eu sou mãe solteira, estaria desesperada, estaria morando na rua porque não tenho família para me acolher. Pensamos em tudo isso. Como essas pessoas vão sobreviver e como vamos falar: “cria um espetáculo, a coisa mais linda e publica agora, na rua, sem poder pagar o seu celular, sem poder pagar sua internet ou sem ter luz”. Há gente que eu conheço, pessoas famosas, que estão tendo que escolher, que estavam com dois anos de projeto cultural garantidos, o que geraria bilheteria e daria bilhões de retorno. Lembro que a cada 26 bilhões de reais gerados em bilheteria na Cultura, 4 bilhões entram limpos para a economia, para impostos. Essa pessoa sem dignidade merecia um prazo para que, quando normalizasse, pudesse atender ao público. Então, houve uma preocupação com o ser humano e com o processo criativo, o respeito desse artista. A partir esse processo, ele poderia, quando acalmasse essa situação, quando conseguisse entrar no seu processo digno para ter alegria de criar, pudesse devolver isso para o público.

Nós priorizamos o público mais jovem, o público das escolas públicas, que está absolutamente fora do contexto das artes, não tem mais apoio governamental. Para criarmos um público, precisamos estruturar o artista que fará essas pessoas refletirem e criarem seu contexto identitário dentro do seu país. Acho que esse princípio foi um pouco respeitado e não foi tão cobrado. Obviamente, há essa contrapartida, que será dada quando normalizar. Muita gente está fazendo lives e está devolvendo. Como esse processo dependia da própria regulamentação de estados e municípios, entendemos que, quando normalizarem as escolas e tudo o mais, isso será devolvido. Mas muita coisa já está acontecendo e é muito especial. Temos recebido coisas lindas demais, que dão alegria a nossa vida. Acho que a Lei Aldir Blanc ampliou este intento humano. Aquela esposa, cujo marido é segurança de festa, de teatro, os monitores de escola ou mesmo do Centro Cultural Banco do Brasil, das atividades públicas, que estão desempregados, com sua irmã, com sua mãe, com sua esposa, com seu companheiro, com sua companheira, sem ter recursos, essa pessoa poder apresentar sua arte, ter o seu cantinho no celular, apresentar um produto e distribuir para alegrar a vida de todos nós é a maior riqueza que essa lei propicia. Acho que, nesse sentido, ela alcançou o objetivo maior, que é de amparar o ser humano em meio a um período de pandemia em um país. Talvez, essa tenha sido a maior vitória do processo da Lei Aldir Blanc.

[Sharine] E, para terminarmos, qual é o legado da Lei para as políticas públicas?

[Chris] Em termos de políticas públicas, acho que o legado da Lei Aldir Blanc é que ela afirma a importância do Sistema Nacional de Cultura, afirma a necessidade da construção colegiada de políticas públicas, afirma a necessidade da participação social, principalmente no contexto de um país que está se descobrindo quanto à identidade e quanto à contribuição artística e cultural do conhecimento. A Lei Aldir Blanc desmistifica aquele palco brilhoso, de onde parece que todo mundo saiu. Ela mostra que existe um ser humano por trás e existe toda uma cadeia de produção cultural. Acho que a Lei Aldir Blanc nos mostra, sim, a importância do processo coletivo e participativo de todo o país. Somos um país e precisamos andar juntos. Mas ela também mostra importância da arte não só no contexto econômico, mas também no contexto humano e de bem-estar social, que é fundamental para vivermos com harmonia e, também, com coragem!

[Sharine] Com certeza. Não sei se você quer falar mais alguma coisa sobre o tema, alguma coisa que eu não perguntei e que você acha que seria importante.

[Chris] Acho que é isso. Na verdade, temos que defender as políticas públicas e o papel dos servidores. A ausência dos servidores das coordenações, da estrutura do Ministério da Cultura deve ser contabilizada como uma ausência profunda, que prejudicou estados e municípios por não terem acesso à gestão do Governo Federal e não terem o respaldo de um ministério. Isso significa um conhecimento para o município que, pela primeira vez na vida, está recebendo um recurso público e não tem um telefone para ligar.

[Sharine] Obrigada!

[1] Benedita da Silva foi eleita presidente da comissão de cultura da câmara dos deputados em março de 2019.

[2] Chris Ramirez refere-se ao Art. 12 da Lei Aldir Blanc: “Ficam prorrogados automaticamente por 1 (um) ano os prazos para aplicação dos recursos, para realização de atividades culturais e para a respectiva prestação de contas dos projetos culturais já aprovados pelo órgão ou entidade do Poder Executivo responsável pela área da cultura, nos termos: I – da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) […].”

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