Canclini na Cátedra
Transcrição da entrevista realizada com Cícero Belém, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 4 de março de 2021.
[Sharine] Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc, sobre a articulação em rede para criação e instituição da Lei. Estava pesquisando um pouco sobre sua trajetória… Você é artista…
[Cícero] Sim, sou ator.
[Sharine] E você também foi representante da classe artística na articulação pela lei Aldir Blanc na sua região. Você poderia começar contando um pouco de sua história, de sua trajetória, dos projetos que já fez, para que possamos conhecê-lo.
[Cícero] Eu sou ator. Na verdade, sou um ator que aprendeu a dirigir teatro. Aprendi a produzir teatro porque precisamos ser um pouco de tudo neste país. Imagine: em uma região como a nossa, você não vai encontrar alguém querendo produzir um ator. Fui aprendendo a trabalhar em todas essas áreas. Sou professor de teatro. Sou formado, pela Universidade Federal do Tocantins, em Artes e Teatro. Fiz uma especialização em linguagens, cultura, educação e tecnologias, também voltada para o campo do ensino do teatro. Sou professor efetivo da rede municipal de ensino, mas cedido há mais de 20 anos para a Fundação Cultural do Município. Então, trabalho também no município. Durante muitos anos, eu me dediquei à gestão pública para a cultura. Fui presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Palmas, fui chefe de gabinete, fui diretor por muitas gestões. Fui responsável pela criação e implementação do Plano do Sistema Municipal de Cultura de Palmas, da própria fundação cultural. Há três anos eu me afastei do administrativo e estou cuidando de um projeto que se chama Formação de Atores e Plateia, que é um projeto do Centro de Ensino e Treinamento Artístico da Fundação Cultural, que oferece vários cursos livres. Esse projeto me deu a oportunidade de trabalhar a institucionalização de uma companhia de teatro. Na verdade, é uma estratégia, um curso para formar atores que forma plateia. É um instrumento de materialização do processo de aprendizado e de construção de um espetáculo que é levado ao público da cidade, principalmente a escolas.
Além disso, durante trinta anos, eu produzi e dirigi uma companhia de teatro aqui no Tocantins [Grupo de Teatro Chama Viva]. Foi uma companhia que se consolidou por trinta anos e hoje não existe mais. Há cinco anos desfizemos a companhia, mas ela foi importante para a minha vida, para a minha formação e, por sua construção, pelo processo de produção de espetáculos. É uma companhia de repertório, que produziu muitos espetáculos, trabalhou com muita gente, de vários lugares do Brasil, circulou por muitas capitais. Tive o prazer de fazer temporada em São Paulo. Conheci o SESC [Serviço Social do Comércio] Belenzinho. Foi uma companhia muito importante para o teatro aqui na região. Isso, resumidamente, é um pouco do que tenho feito. Mas eu digo que sou, na verdade, um operário do teatro. Por essa amplitude que o teatro nos coloca, a dimensão humanitária, humana, social, eu terminei me envolvendo muito com as questões da cultura. O teatro me levou a uma certa compreensão privilegiada da dimensão da cultura, em seu sentido mais amplo.
[Sharine] Você poderia falar um pouco sobre o Sistema de Cultura de Palmas, que você ajudou a implementar e, talvez, contar alguma história da sua companhia de teatro, como foi formada, qual sua importância para a cidade. Falo sobre a companhia anterior e a nova.
[Cícero] A companhia de teatro de que fiz parte durante muitos anos surgiu em uma cidade do interior, em 1985, em uma cidade histórica, com certa influência por seu aspecto arquitetônico. Ela sofreu uma certa influência francesa. Chama-se Porto Nacional e tem mais de 150 anos. A companhia nasceu lá. É uma cidade que tem até o título de Capital da Cultura aqui da região, na época, do norte de Goiás. Sempre fomos ligados a movimentos sociais e a companhia nasceu dentro de uma instituição. Nós não tínhamos nada a ver com a instituição, mas estávamos ali naquele contexto, desde 1985. Em 1994, nós nos transferimos para Palmas, porque tínhamos o sonho da Capital, a construção de um novo Estado, um novo lugar que surgia no país. Entendíamos que aqui tínhamos a oportunidade de ampliar nossas possibilidades de trabalho no campo do teatro. De fato, isso ocorreu.
Do ponto de vista do Sistema Municipal de Cultura de Palmas, a cidade sempre viveu uma inconstância na questão das políticas culturais, por um longo período. O órgão de cultura ora era diretoria ligada à Secretaria da Educação, ora se transformava em Secretaria e, depois, voltava a ser diretoria, de acordo com os humores da economia e, principalmente, da política, dos interesses políticos vigentes. O setor cultural passou a reivindicar, de forma muito veemente, a questão da consolidação de um órgão de gestão da política que não fosse assim tão transitório, mas que pudesse pensar em políticas a longo prazo, em políticas que permanecessem e respondessem aos anseios da sociedade. Foi um período de muita luta. O Conselho de Cultura tem uma vantagem aqui, porque o primeiro órgão de cultura foi implantado em 1992, mas em 1998 já havia um Conselho Municipal de Cultura. Esse conselho foi fundamental porque ele se constituiu como uma representação da sociedade civil que foi muito resistente em todo o processo, foi muito participativa, foi muito propositiva.
Fomos assumindo, aos poucos, certo protagonismo na discussão das políticas culturais e ganhamos bastante força a partir de 2003, com a chegada de Gilberto Gil à Cultura do país. Os seminários começaram a acontecer pelo Brasil inteiro, começou a discussão sobre o Sistema Nacional de Cultura e fomos pegando carona, nos apropriando dessa perspectiva que era montada e dizendo: “se Palmas não entrar nesse contexto, vamos ficar por fora”. O conselho teve um papel fundamental. Em primeiro lugar, o conselho comprou a briga pela criação da fundação cultural, em 2006. Depois de um ano, o prefeito constituiu um grupo de trabalho. Tivemos a oportunidade de ter um governo mais progressista aqui no município. Era um governo do PT, do Partido dos Trabalhadores. Conseguimos que o prefeito instituísse uma comissão, que tinha gente do Ministério da Cultura, tinha gente da sociedade civil, tinha gente do conselho, do SESC, do Instituto Federal, da Universidade Federal. Conseguimos fazer um negócio bem amplo. Essa discussão resultou na criação da Fundação Cultural de Palmas. A partir da fundação, fomos criando os componentes, que são as premissas previstas no Sistema Nacional de Cultura. O Conselho passou por reformulação, viu sua representatividade, foi fortalecido. Brigamos pela criação do Fundo de Cultura, que nasceu com a Fundação. Depois veio a lei, propriamente, do Sistema Nacional de Cultura, consolidando, amarrando esses vasos que estavam sendo criados, sendo conquistados gradativamente. Foi um trabalho de muita participação social. Depois veio o Plano, que foi a última coisa que nós fizemos. Ele termina agora em 2022. Já passou por uma revisão. Mas foi o resultado de muita luta, de muita conquista, de muito trabalho junto ao setor cultural, de muita mobilização social. Não foi nada fácil.
A Fundação está agora caminhando para quatorze anos e estamos passando por um processo de discussão, enfrentando uma crise. Estamos diante de uma gestão que está propondo a extinção da Fundação Cultural e a criação de uma Secretaria de Juventude, Esportes e Cultura. Neste momento, estamos nos organizando e, se for necessário, vamos para um embate político em defesa da Fundação, em defesa de tudo o que ela fez, do legado cultural, das políticas que vêm sendo perenizadas, que vêm sendo conquistadas, em defesa da gestão eficiente que a fundação faz sobre a rede de pontos de cultura. Mesmo com toda a crise que estamos vivendo no país, mesmo com a extinção do Ministério da Cultura, a prefeitura continua colaborando com recursos do fundo municipal, que são poucos, mas dão manutenção aos pontos de cultura, mantendo editais públicos, mantendo editais de incentivo para a cadeia produtiva. Antes mesmo da Lei Aldir Blanc, a prefeitura lançou um edital de socorro emergencial, com poucos recursos, com o que tem. Vem executando políticas para o alinhamento daquilo em que acreditamos. É um pouco essa a luta que fazemos aqui em Palmas.
Nossa companhia de teatro surgiu e fui designado a coordenar esse projeto. Estava com muita vontade de voltar aos palcos. Afinal, a gestão nos tira um pouco essa possibilidade. O fato de estar na gestão, com muita paixão, me desfocou um pouco do trabalho na companhia. Não dá para fazer as duas coisas. Ao mesmo tempo, a companhia se sentia prejudicada porque eu estava na gestão pública e, consequentemente, ela, que é uma companhia muito importante, não podia participar de nada da prefeitura. São essas incompatibilidades. Então, tentei ficar um pouco fora do palco, ficar muito na discussão da política, na discussão da formação. Eu tive a oportunidade e fui chamado para desenvolver esse projeto de formação de atores e plateia e, desse projeto, surgiu a Companhia de Teatro Fernanda Montenegro. Foram os alunos que resolveram dar esse nome à companhia. O teatro daqui se chama Fernanda Montenegro porque a Fernanda inaugurou o teatro em 1996, fazendo Dona Doida. Talvez você seja muito jovem, mas a Fernanda Montenegro passou quase trinta anos fazendo Dona Doida. A cidade criou uma relação com a Fernanda. Depois o teatro se transformou em Teatro Fernanda Montenegro. Todas as vezes que ela vem aqui, ela tem uma paixão pelo teatro. Ela tem uma relação com algumas pessoas do teatro daqui. Há uma certa intimidade. Eu começo minhas aulas de teatro sempre com um vídeo da Fernanda em que ela fala sobre o papel do ator, da paixão do ator, com aquele jeito da Fernandona, não é? Eu gosto de começar por cima as minhas aulas, dando referências que acho que são importantes. É uma galera muito jovem, meninos de 17 a 20 anos… Há algum tempo, dava aula de teatro e encontrei uma turma que não conhecia a Fernanda Montenegro. Imagina! Para mim, é um absurdo não conhecer uma das principais pessoas do teatro brasileiro.
[Sharine] Ainda mais em um curso de teatro…
[Cícero] É uma realidade que vivemos neste mundo tão líquido, tão volúvel, tão descartável. As pessoas não conheciam. Então, os meninos conheceram a Fernanda na primeira aula e se apaixonaram. Eles tiveram oportunidade de ler, de conhecer, de saber quem era a Fernanda, de ver coisas da Fernanda, o teatro… Claro que viram também coisas na televisão. Eles se apaixonaram por ela. Alguns meses depois, o processo foi se encaminhando para a produção do espetáculo e fomos consolidando a ideia de ter uma companhia que apresentasse os espetáculos desse projeto. Foi unanimidade: escolheram a Fernanda para nome da companhia. Então, ficou: Companhia de Teatro Fernanda Montenegro, que já montou três espetáculos. Inicialmente, a companhia tinha a proposta de montar grandes clássicos. Por que, o que queremos? Queremos formar atores que construam um certo repertório cultural na perspectiva do teatro, de toda a trajetória dramatúrgica do teatro e que, ao mesmo tempo, apresentem obras que permitam o acesso do público, que também sejam um chamativo para o público. Por isso, montamos clássicos infantis, dois clássicos: Pluft, o fantasminha, da Maria Clara Machado, e Branca de Neve e os Sete Anos, dos Irmãos Grimm, que foram sucessos arrebatadores de público. Foi uma coisa impressionante. Mas eu não queria ficar só no infantil. Em 2019, nós montamos dois outros clássicos. Em Romeu e Julieta, foi surpreendente a receptividade do público jovem, foi teatro lotado. Nós fazemos temporada de uma semana. Normalmente, aos finais de semana, sexta, sábado e domingo. Mas, como é uma companhia mantida pela Fundação Cultural, estreamos na terça e ficamos em cartaz até domingo. De terça a sexta, as escolas municipais e estaduais agendam. Tem dado super certo. Na sexta, temos uma sessão que chamamos de sessão universitária. Sábado e domingo é para o grande público. Surpreendentemente, Romeu e Julieta foi lotado de terça a domingo e tivemos que repetir. Fizemos, logo em seguida, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Foram espetáculos em uma perspectiva de construção de repertório. Não só do repertório, no sentido de espetáculos que se mantêm pela companhia, mas no sentido de repertório cultural para os alunos que assistem e para o público que tem acesso a essas produções.
O ator só consegue ter uma formação mínima em um ciclo mais completo se conseguir alcançar o público. Nosso desejo, nossa missão, é montar um espetáculo que seja visto por um público, que o empolgue e dê prazer. Carregamos muito aquela frustração: “o público não vai ao teatro, não sei o que…”. Construímos essa estratégia para ter um público e para que esse ator tenha a possibilidade de ter essa relação com o público em seu processo de formação. Eu entendo que é algo que escola dramática nenhuma ensina. Você pode aprender tudo sobre técnicas, pensamento sobre o teatro. Mas a relação entre ator e público é construída no momento, no ato da celebração. Esse projeto nos dá essa possibilidade. Ao mesmo tempo, é repertório de um público que é muito novo. Palmas tem trinta anos, vai fazer 31 anos. É uma cidade relativamente nova. É claro que há uma circulação de espetáculos, há uma produção local. Mas achamos que, como uma companhia pública, como um projeto público, temos essa responsabilidade, de ostentar também um repertório que permita que o público transite por esses clássicos, tenha acesso a essas obras universais do teatro. É um pouco esse o trabalho que estamos desenvolvendo.
[Sharine] Fiquei com duas curiosidades. Essa companhia de teatro é financiada pelo município?
[Cícero] Ela é do município, na perspectiva de que é um projeto de formação. É uma coisa muito engraçada porque não temos uma verba muito específica para a companhia. A Fundação nos dá toda a estrutura, a sala de aula, o professor. Eu tenho uma equipe técnica maravilhosa porque o professor de artes visuais também é cenógrafo. Tenho os técnicos do teatro, tenho os que já trabalham com a criação cênica. Tem o iluminador do espetáculo. Vamos mudando: uma equipe formada pelos técnicos da fundação – é uma grande equipe. Tenho essa estrutura, do espaço físico, a estrutura para as aulas, o suporte pedagógico, os profissionais para ajudar nesse processo criativo, o teatro, a pauta no teatro – que é uma coisa muito concorrida -, os dias em que posso desenvolver os ensaios no teatro. É muito caro para os alunos terem o espaço no teatro. Temos essa estrutura. Como montamos o espetáculo? O projeto também tem a intenção de que a meninada que está no curso tenha uma noção de produção. Pensamos o seguinte, desde o início: “olha, estamos trabalhando com esses jovens atores, que vão sair, montar seus grupos de teatro, participar de grupos existentes na cidade, fazer o que acharem que deve ser feito”.
Nossa limitação orçamentária também nos permitiu transformar isso em algo positivo. A dificuldade de recursos nos leva aos desafios de produzir assim como as companhias produzem, como os grupos produzem na cidade. Nem sempre há um edital para ajudar. Então, os alunos bancam seus figurinos. A fundação banca o cenário e a equipe, todo mundo trabalhando, o teatro e essa coisa toda. Constituímos uma equipe de produção e um sistema de organização do espetáculo na perspectiva colaborativa. Eu sempre começo, com as turmas novas, lendo um artigo do Antonio Araújo, do Teatro da Vertigem, de São Paulo. Esse artigo é muito inspirador para nós, para trabalharmos essa perspectiva colaborativa, de que todo mundo no teatro tem um papel a executar. Esses papeis são complementares e ninguém faz um espetáculo sozinho. Vamos produzindo dessa forma. Não é nada fácil. É também um trabalho de resistência por dentro de uma estrutura. Mas tem dado resultados muito positivos. O fato que nos faz brigar é que não fechem a Fundação Cultural.
[Sharine] Tomara que não! Outra curiosidade: você falou que o Conselho de Cultura foi formado em 1998, é isso? Então ele é anterior ao período do Gilberto Gil.
[Cícero] 1998.
[Sharine] Como foi essa formação?
[Cícero] Desde o início de Palmas, com seis anos, a cidade já estava construindo seu centro cultural. Por ser uma cidade nova e, também, pela luta para criação do Estado do Tocantins… isso é um fato curioso. O Estado do Tocantins é novo, mas é uma região velha. Isso aqui já era povoado. Desde meados do século XVII ou XVIII, essa região vem sendo povoada, vem sendo ocupada, tanto é que nós temos cidades com mais de 200 anos. A luta pela construção do Estado do Tocantins sempre foi travada pelas diferenças culturais porque nós não nos sentíamos iguais ou tratados com igualdade pelo pessoal do sul do Estado, de Goiânia. Havia um atrito cultural muito forte. A construção de uma capital veio imbuída de um desejo, por parte das pessoas da cultura, de também terem sua emancipação, de terem bons equipamentos culturais.
Quando a cidade nasceu, havia uma diretoria de cultura e, o tempo todo, nessa diretoria de cultura, todo mundo cobrava a necessidade do Conselho, como órgão, como instância que nos permitisse democratizar a relação com a sociedade civil. As pessoas que estavam assumindo, que passavam por aquela diretoria de cultura, carregavam também esse sentimento. Quando a Secretaria de Cultura foi criada, em 1996, já nasceu com essa obrigatoriedade de criar o Conselho de Cultura para melhorar essa relação. Em 1998, a Fundação nasceu para consolidar a implantação do espaço cultural, do espaço do cinema, do teatro, de um centro de formação artística, uma biblioteca, uma galeria municipal de artes, que hoje também é um espaço integrado. O Conselho veio desse sentimento e a vantagem é que nós, da sociedade civil, na época, nos apropriamos do conselho e não largamos mais.
Eu fiquei vinte anos no conselho. Eu saí quando o conselho já tinha 22 ou 23 anos. Há três anos que eu saí do conselho. Falei: “não, chega!”. Mas fui tudo no conselho: presidente, vice-presidente, suplente, titular da câmara de artes cênicas, ia e voltava. Nunca largamos a peteca da mão, nunca soltamos. A sociedade foi assegurando essa participação, foi construindo. Acho que nós fomos um dos conselhos mais atuantes. Um conselho com uma trajetória, com repertório de lutas, ora para mais, ora para menos. Os atores também flutuam. Você sabe que os atores são fundamentais, cada um traz uma concepção. Acho que todos os que passaram trouxeram sua contribuição. Agora, por exemplo, o conselho está tendo um papel fundamental nessa discussão. Como não encontrou espaço dentro da gestão, veio para a câmara municipal dizer: “querem acabar com a fundação e não aceitamos. E agora, vereadores?”. Então, fomos constituindo o conselho, com muita participação social. Eu digo que nosso conselho é um exemplo de luta. Não é nada perfeitinho também não. É muita luta, muito entrave, muita discussão. Mas sempre há uns abnegados segurando, puxando.
[Sharine] Para entrarmos um pouco mais no tema, como foi a mobilização pela Lei Aldir Blanc? Você participou de tudo? Quais as outras pessoas que participaram? Com quem tiveram contato?
[Cícero] Nós tivemos duas fases de mobilização. A primeira mobilização começou de forma solitária, dada minha militância política. Eu também coordeno o setorial de cultura. Na perspectiva política, começamos a discutir e participar de conferências. Formamos um pequeno comitê, um pequeno grupo de pessoas, que mobilizou os três senadores e os oito parlamentares. Somente na véspera da votação da lei nós conseguimos produzir a primeira webconferência, já abrindo para o público e chamando a classe cultural. Mas, a partir da aprovação, esse grupo de pessoas conseguiu mobilizar muitos parlamentares. Felizmente, os nossos oito deputados federais e os três senadores votaram a favor da lei Aldir Blanc. A partir daí, entendemos que seria preciso uma mobilização mais ampla. Eu vinha participando dessa mobilização toda, que foi coordenada, de que muita gente participou, muita gente de São Paulo também. Uma turma grande, do Brasil inteiro, de cunho internacional. Eu cheguei a fazer parte desse comitê também, desse grupo de mobilização nacional.
Aqui nós criamos um movimento que se chama: “Mobiliza Cultura do Tocantins”. O movimento nasceu com dois propósitos. Há oito anos, a cultura do estado, do ponto de vista da institucionalidade, sofreu um desmantelo muito grande e não conseguimos mais fazer com que as coisas acontecessem em termos de políticas públicas. Então, vislumbramos de cara a possibilidade de mobilizar o setor cultural, a sociedade civil e de mobilizar a esfera pública para que se colocassem na discussão para a retomada das políticas públicas. A própria lei Aldir Blanc já apontava para isso: a possibilidade de articulação institucional. Então, nós falamos: “é agora, porque vamos chegar com recursos”. Nós, da sociedade civil, vamos discutir a partir do recurso que está chegando. Não tem esforço nenhum do governo do Estado, não é recurso próprio, mas temos a possibilidade de fazer uma discussão. Assim surgiu o movimento Mobiliza Cultura do Tocantins. Nós conseguimos articular mais de duzentos agentes culturais do estado inteiro, que estão presentes no grupo de WhatsApp. Todo mundo se falava todos os dias. São oitenta instituições culturais do estado inteiro, que estão nesse núcleo de mobilização. Conseguimos trazer para dentro do governo do estado. Era uma relação que não existia, era muito difícil. Houve uma mudança.
Constituíram uma agência de desenvolvimento do turismo, cultura e economia criativa, nesse atual governo. Mais de dois anos se passaram e essa agência nunca conversou com a cultura em nenhum sentido. Nossa mobilização forçou esse diálogo a ponto de trazer o governador para a discussão. O secretário dessa pasta também veio para a discussão com muita dificuldade. Foram seis meses de muito enfrentamento. O setor cultural fez um enfrentamento tão bom que derrubou a gestão no início do ano. Convencemos o governador a colocar uma pessoa de mais acesso, de mais diálogo com o setor cultural. A mobilização em torno da lei Aldir Blanc teve dois focos para nós: mobilizar a sociedade civil por uma gestão eficiente, uma aplicação eficiente da lei, e sensibilizar o poder público para que ele se recolocasse, retomando seu protagonismo na construção das políticas públicas. Tivemos algumas consequências positivas e alguns dissabores também. O positivo é que o Conselho Estadual de Cultura foi retomado nesse processo, foi instalado. Há uma ampla participação da sociedade no processo da execução da lei, mas não conseguimos uma execução tão feliz, tão assertiva.
Talvez por tentar acertar e por correr contra o tempo, houve equívocos tremendos. Considero que o principal, o mais grave, é que na execução do Inciso III da lei, por medo de que não houvesse tantos projetos para o volume de recursos destinados, os editais ficaram um pouco abertos e houve concentração de recursos. Agora estamos brigando pelo recurso que sobrou, em torno de quase R$ 4 milhões, talvez um pouco mais, porque ainda há recursos de prefeituras que não executaram. A lei foi executada por cerca de 80% dos municípios, mas 20% não conseguiram executar. Esses recursos revertidos, mais as pequenas sobras do próprio estado, estão em torno de R$4 milhões. Estamos brigando para que sejam lançados novos editais, com novos critérios. Ao executar a lei, nós próprios, da sociedade civil, no estado também, descobrimos que estávamos muito presos a determinadas formas pré-existentes. Com medo de não executar no prazo em que precisávamos executar, com medo de perder os recursos, acabamos repetindo modelos arcaicos, modelos já tradicionais, e perdendo a possibilidade de inventar novas formas, talvez até de simplificar mais, permitindo que mais pessoas tenham acesso. Agora estamos nessa nova briga de construção, esperando que a Medida Provisória que está tramitando no congresso resolva e que falem “podem gastar agora o recurso” para que, de fato, sejam lançados novos editais e outros instrumentos possíveis. Esse é um panorama geral da Lei Aldir Blanc aqui.
[Sharine] A lei foi toda construída pela internet, por grupos de WhatsApp, porque também havia a questão do isolamento social. Você é de teatro, também há agora a questão das lives… Como é a relação dos artistas com a tecnologia, com os meios de comunicação digitais? Como essas questões entraram de alguma forma na Lei Aldir Blanc?
[Cícero] Nós aprendemos a lidar com esses instrumentos ou estamos aprendendo, forçados pela circunstância. A Lei Aldir Blanc nos fez nos reconectar de norte a sul do país e nos conectar com esse sistema novo, com as possibilidades que a internet nos dá. Aprendemos e acho que ainda estamos aprendendo. Agora, por exemplo, estou dando aulas online. A fundação criou uma plataforma Moodle e estamos fazendo aulas online. Estou aprendendo aqui. Eu lido com o Zoom, com o Meet, mas, quando pinta alguma coisa, os próprios alunos me ajudam a resolver. Eu acho que foi uma coisa muito interessante e que vai ficar. Acho que não há como retroagir e falar: “esse modelo é da pandemia e não serve mais”. Ele será incorporado definitivamente ao processo de articulação, de aproximação. Acho também que viajaremos menos para fazer encontros. Somente quando o presencial for muito necessário é que ele vai acontecer. Acho que veio para ficar.
Temos dificuldades. Todo mundo tem WhatsApp, em todos os lugares do Estado. Conversar pelo WhatsApp, estar em um grupo do WhatsApp, é uma coisa que funciona com facilidade. Já para usar a tecnologia do Zoom, do Meet, temos algumas dificuldades na hora de algumas webconferências. Não são todas as regiões que oferecem uma internet boa para conexão. Há desafios a serem superados, mas, no geral, minha avaliação é muito positiva. Confesso a você que sempre me dei muito bem aqui na capital. Acho mais fácil. Palmas é uma bolha, uma ilha, se comparada ao resto do Estado do Tocantins. Apesar da influência que sofre do próprio Estado, é uma cidade com uma geografia completamente diferente das cidades daqui do Tocantins. E uma cidade com mais de 300 mil habitantes, com gente do Brasil inteiro. A diversidade cultural, aqui, é muito grande. A informação que circula em Palmas não circula com a mesma facilidade no interior. Não difere dos outros estados, neste sentido. Não é igual para todos. É uma cidade muito bonita, de canteiros muito glamurosos, com uma arquitetura moderna, com uma geografia que não permite muito a reunião das pessoas…
[Sharine] Por quê? Eu não conheço sua cidade. Estou imaginando enquanto você está falando…
[Cícero] É uma cidade sem esquinas. Apesar de já ter áreas fora do plano diretor, que parecem cidades-satélite. São grandes bairros populacionais, com a população até maior do que a do plano diretor. Mas o plano diretor é uma área planejada, de super-quadras e de largas avenidas, com muitas rotatórias. Não há esquinas e as pessoas circulam pela cidade. Eu moro na Quadra 504 Sul. A Quadra 604 Sul está muito próxima. As quadras chegam a ser bairros, pequenos bairros. Quem mora na 504 Sul não entra na 604 Sul, a não ser que vá visitar uma pessoa. Mas aí vou diretamente à casa da pessoa… ou o contrário… Eu moro em uma rua que tem uma praça e tem uma avenida grande. As pessoas passam na avenida, mas não entram na minha quadra. Só entra na minha quadra quem mora nela. Essa geografia torna a cidade um pouco fria. As relações também são um pouco distantes. Isso, para mim, é um dificultador.
[Sharine] Para trabalhar na área de cultura, não é?
[Cícero] Sim. As redes funcionam muito nesse sentido. Mas você também cria uma relação intermediada pelo equipamento, com uma distância, que não é a mesma relação do contato, da proximidade. Nem sei por que entramos neste assunto.
[Sharine] Porque você falou sobre a dificuldade de as pessoas se encontrarem na cidade e eu achei interessante porque não conheço Palmas. Conheço Brasília, que é um pouco parecida.
[Cícero] Aqui é uma Brasília menor. Mas há muitas semelhanças, até mesmo um lago enorme, muito maior do que o Lago Paranoá. É diferente geograficamente, mas a cidade tem semelhanças com Brasília. É linda! É uma cidade bonita de se ver, tem uma qualidade de vida interessante, tem muito verde, muita natureza. Mas tem também seus contrapontos.
[Sharine] Para nos encaminharmos para o fim da entrevista: a Lei Aldir Blanc teve recursos públicos que nunca vimos antes no Brasil. Qual a relação que os artistas têm com recursos públicos e com recursos privados, tanto em sua experiência pessoal, como ator, como diretor de teatro, quanto em sua experiência como gestor? Como você vê a relação dos artistas com essas duas fontes de recursos?
[Cícero] Aqui nós temos uma experiência muito rara da iniciativa privada. É muito pouco presente, quase não existe. Há raríssimas experiências de recursos privados na área da cultura. Eu faço uma avaliação muito crítica, às vezes, sobre a relação da classe, do setor cultural, da sociedade civil com os recursos públicos. Ela vem sendo construída de uma forma um tanto didática porque há dificuldades para a compreensão, do meu ponto de vista. Eu percebo que existe uma certa dificuldade para o setor cultural entender que o recurso público, por ser de uma fonte pública, tem determinadas normas que são dificultadoras da execução e da transferência. A responsabilidade de quem vai executar o recurso é muito grande. É preciso ser muito responsável. Acho que, ao longo dos anos, perpetuou-se um discurso de que, para a cultura, tudo tem que ser diferente. Agora mesmo, temos um grande impasse. O equívoco ocorrido na concentração de recursos da Lei Aldir Blanc em alguns proponentes, em determinados segmentos mais eficientes na formulação dos projetos, mais eficientes na captação do recurso, de pessoas preparadas, mesmo que não tenham estrutura de CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica], gerou uma certa desigualdade sustentada pelo discurso de que a prestação de contas deve ser facilitada ao máximo.
Eu, como agente público e, também, da sociedade civil – sou artista também e vivo dos dois lados -, faço às vezes umas intervenções duras. Os editais daqui foram bastante generosos. O estado concedeu valores que variavam de R$ 10 mil a R$ 120 mil reais. Nós tivemos um volume de recursos muito expressivo, nunca visto na história do Tocantins. O Estado executou recursos da ordem de mais de R$18 milhões de reais. Nunca se executou editais aqui com esse valor de recursos. Lançamos muitos editais. De repente, um proponente conseguiu ganhar cinco editais e, com isso, acumular R$ 150 mil ou R$ 250 mil reais. Eu não acho que para esse produtor a prestação de contas deva ser facilitada. Ele tem que ter uma responsabilidade maior na aplicação do recurso. Não pode ser a mesma relação de um artesão lá da cidade de Santa Maria do Tocantins, que tem outra dificuldade, que recebeu outro volume de recursos, muito menor, que não tem a mesma relação de produção que esse produtor da capital, que esse projeto teve. Por ter concentrado recursos, acho que deve ser cobrado dele uma responsabilidade maior. O poder público tem que ter um controle maior sobre a aplicação desses recursos, um fiscal que acompanhe ao pé da letra, que avalie a execução, que avalie a aplicação da planilha orçamentária, a coerência do projeto que foi apresentado. Isso tem sido bastante polêmico. Não tem sido fácil construir esses entendimentos.
Nesse sentido, acho que, às vezes, para uma parte da cadeia produtiva, há uma visão paternalista e comodista. Eu tive a oportunidade de dizer isso ao gestor na semana passada. Tive uma reunião com o gestor da cultura e falei: “acho que o órgão público, neste momento, deve ter uma função técnica e até mesmo pedagógica, didática, de ensinar as pessoas a fazerem o uso correto, mas acompanhar, não deixar nada sobrar”. É um trabalhão para a gestão, mas não devemos deixar nada solto. Devemos desconstruir a ideia de que a cultura é coitadinha, chega o dinheiro público e é assim… Não, o que a Lei Aldir Blanc deveria repassar, no Inciso I, de apoio emergencial, ela repassou. Colocou o dinheiro na conta e não é preciso prestar contas de nada, a não ser pagar sua conta de luz, seu supermercado. Isso foi ajuda assistencial, emergencial, que não tem prestação de contas. Mas o projeto cultural do fomento deve ter controle, deve seguir certos mecanismos. Se os mecanismos do estado estão errados – há muita crítica à Lei 8.666, há muita crítica à legislação –, é preciso adequar a legislação para a execução de projetos culturais, mas isso não significa abrir mão da responsabilidade que a cultura deve ter com o recurso público. Nesse sentido, acho o setor cultural um tanto acomodado e conservador, ao reivindicar facilidades que, necessariamente, não precisa ter.
[Sharine] Para terminarmos, qual você acha que é o Legado da Lei Aldir Blanc para o Sistema Nacional de Cultura? Há alguma relação? Ela fica ou foi algo passageiro?
[Cícero] Acho que a experiência a que a lei nos forçou é muito grande e muito positiva. A forma de partilhar os recursos, como mecanismo, pode ser perfeitamente acoplada, melhorada na perspectiva do Sistema Nacional de Cultura. Em todos os tempos de discussão do Sistema, nós nunca chegamos a esse patamar de discussão tão profunda que a lei nos permitiu. É um legado, um aprendizado muito grande que uma futura gestão progressista terá um desafio, mas poderá lançar mão dessa experiência muito exitosa. Há problemas? Há problemas. Tivemos municípios que não conseguiram executar? É fato. Mas nunca, na história do país, os mais de 5 mil municípios receberam recursos federais para a cultura. Recebem recursos do SUS, da Saúde, da Educação, mas para a Cultura nunca houve. É uma experiência, a meu ver, exitosa, com problemas no processo. Devemos entender isso como um processo que deve ser aperfeiçoado, melhorado, corrigido, mas muito assertivo. Acho que isso fica, é um belo legado da lei.
[Sharine] Quer falar mais alguma coisa sobre a Lei Aldir Blanc, sobre essa articulação? Foi impressionante ver como vocês conseguiram se articular e pressionar o Congresso para fazer a lei. Ou quer falar alguma coisa sobre sua carreira, sua cidade, para terminarmos?
[Cícero] Eu acho que nós aprendemos muito com o processo da Lei Aldir Blanc, o setor cultural inteiro. Aqui no Tocantins, conseguimos uma mobilização nunca vista, uma mobilização que também tem revelado nossas fragilidades. A pandemia tem tirado as máscaras, é reveladora. As relações, nesse período da pandemia, têm se estabelecido, em minha leitura da sociedade, de modo que, para o bem ou para o mal, não há como as pessoas se esconderem. Nesse sentido, o setor cultural tem se revelado, tem se organizado, tem se fortalecido. Temos tido enfrentamentos que nunca houve na história da organização social do pessoal da cultura do Tocantins. O que me faz acreditar que temos, pela primeira vez, a possibilidade de uma discussão de políticas públicas de modo muito verdadeiro, muito sincero. Acho que esse legado da Lei Aldir Blanc, do processo, em termo de organização do setor cultural, da sociedade civil, aqui no Tocantins, tem sido muito válido, muito necessário e de um aprendizado extraordinário. Para mim, esse é o principal legado. Acho que vai ficar e vai reverberar, de alguma forma. Acho que não teremos mais a mesma relação entre a classe.
[Sharine] Por quê?
[Cícero] Porque sabemos quem é da luta e sabemos quem não é da luta. Temos um quadro agora que torna mais fácil desenharmos uma estratégia de atuação. Sabemos até que ponto podemos contar com o poder público, até que ponto não podemos contar. Nunca se discutiu tanto política e cultura. Isso desperta a consciência de mais pessoas no setor cultural. No geral, há muita gente ligada à cultura que é muito desatenta, muito da cultura do evento, muito da cultura do espetáculo simplesmente, mas que paira em um universo de superficialidade no que faz. Há gente até que faz há muito tempo, mas paira em um campo superficial. Não há uma profundidade de entendimento do contexto social, político e econômico que estamos vivendo. Nesse sentido, acho que nos fortalecemos muito, temos mais pessoas atentas, uma massa mais crítica na cultura neste momento, mais articulada. Pelo menos, está se revelando com mais clareza. Para mim é um legado. É impressionante como a economia, como o dinheiro interfere. Se fôssemos partir para uma mobilização sem o recurso, sem a emergência, ela não teria sido possível. Essa é minha reflexão como um ponto positivo e uma observação. Sharine, eu fico muito feliz e estou à disposição quando precisar.
[Sharine] Você também, precisando de qualquer coisa, estou aqui.