Canclini na Cátedra
Entrevista com Daniel Aguilar. Realizada presencialmente, no ateliê de Daniel Aguilar, Cidade do México (México), no dia 13 de março de 2024
Sharine: Para começar, gostaria de conhecer sua trajetória como artista, trabalhador da cultura.
Daniel: Bom, meu nome é Daniel Aguilar Ruvalcaba. Tenho 35 anos. Nasci aqui no México, no estado de Guanajuato, na cidade de León. Dedico-me às artes visuais por meio de diferentes trabalhos: o aspecto da produção de arte, quer dizer, como artista ou como criador, mas também como gestor, digamos, trabalhando com administração de espaços ou organização de eventos. Essas são as duas coisas que estou fazendo, ou seja, o aspecto da produção e outro aspecto que tem a ver com gestão cultural.
Sharine: Que interessante. Como funciona este espaço? É um espaço independente…
Daniel: O espaço onde estamos se chama Bikini Wax EPS. É um espaço que começou em 2011 na cidade de León, Guanajuato. Desde 2013 está aqui na Cidade do México e, atualmente, é a terceira localização. Já esteve em diferentes endereços e, neste endereço, que é a Colônia Iztaccíhuatl, está desde 2019. Este espaço é um espaço independente, quer dizer, está organizado, ou melhor, é gerido por e para artistas ou outras pessoas que se uniram ao longo dos anos. Funciona de maneira independente no sentido de que não obtém recursos ou apoios do governo, necessariamente, para funcionar ou da iniciativa privada, como fundações. É um modelo misto. Eventualmente, houve apoios desses dois setores, mas, desde o seu início, vem se mantendo por contribuições voluntárias, por parte dos próprios artistas que decidem participar de uma exposição aqui ou que, talvez, apresentar uma performance ou algo de sua obra. Também há acadêmicos, porque também organizamos aspectos mais relacionados ao estudo, à produção de conhecimento. Também fazem isso de maneira voluntária, quer dizer, contribuem com seu trabalho. A maioria das atividades ou, praticamente, todas as atividades são gratuitas. Esse é o modelo que tem sido mantido, sempre de cooperação e voluntário.
Sharine: Vocês trabalham somente com arte ou também têm outra profissão?
Daniel: Cada pessoa que é parte do espaço tem seu trabalho, que lhe dá de comer. Ou melhor, o trabalho no espaço é extra, um aspecto complementar.
Sharine: Você trabalha com que?
Daniel: Eu trabalho como artista, dedico-me a buscar bolsas, buscar exposições, buscar formas diferentes de seguir produzindo minha obra de maneira individual. Mas sempre tratei de manter esses aspectos mais coletivos, apesar de me manter como artista ou como criador individual. Sempre trato de me envolver em aspectos mais grupais. Pode-se coletivizar certos aspectos do trabalho. Por exemplo, agora estou trabalhando com a Universidade de Amsterdam para fazer vários projetos que têm a ver com o tema da repatriação dos museus coloniais deste país. No caso concreto do México, estou trabalhando com uma peça específica, que está lá em uma cidade que se chama Leiden. Agora também estou trabalhando para um festival de arte que vai acontecer aqui no estado onde nasci, em Guanajuato. Ou seja, eu combino estes dois aspectos: de produção artística, mas também vinculado a fundações, a museus ou, neste caso mais recente, a universidades.
Sharine: Somente como artista ou como produtor. Você não tem outra atividade? Como professor, por exemplo?
Daniel: Não. Como professor, fixo, não. Mas às vezes me convidam: “você pode dar uma palestra ou uma oficina curta?” Isso sim, mas como um trabalho, como um contrato fixo com alguma universidade, não.
Sharine: Você participa, então, dos editais? Como vê as mudanças neste governo atual? Houve mudanças na Secretaria de Cultura, no FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes] e nos editais…
Daniel: Em termo de políticas culturais, a informação que tenho não é muito abundante. Mas posso falar a partir de minha experiência ou do que tenho visto como testemunho dessas mudanças. Certas estruturas têm sido, mais ou menos, mantidas. A transição para Secretaria de Cultura foi feita ainda no governo do antigo presidente Peña Nieto. Deixou de ser um Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (CONACULTA) e converteu-se em Secretaria. O tipo de conteúdo ou a visão de cultura deste governo da quarta transformação [refere-se ao governo de Andrés Manuel López Obrador] tem muito a ver com uma ideia de cultura que eles entendem como popular. Talvez isso tenha gerado uma ideia de que a arte ou o tipo de cultura que se produz ou que este governo tende a apoiar é… Basicamente, são previstos dois tipos de povos: o povo bom e o povo mau. O povo bem é o povo que segue MORENA [Movimento Regeneração Nacional], que segue Obrador. Por um lado, há também esta divisão que está muito marcada entre o que são os fifís e os chairos. Não sei se ouviu esses dois termos…
Sharine: Não.
Daniel: O fifí seria como o high class, o burguês. Esse seria o tipo de cultura que o governo atual não está apoiando porque é o tipo de cultura que eles pensam que está mais perto das elites ou da máfia do poder, que era quem estava antes. Então, o que têm feito? Têm gerado uma hegemonia, não? Em termos de Gramsci, seria como gerar um bloco político que não tem agência apenas, digamos, no aspecto econômico ou das elites do partido, mas que tem também uma incidência cultural. Nesse sentido, de maneira pública e muito aberta, confrontando certos criadores, que tinham uma linha cultural muito marcada, que é o que este governo definiria como fifí. Não sei se você é familiar com o pensamento de Octavio Paz e de Enrique Krauze. Essa tradição cultural foi muito forte desde os anos 1950 até recentemente. Octavio Paz foi o patriarca dessa ideia de cultura pós-revolucionária no México. Seus descendentes ou seus alunos mantiveram-se nas elites culturais e muito próximos aos partidos políticos, em espacial ao PRI [Partido Revolucionário Institucional], ao PAN [Partido de Ação Nacional]. Há certos personagens, no governo atual, que têm sido muito eloquentes, assinalando, nas manhaneiras, que são representes desse pensamento, dessa cultura neoliberal, como são Henrique Krauze ou Héctor Aguilar Camín, toda essa geração de criadores, de pessoas que produzem literatura, mas que também são pensadores, quer dizer, que estão com um pé na academia. Também fazem muito lobby, pois têm muita influência na geração de opinião pública. Geraram também toda essa estrutura que foi inserida no que era o FONCA e, depois, a Secretaria de Cultura. O que fizeram foi redirigir tudo isso, desfazer-se de todas essas pessoas e incluir outras. A cultura deixou de ser fifí e se tornou chaira, não?
Sharine: É a cultura popular?
Daniel: O que se pretende seria uma espécie de regresso, falando nos termos deste presidente ou deste governo, pois se definem como de esquerda. Já se você analisar em detalhes, realmente não seria como uma esquerda, mas como uma espécie de projeto social democrático que, de alguma maneira, trata de reivindicar muitos dos ideais da Revolução Mexicana, que foram um pouco abandonados depois dos anos 1930. Tenho a impressão de que é uma espécie de renovação de certas coisas que aconteciam no México nos anos 1930, de certo tipo de práticas, como o muralismo, por exemplo, as artes populares, mas agora também tentando dar participação aos povos originários. Isso é algo que os outros governos não haviam feito ou haviam feito, digamos, em uma escala menor. Essa seria minha visão em termos de conteúdos, crítico nesse sentido e, principalmente, pensando historicamente e com suas implicações. Penso que há uma espécie de nostalgia de certas práticas, de como regressam. Por outro lado, já no aspecto prático, o que sei é que houve uma mudança, em termos de administração dos recursos, nos fideicomissos. Antes havia muito do que se chama fideicomissos, que são formas ou entidades legais, econômicas, que permitem gerar fundos que são administrados de maneira autônoma, não dependem necessariamente do governo federal ou estatal. Cada instituição tem seus próprios fideicomissos e lá recebem o dinheiro. O FONCA tinha alguns… IMCINE [Instituto Mexicano de Cinematografia] tinha alguns. O que fizeram foi desintegrá-los e, então, fazer transferências diretas. Isso foi o que mudou nesse sentido. Corria o rumor, não sei até que ponto era certo, de que iam eliminar o Fundo Nacional para a Cultura e as Artes, assim que chegou este governo. No fim, isso não aconteceu, mas havia toda essa ideia de que o FONCA seria extinto e que todos os seus recursos seriam redirigidos aos megaprojetos. Outra coisa que tem sido muito presente em termos de política cultural: muitos dos fundos, até onde eu sei, de museus públicos, têm sido redirigidos para projetos culturais, como é o Chapultepc: Naturaleza y Cultura. Então, de alguma forma, muitos dos fundos para gerir os museus têm ido para este megaprojeto que é o Centro Cultural de Los Pinos e, também, todo esse complexo que está sendo desenhado por Gabriel Orozco. Gabriel Orozco não é necessariamente o melhor representante da arte neoliberal, mas é um personagem que, na arte contemporânea, tem mais a ver com a representação do neoliberalismo, por seu êxito como artista no mercado. Também é muito interessante como é a figura pública do grande projeto cultural da 4T [quarta transformação], pois é o artista mais neoliberal, o que mais depende do mercado e que é muito exitoso. É tudo muito engraçado, mas é complexo… Toda essa coisa de elites culturais e como estão em constante batalha. Alguns fazem certas alianças e negações, se renovam. Sexênios depois são substituídos por outras pessoas ou pelas que já estavam lá.
Sharine: Para vocês, para que participem dos editais, está melhor, o mesmo ou está pior?
Daniel: O que tenho percebido, em termos dos resultados dos editais… Por exemplo, o edital em que mais tenho feito inscrições como indivíduo é Jovens Criadores. O que tenho visto é que têm, sim, apoiado mais pessoas de outros estados porque a cultura, no México, como acontece em muitos outros países, está centralizada aqui na grande cidade. A grande maioria dos beneficiários, muitos deles são pessoas que viveram e cresceram na Cidade do México. Talvez mais ao sul, algumas cidades como Oaxaca, ou talvez Guadalajara, Monterrey… Mas o restante do país está um pouco inóspito. Nesse sentido, em termos das pessoas que podem construir uma trajetória como criadores… Tenho visto que têm, sim, tratado de reconfigurar os valores, no sentido de que tratam de que seja mais equitativo nesse aspecto, também em termos de identidades. Pelo que tenho visto, incluem pessoas com deficiência… Também pessoas indígenas… Têm tentado balancear tudo isso. Isso se vê, de alguma maneira, nas pessoas que selecionam, nas pessoas que são os beneficiários.
Sharine: Já falei com muitas pessoas que me explicaram sobre o FONCA, o Jovens Criadores, mas é um modelo diferente do que temos no Brasil… Vocês recebem uma bolsa por três anos?
Daniel: Não, há diferentes categorias. Há diferentes secretarias estaduais. Então, por exemplo, eu, como cidadão de Guanajuato, quando tinha 19 anos, já podia me inscrever para as bolsas de Guanajuato porque são de 18 a 35 anos para jovens criadores. Fiz a inscrição e fui beneficiado. É uma quantidade distinta, é menor que a do sistema nacional. Está dividido: secretarias de cultura estaduais e Secretaria de Cultura nacional. A Secretaria de Cultura nacional tem diferentes programas. Para pessoas que se dedicam à criação, há o programa Jovens Criadores, que é, da mesma maneira, de 18 a 35 anos. Digamos: você, Sharine, já tem um projeto, ou melhor, o texto, está escrevendo uma novela, inscreve-se no sistema Jovens Criadores, tem que apresentar um projeto, sua novela, vai escrevê-la em um ano… E são tantos capítulos… Como qualquer edital. Apoiam por um ano. Então, durante um ano, você, Sharine, recebe o equivalente a, não sei com precisão, mas acho que são dois salários-mínimos… Por ano é mais fácil, foram, ao ano, 120 mil pesos. Este sistema que você menciona, o de três anos, já é diferente. Este é o Sistema Nacional de Criadores e é a partir dos 35 anos. Então, quando você tem 35 anos e tem uma carreira estável, já ganhou não sei quantos prêmios… Bom, pedem uma série de requisitos. Por exemplo, eu, Daniel, agora já posso me inscrever porque fiz 35 anos. Eu me inscrevo, me selecionam e me dão 35 mil pesos, acho, por mês, durante três anos consecutivos. Essa é a diferença. Depois, há outro, que seria algo como Criador Nacional Emérito. Esse é dado a pessoas que já têm uma trajetória, pessoas que já têm mais de 50 anos, que têm uma trajetória longa. Já é voltado para outro perfil…
Sharine: 35 mil pesos por mês? É bastante dinheiro…
Daniel: Sim, sim.
Sharine: Mas devem apresentar os resultados, prestar contas do dinheiro.
Daniel: É diferente, por exemplo, de outras bolsas ou apoios que recebi… Por exemplo, se é uma fundação… Uma vez recebi uma bolsa de uma fundação privada. Com essa fundação privada, você deve apresentar faturas, comprovantes, tudo, não?
Sharine: Sim, como acontece no Brasil….
Daniel: Aqui não é preciso comprovar. Aqui você recebe uma quantidade mensal e decide o que fazer com esse dinheiro. Decide se gasta com aluguel, se gasta em alimentação ou se gasta em cervejas. Ou seja, você decide em que gastar.
Sharine: Mas tem que apresentar…
Daniel: Há três encontros durante o ano, no período do Jovens Criadores. Nesses encontros, há tutores. Esses tutores revisam seu trabalho, comparam, por exemplo, com sua inscrição, com seu projeto. Você disse: “no primeiro quadrimestre, vou entregar trinta desenhos”. Então, conferem: “ah, sim, aqui estão os trinta”. Ou, se você entrega dez, diz: “não, veja, é meu processo artístico… Saíram somente dez…” [risos]. Também depende dos jurados e monitores que tiver, mas, geralmente, é bastante flexível. Ou seja, se promete trinta e, talvez, por alguma razão, faça somente vinte, mas tem sentido no seu processo… É bastante aberto nesse aspecto. O que exigem é que, no final, já na última comissão, que você apresente, no caso de artes visuais, uma escultura, uma série de pinturas, o que planejou.
Sharine: O mesmo acontece com o Sistema Nacional de Criadores de Arte?
Daniel: Não recebi essa bolsa, mas sei que há um sistema também, que são três anos… A cada ano há uma revisão em relação aos resultados… Isso é unicamente com as bolsas que vão diretamente para a criação. Mas, por exemplo, este espaço, Bikini, teve, em 2015, um apoio do Fundo Nacional para a Cultura e as Artes, mas na categoria de coinvestimentos, que é diferente. É para projetos culturais e tem uma série de requerimentos e de requisitos, mais para um instituto. Então, exigem como se você fosse uma instituição. Exigem comprovação de tudo. Acho que cada apoio tem uma lógica diferente.
Sharine: Então, vocês têm uma figura jurídica?
Daniel: Não. Esse apoio, em que você pode se inscrever para coinvestimentos, é voltado especialmente para pessoas com uma associação civil, que já têm uma figura jurídica. Se você for um coletivo e não tiver essas condições, pode se inscrever como pessoa física, mas exigem como se fosse uma instituição.
Sharine: Minha pesquisa começou no Brasil. Estudo a Lei Aldir Blanc, uma lei emergencial. Estávamos em um governo de direita, conservador. Os orçamentos para a cultura no Brasil estavam caindo desde antes desse governo, desde 2013, 2014, havia alguns anos. O que aconteceu foi uma mobilização social dos artistas, uma mobilização popular. Reuniam-se pelo YouTube, pelas redes sociais, WhatsApp e conseguiram pressionar o governo para ter o orçamento, que foi um dos maiores da história das políticas culturais. Foi um orçamento descentralizado. De fato, chegou às pequenas cidades do Brasil, a todos os estados. Eu estudei a mobilização dos artistas, como fizeram isso pelas telas dos computadores, porque estávamos em uma pandemia, como conseguiram falar com os deputados e com os senadores para que aprovassem a lei no Senado e na Câmara. Gostaria de saber como se passou essa mobilização social aqui no México, em relação aos artistas independentes. Como se comunicam? Conseguiram ter êxito nas conversas com o governo?
Daniel: Realmente, este espaço, Bikini, tem se mantido muito distante dessas conversas, mas houve, principalmente durante a pandemia. Houve mobilizações, principalmente pensando que o FONCA seria extinto. Grande parte da comunidade artística começou a se organizar para exigir continuidade… Por um lado, há essa comunidade. Por outro lado, há outra comunidade que vem mais das artes fifís, do que falamos há pouco. São organizadas no sentido de que participam em fóruns públicos, em noticiários, dão suas opiniões, são muito eloquentes. Há também os artistas que já são parte oficial do MORENA, estão muito próximos e fazem parte de seus programas. Então, há diferentes setores, diferentes aspectos, que se mobilizam de maneira distinta, têm suas diferentes características. O mais independente, principalmente nas artes visuais, foi gerar uma campanha bem pequena e sem muitos resultados, pela magnitude do projeto, conscientizando sobre o espaço Chapultepec: Naturaleza y Cultura. Muitos dos fundos de cultura foram redirecionados para esse projeto e isso foi questionado. Não teve alcance suficiente porque a conversa está muito polarizada. Se você critica o governo, imediatamente é uma artista fifí, mesmo que não seja, mesmo que, em termos econômicos, de classe, raciais, não seja e não pertença a essas elites. Se critica, é fifí. A estrutura de MORENA é bem grande e está muito bem articulada. Então, esses artistas ou esse grupo de artistas independentes se organizaram para conscientizar e dizer: “ouçam, estão apoiando esse megaprojeto e deixando os museus que já estão construídos à deriva”. Não receberam apoio de nenhum dos lados, nem dos fifís, nem dos chairos que estão orbitando ao seu redor.
Sharine: E o que você pensa sobre a cultura comunitária, que é um projeto do MORENA?
Daniel: Conheço o projeto dos FAROs [Fábricas de Artes e Ofícios]. Todos esses projetos têm a ver, praticamente, com criar casas de cultura, em diferentes lugares, longe dos centros, como é feito da Cidade do México, nas periferias, ou em outros estados. Acho que são projetos legais e benéficos. Mas acho, também, que são escolas de quadros. Quer dizer, são escolas de formação de pensamento político. Há pessoas que falam da quarta transformação, mas do PRI, do antigo partido político. O que muitas vezes acontece é que são espaços para obtenção de votos. Funciona assim a política neste lado do mundo, mas é muito evidente, não? Mas acho que sim, que são construídas coisas legais, no sentido de que não são todos os professores ou facilitadores, oficineiros que têm esses valores, ou estejam militando no MORENA. Acho que está muito misturado. Mas, estruturalmente, são pensados como eu lhe digo. Ou seja, o projeto é gramsciano, é de gerar hegemonia e gerar hegemonia tanto em um nível macro, como uma Secretaria de Cultura, quando em um nível micro, de pequenas comunidades, como de cultura comunitária, dos FAROS… Eu os respeito, mas também são problemáticos, não? Não estão muito distantes das fundações privadas. Por exemplo, há companhias que têm sua fundação cultural e fazem atividades culturais, também cultura comunitária, mas, ao final, fazem uma espécie de proselitismo pela marca ou pela empresa… Como aqui.
Sharine: Como as políticas culturais podem melhorar a precariedade que há no trabalho artístico?
Daniel: Pois há várias coisas. Ouvi que a nova candidata, que é Claudia Sheinbaum, agora traz toda uma discussão sobre ciência e cultura. Bom, ela é cientista e seu filho é artista, ou dois de seus filhos, porque um é diretor de cinema e o outro é artista visual. Então, está mais consciente desse desenvolvimento. Está propondo, se não me engano, que os artistas tenham direitos como têm os trabalhadores e que possam entrar, por exemplo, na previdência. Acho que é muito legal porque, há muito tempo, os artistas, por serem trabalhadores independentes e não terem um empregador ou uma empresa, o que quer que seja, ou uma instituição, não têm direito a esses benefícios. E mesmo assim pagam impostos e mesmo assim contribuem. Há aspectos básicos, como a previdência social. Mais do que deixar a cargo do governo e das iniciativas governamentais ou estatais, acho que é papel das próprias pessoas, dos próprios artistas, de nos organizarmos. Pelo menos em nossa geração, de pessoas que têm trinta e poucos anos, também de pessoas mais jovens, não há organização suficiente, não há tomada de consciência suficiente. Por isso os partidos políticos chegam, oferecem qualquer coisa e você vai com eles. Há demandas básicas, de que qualquer trabalhador necessita, como, por exemplo, o aspecto do seguro ou o aspecto da precificação, como definir bem os salários, também o aspecto do orçamento das instituições culturais públicas, porque, se as instituições culturais públicas não têm dinheiro, não terão recursos para pagar. Muitas pessoas, muitos artistas, com o simples fato de mostrar sua obra em algum museu que tenha alguma fama local, nacional… Por exemplo, na Cidade do México, digamos que lhe convidem a expor em tal museu, digamos no Museu Tamayo ou no Museu Carrillo Gil. Convidam a expor e, muitas vezes, os artistas dizem, “sim, está bem”, mas as condições de pagamento ou de reconhecimento de trabalho não existem. E, quando existem, às vezes não são suficientes. Isso em termos de orçamentos. Também acho que não é algo específico do México. Isso acontece em todos os países. Geralmente, quando são feitos esses ajustes no orçamento, o que cortam primeiro é a cultura e não a educação. Por um lado, esse é o aspecto de manter os espaços que já existem e mantê-los de forma digna. Quer dizer, não precarizá-los. Por outro lado, há um aspecto mais sobre a comunidade artística, sobre como nos organizamos como frente independente para fazer pressão. E acho que não há isso, como eu lhe digo ou, talvez, haja, mas são os que já estavam antes, que têm muita força e que são os fifís ou os que conseguiram entrar no MORENA, estão lá e podem ser muito eloquentes sobre certas coisas, mas estão limitados, estão em uma situação difícil, porque têm que seguir as linhas do partido.
Sharine: O que falta para que se organizem?
Daniel: Acho que falta, em primeiro lugar, comunicação. Acho que não é próprio da comunidade artística mexicana… Como se concebe a ideia de artista? Como algo mais individual, como algo mais privado, como algo que não necessariamente depende da sociedade. Acho que também está mudando muito a ideia que temos de artista. Historicamente, há muitos exemplos de como isso é posto em questão. Por um lado, é isso. Por outro lado, também é a proximidade dos Estados Unidos. Por exemplo, nas artes visuais, muitas pessoas tratam de imitar os modelos norte-americanos para inserir-se nesse mercado ou, eventualmente, migrar para lá. Talvez, não tenha muito a ver com o Brasil. O Brasil é um continente em si mesmo…
Sharine: Como o México…
Daniel: Mas a vantagem é que não tem os Estados Unidos como vizinhos. Temos identificado isso. Há muito essa aspiração, não? Essa é uma das coisas que tenho discutido também com Gerardo [entra um novo participante na conversa].
Sharine: Você quer falar?
Daniel: Participe também da entrevista, Gerardo. Ele é mais jovem, tem 10 anos a menos.
Gerardo: Sobre o que conversam?
Sharine: É sobre os movimentos sociais. No Brasil, por exemplo, os movimentos sociais dedicados às artes, à cultura conseguiram uma lei de emergência cultural na pandemia, que foi um dos maiores orçamentos de toda a história das políticas culturais brasileiras. Foi construído pela pressão das mobilizações sociais. Agora temos novas leis no Brasil, que estão seguindo este modelo da Lei Aldir Blanc. Então, me interessa conhecer como isso acontece aqui no México, para comparar. Você também é de artes visuais?
Gerardo: Eu sou artista visual. Eu estudei a mesma coisa, estudei na Universidade de Arte. Mas sou de Oaxaca.
Sharine: Estudou aqui na Cidade do México?
Gerardo: Sim, na Esmeralda. É uma parte da Bellas Artes. Mas eu estudei em Oaxaca originalmente. Eu acho que têm acontecido algumas coisas, se você estiver falando sobre os coletivos culturais. O que acontece é que, em 2019, havia pessoas na arte que estavam muito vinculadas à gestão de espaços independentes, como artistas ou coletivos, mas também havia alguns esforços para fazer mapeamentos de diferentes projetos dentro da cidade. Eu acho que isso e outras pessoas, que estavam justamente mais próximas ao governo, impulsionaram uma espécie de lei para reconhecer que há muitos projetos coletivos e que, por outro lado, precisavam de financiamento. No início, era algo para compartilhar e tratar em conjunto de muitos coletivos, tratar de escrever uma espécie de legislação ou, também, uma espécie de bolsa ou de direitos. Mas foi dissolvido muito rapidamente. Havia distintas perspectivas. Havia algumas pessoas que tinham agendas mais políticas, como o que dizia Daniel no caso dos FAROs: embora exista um interesse comunitário e colaborativo, quase sempre está ligado a algum interesse político, principalmente quando há dinheiro do estado. Sinto que as pessoas mais críticas não se interessam por contribuir com esta dinâmica, que provavelmente teria vínculo direto, sobretudo com a 4T. Mais ou menos ao mesmo tempo, começava a campanha de MORENA no México. O que sei agora é que já foi feita uma espécie de lei para espaços coletivos [na Cidade do México]. Mas esse tipo de lei basicamente só regula coisas como ter entradas e saídas de emergência e, principalmente, a possibilidade de vender álcool. Acho que eram as coisas mais importantes…
Sharine: Não há um edital, não há bolsas?
Gerardo: Não. Em uma época tentaram dar umas bolsas, mas não sei o quanto estavam vinculadas com esse processo. Talvez houvesse uma relação… As bolsas chamavam-se Colectivos Culturales Comunitários e acho que foram dadas. O problema dessas bolsas é que não estavam no ponto de refletir sobre os direitos, as possibilidades da arte e dos coletivos. Estava mais focado na transformação de algumas iniciativas culturais, em formar os FAROs, como uma espécie de micro ecossistema. Em geral, o discurso oficial é reduzir a pobreza ou a violência. Então, sinto que havia uma bolsa e era como funcionava, muito como meritocracia também. Ou seja, se você se saía bem no primeiro ano, no segundo ano podia destinar uma porcentagem dessa bolsa para um fim pessoal ou para os colaboradores. Mas, originalmente, não podia destinar mais do que certo orçamento para pagar as pessoas. Tudo tinha que ser gasto em materiais. Ou seja, a obra tinha que ser gratuita. Poderia gastar um pouco em materiais ou em coisas assim. Conforme apresentasse bons resultados, iam lhe dando mais possibilidades de destinar uma porcentagem das bolsas para o pagamento. Digamos, que três ou quatro anos depois, já podia ter um pagamento decente e nem sequer para você, mas para os colaboradores. Acho que, no início, deixavam dar uma porcentagem, mas somente aos convidados, não aos membros do espaço.
Sharine: Isso não existe mais? Ou ainda existe nessa configuração?
Gerardo: Ainda existe porque acho que foi um projeto da administração de AMLO [Andrés Manuel López Obrador], somente na Cidade do México. Nós tivemos esse apoio por dois anos. Por isso, justamente, vimos a transformação de quando passa esse primeiro ano, quando já é permitido destinar os recursos a coisas assim… Mas o problema desses dois anos foi que nos demos conta, desde o início, de que era uma coisa regulada demais pelo estado. Uma pessoa vinha vigiar o que estava acontecendo. Tínhamos que colocar em uma lista, como uma base de dados, todas as pessoas que estavam nas atividades. Isso era muito burocrático, em um nível muito absurdo, de entregar por mês relatórios muito grandes. E justamente isso não era pago. Então, era como receber uma bolsa da qual não podíamos receber nenhum pagamento, na qual tínhamos que entregar trabalho não somente em gestão cultural, mas também administrativo. Estou seguro de que a bolsa ainda existe porque se estendeu, mas, depois do segundo ano, não nos serviu para nada justamente porque o modelo da maioria dos coletivos de arte, principalmente de arte contemporânea, não é tão fácil de sistematizar. Às vezes as atividades não são como uma aula ou uma palestra. Às vezes, há festas ou, às vezes, há exposições. Às vezes, o formato é muito diferente e acho que não conseguem adaptar. Acho que o programa estava mais pensado para artes cênicas ou artes vivas, como teatro, dança ou música. E, imagino, artes visuais, mas muito tradicionais, mais como pintura, grafite. Aqui no Bikini, o pensamento é muito privilegiado, ou seja, o pensamento e a arte contemporânea. Então, há mais reflexão teórica e mais experimentação formal, mais do que somente colocar desenhos na parede. Algo interdisciplinar.
Sharine: E o que vocês pensam das relações com o público?
Daniel: Especificamente, aqui, no Bikini, temos certa clareza de que é algo muito endogâmico, no sentido de que, nas atividades planejadas, o público que vem é, geralmente, de estudantes de artes visuais, estudantes de história da arte ou sociologia, humanidades, curadoria, pessoas que se dedicam também a isso. Por isso mencionei, no início, que é por e para artistas. Há outro tipo de projetos nos quais também estamos envolvidos, que não são do Bikini. Por exemplo, eu, com este outro projeto que mencionava, que estava fazendo com a Universidade de Amsterdam… Lá, estava trabalhando mais a relação com museus comunitários. Há um entendimento distinto ou muito claro sobre para quem se trabalha nesses museus, pois são para uma comunidade específica, um povo específico. Mas também tivemos experiência em outros lugares ou espaços onde a ideia de público é muito diferente. Acho que a ideia de público para Bikini é como uma comunidade pequena, que também vai se transformando ao longo dos anos. Depois dizem: “Ah, é sempre a mesma coisa”. E deixam de vir ou vêm pessoas diferentes. Vão se mesclando. É uma comunidade de pessoas nacionais, mas também, como a Cidade do México, é muito internacional. Ou seja, vêm pessoas de outros lugares. Também é como uma comunidade que está constantemente flutuando, de pessoas que são daqui, do México, ou de outros lugares, que estão se movendo também. É muito internacional nesse sentido.
Sharine: Obrigada! Querem falar algo mais sobre os projetos?
Daniel: Agora estava me lembrando de algo. Não sei se já falou com Tamara Ibarra. Ela é uma artista que deu um salto à política. Continua sendo artistas, mas seu vínculo ou seu salto à política teve a ver com buscar direitos básicos para a comunidade artística, especialmente para a comunidade de arte contemporânea. Ela vê com muita clareza certos processos de transformação das políticas culturais, porque esteve, por muito tempo, presente em muitas essas discussões e tem uma ideia mais clara e vigente sobre isso, pelo menos desde 2016 até agora.
Sharine: Ela é deputada?
Daniel: Era candidata a deputada. Não ganhou, mas continua envolvida com o partido Movimiento Ciudadano. Agora está nesse partido.
Sharine: É oposição ao MORENA?
Daniel: É oposição ao MORENA. É muito pequeno, é um partido pequeno, relativamente novo.
Sharine: De direita ou de esquerda?
Daniel: Eu diria que é de direita. Seguramente, ela vai lhe dizer que não é de direita. Ninguém mais é de direita. Desde que Obrador chegou, ninguém é de direita, nem a direita é de direita.
Sharine: No Brasil, temos mais bem marcado o que é direita e o que é esquerda… Aqui no México fico um pouco confusa… [risos]
Daniel: México é muito ambíguo.
Gerardo: É que a história do PRI, que é o partido mais de direita, o maior, o mais histórico, sempre foi de esquerda, supõe-se, porque se chama Partido Revolucionário Institucional. Mas é como o império…
Daniel: Então, certamente, se você falar com ela, ela vai dizer que não é de direita. Até mesmo a candidata de direita, que se chama Xóchitl Gálvez, diz que é trotskista, que é indígena e é feminista. E está com o partido de direita. Historicamente, é o partido de direita… Não é um partido de direita, assim como o PRI, que é como centro… Mas de direita, de direita oficial. Está lá, aqui todos já estão loucos [risos].
Sharine: É interessante porque no Brasil há uma polarização: os candidatos de Bolsonaro e os candidatos de Lula, por exemplo. Claro, há os partidos do centro, que estão do lado de quem está ganhando…
Daniel: Pois, com essas categorias de fifí e chairo, também funciona assim, porque o fifí é de direita e os chairos seriam de esquerda.
Sharine: E vocês, o que são?
Daniel: Nós somos chairos, mas chairos independentes. E, além disso, pachuli.
Sharine: O que é pachuli?
Gerardo: Não é nada, é uma essência, é uma piada local. Acho que é muito interessante… É uma polarização muito absurda, mas acho que, nesse sentido, jogando esse jogo, nós nos percebemos nesse discurso como chairos, mas somos percebidos nesse discurso como fifís, porque pertencemos a uma elite intelectual e cultural, que é percebida como se fosse uma aristocracia quando, na realidade, vive uma grande precariedade em geral. Mas digamos que existe essa associação, como se os artistas e os escritores não fossem nada mais por dedicar-se a isso, sendo que essa polarização é muito absurda. Não é justa, pois é imaginação política.
Daniel: Claro. Nenhuma polarização é justa ou precisa… Se você questiona qualquer iniciativa do governo, já se torna fifí, mesmo que não seja…
Gerardo: Da oposição, não de seu próprio…
Daniel: Bom, vivemos tempos interessantes.
Sharine: Muito obrigada!