Canclini na Cátedra
Entrevista com Eduardo Cruz Vásquez. Realizada virtualmente, pelo aplicativo Zoom (Cidade do México - Ensenada), no dia 24 de fevereiro de 2024
Sharine: Obrigada pela entrevista! Onde você está morando?
Eduardo: Em uma cidade que se chama Ensenada. É uma cidade costeira do Pacífico mexicano e está a duas horas da linha fronteiriça com os Estados Unidos, onde está a cidade que se chama Tijuana. É chamada de porta da América Latina. É onde termina o México e começam os Estados Unidos. É onde começa a América Latina. É o ponto mais histórico e importante do fluxo de migração. Então, esse lugar é um porto de uns 600 mil habitantes. Eu vim trabalhar aqui para o governo do estado, o governo local.
Sharine: Que interessante. Muito obrigada por conversar comigo. Não sei se você conhece meu trabalho com o Prof. Néstor García Canclini.
Eduardo: Mais ou menos, mas vale a pena escutar de você se for possível.
Sharine: Eu sou servidora do governo brasileiro, do Ministério da Cultura, uma fundação para as artes que se chama Funarte, Fundação Nacional de Artes. Está localizada no Rio de Janeiro. Mas eu vivo em São Paulo, trabalho em uma regional da Funarte. Trabalho como administradora cultural. Faço os editais, programo as exposições, as atividades de teatro, de dança, tudo isso. Fui coordenadora da Funarte SP por mais de dois anos, de 2021 até meados de 2023, quando saí porque recebi uma bolsa do governo de São Paulo para fazer esta pesquisa. Agora estou de licença de meu trabalho e faço somente a pesquisa, com uma bolsa do governo. Eu estudo a Lei Aldir Blanc. Não sei se você conhece. Foi uma lei importante no Brasil no período da pandemia. Mas não estudo a lei em si mesma, mas o movimento social que originou a lei. Foi um movimento popular muito importante no Brasil porque tínhamos um governo de direita que havia cortado muito do orçamento para a cultura. Houve esta manifestação popular por uma lei para os artistas, que foi uma lei descentralizada muito importante. Depois dessa lei, tivemos mais duas, que são a Lei Paulo Gustavo, que também é descentralizada, mas mais focada no audiovisual, e a Política Nacional Aldir Blanc, que tem o mesmo nome, mas é outra lei. É válida por cinco anos, desde 2023, e também é descentralizada. Agora temos um governo de esquerda no Brasil e a Lei Aldir Blanc tem transformado um pouco o Sistema Nacional de Cultura, o sistema federal. Por causa dessas mudanças, estou comparando o sistema brasileiro de cultura com o sistema mexicano. Por isso estou falando com você e com outros pesquisadores também. Para começar, gostaria de conhecer um pouco de sua trajetória no âmbito da cultura.
Eduardo: Bom, eu sou um homem de 63 anos. Iniciei minhas atividades como jornalista praticamente no ensino preparatório. Estudei comunicação. Vários eixos definem meu trabalho profissional. O primeiro e mais importante é o jornalismo, a reportagem de tudo que é o setor cultural. Ao longo deste ano, comemoro quarenta anos de graduação em comunicação pela Universidade Autônoma Metropolitana, mas na unidad Xochimilco. Néstor e Eduardo Nivón Bolán, que você já deve conhecer, estão em Iztapalapa e eu sou egresso de Xochimilco. Também exerci o jornalismo político em alguns momentos de minha trajetória profissional. Participei praticamente de todos os jornais impressos importantes. Alguns deles, de fato, já não existem ou estão muito decadentes. O outro eixo tem sido a gestão cultural, a gestão entendida como um organizador e um promotor de atividades culturais de todo tipo. Tudo o que tenha a ver com o setor, também no público, no social e no privado. Essa tarefa de gestão cultural me levou a um terceiro campo, que é a diplomacia cultural. Fui adido cultural do México em dois países sem ser do serviço de relações exteriores mexicano. Estive no Chile em 1996, 1997 e na Colômbia de 2001 a 2005. Esse gosto e fascinação pela diplomacia cultural me levou a especializar-me no estudo do que é a evolução da cooperação internacional e da diplomacia cultural mexicana. Esses são os três eixos que têm se articulado para dar meu perfil como analista do setor cultural, quer dizer, minha bandeira principal. Minha bandeira contra o vento e a maré tem sido estudar e compreender a realidade do setor cultural mexicano, visto por três grandes componentes, o público, o social e o privado. Foi assim que dediquei minha vida praticamente a este tema. É uma combinação de todas essas experiências que já descrevi que me fez publicar uma grande quantidade de livros. A maior parte é de obras coletivas, quer dizer, eu me especializei em coordenar obras coletivas, em convocar uma diversidade de autores e especialistas para trabalhar sobre temas que defino. Todos os meus livros estão publicados pela Universidade Autônoma de Nuevo León, incluindo este último, que se chama Vislumbres del Sector Cultural. Além desse conjunto de atividades, em 2009, fundamos, com outros colegas, um grupo de amigos que se chama Grupo de Reflexión sobre Economía y Cultura, cujo acrônimo é GRECO, que vejo com muito gosto. Néstor tem uma profunda admiração pelo trabalho que temos feito porque não é uma associação civil, não é uma organização juridicamente constituída. Durante quase quinze anos, temos sido um grupo de amigos que tem animado inúmeras atividades sobre o mesmo assunto, que é destacar a importância e compreender o sentido do que é o setor cultural no México.
Sharine: Compreendo, obrigada. Parabéns por sua trajetória. Gostaria de mostrar um gráfico. Esta é a porcentagem da função cultura do governo brasileiro. Vinha caindo desde 2013, 2014. Estava muito baixa em 2020, quando tivemos a mobilização pela Lei Aldir Blanc. Esta é uma comparação com os gastos para a educação e a saúde. Vemos que o orçamento federal para a cultura é muito baixo no Brasil. Apesar disso, tivemos, como eu disse, a manifestação a favor da Lei Aldir Blanc. Foi uma mobilização importante porque participaram muitos artistas, houve uma grande mobilização popular e, também, a participação de deputados federais, de senadores. Os artistas ligavam para os deputados, ligavam para os senadores para que votasse a favor da lei. Aqui está uma comparação entre o orçamento brasileiro para a cultura, o orçamento federal, somente o federal, e o mexicano. O mexicano é maior. Mas, com a Lei Aldir Blanc e com as novas leis, Paulo Gustavo e Política Nacional Aldir Blanc, o brasileiro passou a ser maior que o mexicano. Tudo isso é para dizer como foi importante a mobilização social no Brasil e para comparar com os movimentos mexicanos. Por exemplo, o Prof. Néstor analisou o movimento #NoVivimosDelAplauso, e penso que há outros também. Gostaria de saber como é a relação desses movimentos mexicanos com a política cultural no país.
Eduardo: Como você sabe, no setor cultural, esses movimentos são multifatoriais. Tentarei não confundi-la, pois a própria natureza desses movimentos remonta a muitos anos. Houve outros, de natureza similar, ou seja, antes da pandemia e ao longo de diferentes momentos de desenvolvimento. Sobretudo, o aparato institucional, a intervenção do Estado, que é outorgada por diferentes razões, tem uma importância muito grande. Todos esses movimentos sempre surgiram como resposta a alguma necessidade, a alguma crise ou a alguma demanda. A mais sobressalente tem sido justamente a que foi gerada a partir dos ajustes de relação laboral que o governo federal e os governos estaduais e municipais começaram a mudar como fruto de outra série de crises institucionais e econômicas do país. Então, nesse governo e na pandemia – são duas frentes que se uniram, ou seja, um governo de esquerda populista, como o que temos, junto com a crise da pandemia -, esses movimentos se incrementaram, não em número, mas em força e na busca por melhores condições laborais. Por quê? Porque uma parte importante dos trabalhadores da cultura que dependem das instituições públicas, em qualquer dos níveis de governo, tem se submetido a formas de contratação que não têm nem previdência social nem, às vezes, garantias de datas precisas para seus pagamentos. Há um movimento que se chama Ya Págame INAH. INAH é o Instituto Nacional de Antropologia e História. Aí há movimentos, mas são fundamentalmente com o propósito de encontrar, por um lado, melhores condições de trabalho e, por outro, claro, exigir recursos para a difusão dos diferentes campos de trabalho que há, desde o aparato institucional, desde o papel do estado, em qualquer dos níveis que intervenham. Sua importância é capital porque, fundamentalmente, é a defesa do direito ao trabalho e a defesa do direito ao trabalho em elementos básicos, como são não somente um bom salário, mas principalmente pago. Corretamente e no momento certo. Por outro lado, também há a exigência de condições de previdência social. Enfim, todos esses movimentos são muito relevantes. Têm obtido alguns alcances em certas formas de contratação, de respostas sob pressão do governo para apoiar a incorporação de muitos deles ao regime de previdência social, através de subsídios iniciais nas cotas. Aqui, há uma instituição que pode recebê-los ou filiá-los, que se chama Instituto Mexicano de Seguridade Social (IMSS). É uma instância onde confluem patrões e trabalhadores vinculados à empresa ou às organizações não governamentais. É onde podem negociar. O outro grande aparato é voltado a trabalhadores a serviço do estado. Isso quer dizer que são trabalhadores como você, que têm empregos permanentes e podem gozar dessa segurança. É assim, com altos e baixos, que esses movimentos seguem atuando. Sua força está muito limitada a conjunturas. Então, ainda são gerados no México? Historicamente, não foram gerados movimentos de grande cobertura, que pudessem realmente desafiar a institucionalidade. Simplesmente surgem situações, são analisadas, são enfrentadas e tentam resolvê-las. Estamos falando desses trabalhadores. Outra coisa, e nisso também Néstor e outros colegas são especialistas, é a frente laboral do trabalhador sindicalizado, vinculado a uma instância legalmente constituída que se chama sindicato. Não é o tema desta conversa, mas simplesmente lhe digo que coexistem também com suas forças os trabalhadores sindicalizados que, à sua maneira, também têm feito inumeráveis lutas ao longo do tempo em defesa de seus interesses laborais ou, até mesmo, do patrimônio, sobretudo na parte do patrimônio histórico. Com o que lidam os dois grandes institutos? Não somente o orçamento, mas também a maior parte dos trabalhadores e a maior parte da oferta cultural, que são o Instituto Nacional de Antropologia e História e o Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura. São órgãos coordenados por nossa espécie de ministério, que se chama Secretaria da Cultura.
Sharine: Também gostaria de conhecer um pouco sobre a história das políticas culturais mexicanas. Já sei que o FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes] foi muito importante, mas agora não existe mais. Foi transformado em outra instituição. O que poderia falar sobre isso?
Eduardo: Isso foi estudado com muito mais detalhes por Eduardo Nivón Bolán. Outra pessoa se chama Lucina Jiménez. São duas pessoas que têm estudado de perto o desenvolvimento institucional. As particularidades do meu trabalho, que o distingue do deles e dos poucos que há sobre o assunto, é que minha visão é de caráter setorial. Quer dizer, não apenas analiso, entendo e compreendo a evolução da intervenção do estado na cultura, em quaisquer de seus níveis, mas também lido com a história compartilhada com outras frentes, que são o âmbito privado, quer dizer, as empresas que têm participado e que também têm sido chave para o desenvolvimento cultural do México. E, claro, o que tem significado a participação das organizações não governamentais dedicadas a oferecer bens e serviços dentro do setor cultural. Em síntese, o que você vai encontrar em todas essas vozes é uma história já muito documentada que, na parte institucional, parece já estar suficientemente esgotada e que tem a ver com a evolução do aparato institucional posterior aos anos da Revolução Mexicana. A partir da década de 1920, foi seguindo um processo de crescimento e de expansão. Crise, crescimento, crise, enfim, que derivam em um momento crucial no ano de 1958, 1960. Por aí, se não me engano, é quando é criada a Subsecretaria de Cultura ou o Vice-Ministério de Cultura no Governo de Adolfo López Mateos, dentro da Secretaria de Educação Pública, convalidando a certeza da Revolução Mexicana fundada por Vasconcelos em 1921, que tinha a ver com o projeto cultural estar subordinado ao projeto educativo. Quer dizer, é a educação, mas é a cultura. A cultura e o que o estado gera são para contribuir com os processos educativos dos mexicanos. Esse esquema se torna mais particular com essa subsecretaria nos anos 1960 e, daí, saltamos muitos acontecimentos de que não vamos falar, até o ano de 1988, dezembro de 1988, quando um presidente chamado Carlos Salinas de Gortari decide criar o Conselho Nacional para a Cultura e as Artes [CONACULTA], que é uma nova instituição. Desaparece a Subsecretaria de Cultura. É criada uma nova instituição, e a intervenção do governo federal é fortalecida, o que tem repercussões em todos os estados da República Mexicana. Seguimos com esse esquema e, também com seus desenvolvimentos, crises, etecétera, até a criação, em dezembro de 2015, da Secretaria de Cultura, que é a separação desse projeto histórico da Revolução encabeçado por Vasconcelos, e que tinha a ver com o fato de que cultura e educação deveriam conviver sob um mesmo teto. Neste momento, decide-se que cada um pode seguir seu caminho sem se separar de seus projetos. Isso é louvável. O desenvolvimento institucional do México está repleto de histórias muito valiosas. Neste novo governo, esse projeto, em essência, não mudou. Seguem trabalhando praticamente sobre os mesmos eixos que herdaram do governo anterior, que chamam de etapa neoliberal e que vêm aclimatando à sua maneira. O que realmente ocorreu foi uma dramática – já vinha mal e tornou-se mais aguda – falta de recursos públicos para o desenvolvimento cultural do país do ponto de vista da intervenção do estado.
Sharine: Como é a relação com o investimento privado no México? No Brasil, existe muito pouco… Os artistas trabalham por conta própria ou têm um fomento público. Há muito pouco investimento das empresas. Em geral, é feito por meio da dedução fiscal, que é, de fato, um investimento público.
Eduardo: Há vários níveis de compreensão. Vocês têm conta satélite de cultura? Vocês têm um sistema de classificação que permite contabilizar o papel de todos que participam do setor cultural? O México tem, desde 2014, um sistema que se chama Conta Satélite da Cultura. No entanto, desde que foi firmado o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, em 1994, entrou em vigor o que é conhecido como Sistema de Classificação Industrial da América do Norte. Esse sistema de classificação foi incorporado a partir da assinatura do TLC, que agora se chama TECMEC, Tratado México – Estados Unidos – Canadá, que foi renovado em 2019 por este regime de esquerda. Ou seja, o instrumento mais neoliberal que pode existir, que é um tratado comercial, foi renovado por um partido de esquerda que diz que não entende e que não quer participar do panorama neoliberal. Sua economia é baseada na estrutura neoliberal. Desde então, de 1994 até 2014, já tínhamos, de qualquer maneira, uma caracterização do setor cultural por muitos instrumentos, quando entrou em vigor a Conta Satélite da Cultura. No site Paso Libre [https://pasolibre.grecu.mx/], para resumir, há um quadro que diz: “Cuarta Jornada Nacional de la Cuenta Satélite de Cultura”. Estamos aí. Um colega e eu estamos comentando a cada semana um gráfico diferente. Foram gerados 23 gráficos, quadros que condensam o mais relevante da Conta Satélite, que é meu interesse, ou seja, o setor cultural mexicano, não a institucionalidade cultural. O setor cultural mexicano tem vivido fundamentalmente do mercado, e este tem sido seu braço forte. Portanto, o que você chama de investimento é o que eu chamo de mercado. Então, o mercado cultural mexicano é o que predomina em toda a atividade do setor e você pode ver isso em muitos desses gráficos. É constituído fundamentalmente por um universo de micro, pequenas e médias empresas que investem, geram produtividade, geram trabalho e geram a maior parte do emprego no setor cultural. Quando acessar essa informação, você se dará conta de que a participação pública é a menor do PIB [Produto Interno Bruto]. Em segundo lugar, muito mais acima da participação do gasto público, está o que o Instituto Nacional de Estatística e Geografia [INEGI] chama de trabalho cultural dos domicílios. Não vou me ater a isso agora, porque é uma explicação técnica complexa, mas está acessível nessa série de gráficos que você pode ver e usar. Então, a resposta é que o investimento dos particulares para o desenvolvimento da vida cultural do país tem sido e estará sempre presente, sendo a mais importante contribuição para a produtividade do setor cultural. Outra coisa: há empresas que criam organizações doadoras e que, a partir do estímulo disponível, criam e distribuem bens e serviços culturais. Para analisar isso, temos o que se chama relatório de doadoras autorizadas. No Paso Libre, se você escrever “donatárias” no buscador, vai encontrar muitas análises minhas sobre os números das empresas. Não é que invistam, mas aproveitam o estímulo fiscal existente para desenvolver bens e serviços culturais. Há outra conta no sistema de contas nacionais, que se chama Conta Satélite das Instituições sem Fins Lucrativos. Aí você analisa outro montão de coisas. O que quero dizer com isso? Quero reiterar que minha posição é de análise setorial e, portanto, não posso separar o sistema, tenho que lê-lo em conjunto. No livro Vislumbres del Sector Cultural, você vai encontrar por escrito muito do que estou dizendo e poderá recorrer a quaisquer dos textos em que analiso uma grande quantidade de dados. É claro que o livro está restrito a um período porque, obviamente, não poderia sair tão atualizado. Mas os gráficos que estou lhe recomendando no site Paso Libre permitem, após a leitura do livro, ver os dados mais atualizados. Então, aí se equilibram forças. É muito difícil dizer se o investimento privado em cultura é satisfatório. Minha análise chega à conclusão de que ainda é um investimento muito baixo. O setor cultural poderia ser muito mais produtivo. Temos muitas empresas que poderiam ser mais proativas na oferta de bens e serviços culturais como negócio e, também, poderiam aproveitar os estímulos fiscais que há para criar mais condições de desenvolvimento.
Não sei se é o caso do Brasil, mas ao meu grupo tem sido realmente traumático entender que o processo de desenvolvimento cultural não passa estritamente pelas instituições culturais e que o setor cultural é amplo, complexo e vasto. Muitos, entre os quais me incluo, dependemos das oportunidades geradas dentro do aparato do estado em qualquer nível. Ou seja, estou aqui em Ensenada, Baja Califórnia, trabalhando para uma instituição pública que vive do subsídio público, não é verdade? Na realidade, há um vasto campo que não é suficientemente conhecido porque temos muita informação, mas há uma enorme resistência à compreensão do que eu chamo de consciência setorial. Não sei se no Brasil existe consciência setorial, quer dizer, a consciência de que você faz parte de um setor e que, dentro desse setor, o aparato público não é importante apenas simbólica e financeiramente. É importante porque marca a rota de intervenção dos governos. Mas ocorre que essa intervenção é mínima comparada ao que dinamiza a oferta de bens e serviços para que o país possa se desenvolver. Aí há uma infinidade de dados. O problema é que isso é como pregar no deserto.
Sharine: Aqui há outro gráfico. Sei que não é sua área de especialização, mas gostaria de saber qual é sua impressão. Aqui diz que, no Brasil, somente 11% do orçamento público para a cultura é federal. Todo o restante é estadual e municipal. Mas, com a Lei Aldir Blanc, isso está mudando porque há um investimento federal muito grande. Por outro lado, é complexo porque há cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, que, de fato, investem na cultura. Mas há cidade muito pequenas, com poucos habitantes, que não têm sequer uma secretaria de cultura. Às vezes, têm uma Secretaria de Cultura e Turismo, Cultura e Educação. Não têm pessoal para trabalhar com isso. Agora, com a Lei Aldir Blanc, que é uma lei descentralizada, o governo federal repassa, para os estados e para os municípios, uma parte do orçamento para que utilizem. Com isso, muitos dos prefeitos dizem: “não vou gastar o meu dinheiro. Como tenho o dinheiro federal, não vou investir em cultura, vou investir em outra área, como educação, como saúde”. Isso está mudando um pouco o sistema federal de cultura. No México, 60% são investimentos federais e somente 40% são estaduais. Não há dados sobre o investimento municipal. Pelo menos, eu não encontrei.
Eduardo: Não, não há. O INEGI, que é nosso instituto que gera tudo isso, ainda não chega ao nível municipal. Por isso, você somente encontra nesse gráfico os investimentos federais e estaduais. Mas deve ter se dado conta de que o estadual vem crescendo. Isso quer dizer que os estados estão se vendo obrigados a colocar mais dinheiro porque deixou de chegar do outro lado.
Sharine: Sim, gostaria de saber um pouco mais sobre a federalização da cultura no México.
Eduardo: Bom, da mesma forma como vocês viviam antes desta lei, que entendo e celebro que tenham conseguido levar adiante… O México tem sido tradicionalmente um regime presidencial. Há esta visão do presidencialismo: das fontes de recursos da nação à decisão do executivo, que controla, geralmente, o legislativo ou que negocia para efeitos da decisão presidencial. Embora, aparentemente, exista pluralidade, na realidade, a linha vertical e de autoridade do presidente é a que toma as decisões. Então, dependendo do humor e do ânimo do presidente, pode ser mais ou menos entusiasta do tema da cultura. A isso, tem se dado também o nome de centralismo, quer dizer, uma política fiscal centralizada, uma política do poder executivo centralizada, uma política do legislativo centralizada, quer dizer, onde os controles são federais em tudo o que é possível, cedendo muito pouco para os estados, que se chamam livres e soberanos. Então, não pode haver uma forma maior de envolvimento dos governos estaduais e municipais porque os recursos que eles recebem, 95% ou 97%, provêm dos cofres federais, quer dizer, são coletados por meio dos instrumentos fiscais que são controlados pelo executivo. Portanto, a única coisa que o governo estadual faz é repassar o dinheiro a suas instituições culturais a partir do que recebe e repassar também aos municípios quando há condições. Nem todos os municípios são iguais. Há municípios onde seguem mesclados cultura, educação, esporte, turismo. Ou seja, há mescla porque há muita diversidade nos mais de dois mil municípios que há em nosso país. Então, no México, ainda não é possível pensar em uma maior capacidade de decisão dos governos estaduais sobre o uso de seus recursos para o que quer que seja, porque eles vêm, como se diz coloquialmente, carimbados. Praticamente não há captação de impostos locais. São muito poucos. E esses floquinhos o governo local, que é onde há um pouco mais de liberdade, manda para onde há emergências. A maior parte das vezes, não tem a ver com bens e serviços culturais. Os casos dependem do tipo de entidade federativa. Há variedade. Nesse fenômeno, não há razões para pensar que será revertido em curto prazo. Quer dizer: essa política vai permanecer. Se o orçamento federal é restritivo para a cultura, o que os estados fazem é sustentar o que têm. Isso leva a aumentos que são dados, quase forçados pelas condições. Por quê? Bem ou mal, não há outra maneira. Mas nunca serão suficientes. o gráfico do INEGI mostra claramente e eu não vejo uma perspectiva de mudança até que mude a política fiscal e que a política fiscal permita que os estados e os municípios possam ter maiores recursos e que, eventualmente, as autoridades possam destiná-los ao desenvolvimento cultural.
Sharine: Somente para esclarecer: não há impostos estaduais nem municipais?
Eduardo: Há impostos estaduais e municipais, mas são a menor fatia do bolo.
Sharine: Entendo.
Eduardo: A maior captação de imposto… O valor agregado, o IVA, o Imposto sobre o Valor Agregado, o imposto de renda, os impostos sobre muitos bens e serviços são pagos nos estados e municípios, mas são pagos aos cofres do executivo federal, que, por sua vez, devolve as participações. Os circuitos locais são básicos, digamos, o predial, o pagamento de impostos anuais por direito, por ter propriedades, por exemplo, sobre espetáculos públicos, licenças. Há uma pequena gama de impostos locais que o governo estadual ou municipal capta para sua administração e devolve à sociedade como bem entende. Mas é uma participação muito pequena em relação à sua maior fonte de financiamento para sustentar suas burocracias, seus trabalhadores… Muitas obras públicas provêm da captação federal. Por isso, muitos estados se queixam de que são grandes geradores de impostos e que lhes devolvem pouco. Esta é uma história que não vem ao caso contar.
Sharine: É importante para que eu compreenda como funciona o orçamento para a cultura.
Eduardo: Os governos estaduais também têm congressos, com deputados, com representação popular. Um estado recebe uma quantidade de recursos para todo o ano. Então, o congresso local faz o mesmo que o nacional, ou seja, distribui o dinheiro entre as pastas e as instituições públicas de cada entidade. O municipal faz sua própria distribuição. Não há congressos locais, mas há conselhos. Então, repete o esquema nesta estrutura. Obviamente, se o cobertor não é muito grande, eles dão prioridade. Dizem: “em primeiro lugar, hospitais, estradas, serviços públicos, serviços de limpeza, etecetera. Então, vão deixando o campo cultural com muito menos dinheiro porque entendem que ter água é mais importante que ter casas de cultura. Ou seja, em primeiro lugar, abrir caminhos para chegar aos povoados ou dar vacinas ou que quer que seja. Não há muita diferença entre o que ocorre em qualquer país, ou seja, os congressos e as autoridades estabelecem suas prioridades.
Sharine: A próxima questão é sobre as distintas concepções de cultura. Aqui, tenho um exemplo do Brasil com recursos da Lei Aldir Blanc. Nos municípios brasileiros com menos de cinquenta mil habitantes, que são municípios pequenos, o artesanato, por exemplo, as manifestações populares, a música, são mais presentes nos editais. Mas, nos grandes municípios, há principalmente o teatro, a dança. Como se dão essas diferenças, essas distintas concepções de cultura no México?
Eduardo: Veja, eu não me envolvo nas definições antropológicas. Posso dizer com muito respeito. Detesto a definição da UNESCO, por exemplo. Enfim, não me envolvo nessa discussão porque meu ponto de análise é mais economicista. Não sei se, no Brasil, se utiliza o dito popular… Dizem: “o que veio primeiro, o ovo ou a galinha?”
Sharine: Sim, claro.
Eduardo: Pois então: o que veio primeiro, a política econômica e a análise econômica ou o estudo antropológico e as definições de cultura? O que lhe digo é que a classificação que temos das atividades legalmente constituídas e definidas dentro de um sistema de vida provém do âmbito da estatística porque é o que se pode medir. Esse sistema de classificação tem pelo menos duas fontes para que seja medido. Como se movimentam os bens e serviços culturais? É o que se chama de gasto cultural nos domicílios. Essa é uma forma de medir quais são os gostos, as tendências ou a maneira como as pessoas gastam com o que consideram cultura. Há uma ampla gama de definições. Como parte do INEGI também, anualmente é editada a atualização do módulo de atividades culturais, que é outra forma mais particular, distinta da conta satélite, que analisa o consumo cultural dos mexicanos. Aqui se analisa o gasto, ou seja, o que as pessoas decidem colocar de seu bolso em bens e serviços ou acessá-los gratuitamente. Diz quantas pessoas preferem o audiovisual ou consumo artesanal ou as artes cênicas ou a cultura digital, o que quer que seja. Outra coisa: o que este módulo de atividades culturais mede é justamente o consumo, que são duas coisas distintas. Então se complementam? Pois uma coisa é o que gasta, e outra coisa é o que as pessoas consomem. Então, para além das definições antropológicas, há essas ferramentas que estabelecem com toda a clareza, de acordo com a classificação existente, porque podem medir. É confiável medir porque diz sobre experiências objetivas e não sobre suposições ou feeling, como se diz também. Aí se vê claramente que as tendências estão, sobretudo, no que é produção audiovisual e digital. As pessoas têm também uma enorme fascinação pelo tema artesanal em todas as suas formas de expressão, que são a produção e o consumo desses bens. Nesta zona, por exemplo, que é fronteiriça, é maior o número de estabelecimentos comerciais que dão vida à economia local, que estão ligados aos souvenires, aos artesanatos para os milhares ou milhões de turistas ou de mexicanos americanos que passam por aqui consumindo e levando coisas. Nós sempre nos damos conta de que as disciplinas menos beneficiadas são as artes cênicas. Até mesmo os concertos, que parecem muito grandes e ambiciosos, também são partes do bolo mais modesto. Então, não quis me deter nisso porque os nomes todos das disciplinas estão nesses gráficos. Mas essa é a minha análise. Minha luta tem sido trabalhar com o INEGI e forçá-lo a fazer coisas que nos permitam estabelecer todos os critérios, metodologia e comparabilidade. Muito que foi feito na primeira década neste século através do CONACULTA foi importante. Foi feita uma primeira pesquisa de consumo cultural, uma primeira pesquisa de hábitos de leitura, um atlas de infraestrutura cultural… Mas o problema é que não estavam relacionados à metodologia do INEGI e não eram, portanto, comparáveis. São peças históricas que servem para construir uma história de estudos. Aí poderíamos ver outras coisas mais. Fizeram uma pesquisa em 2010 que você encontra por aí. Apresenta os consumos culturais, por estado da federação, e diz que, naquele período, a atividade preponderante das pessoas era ir ao cinema.
Sharine: Sim, eu li. Mas me interessa saber como se são essas mudanças, a relação com os movimentos culturais e com as políticas públicas, porque há pouco dinheiro, como há pouco no Brasil também, e é necessário escolher. Vai para o artesanato, para o teatro, para a dança? Como isso acontece?
Eduardo: De todas as decisões de dotação orçamentária, quando chega um recurso a uma repartição pública, embora exista um programa de operação e existam linhas de política cultural, tudo se torna muito discricionário. Depende muito do ânimo do funcionário e do dinheiro que recebe, para que quer destinar mais ou menos recursos. Mas volto ao que lhe dizia no princípio. Há muito pouco dinheiro do estado, mas há muito dinheiro no mercado. Então, é uma pena e uma vergonha que o recurso do estado seja assim. No Brasil, no México, na Colômbia estão em situação pior… Mas o que movimenta é o mercado…
Sharine: É maior.
Eduardo: Muitos criadores não se alegram com isso porque dependem da força do mercado e do consumo na concorrência. Pelo menos, o que é privado pelo mercado não parece bom porque não satisfaz a demanda dos criadores por subsídios. Vou dar um exemplo. Sustentei, em muitos artigos, que a dança contemporânea deveria ser declarada uma prática cultural em perigo de extinção. Deveria haver uma declaração de emergência e deveriam dar um subsídio permanente a todos os bailarinos de dança contemporânea. Claro, a menor parcela de trabalhadores da cultura é a que se dedica à dança contemporânea. Há mais músicos, mais bailarinos folclóricos, há muitos artesãos, há roqueiros, há produtores de vídeo, há o que você quiser. A menor, a menos compreendida e com menos recursos é a dança contemporânea. Deveria ser declarada em perigo de extinção e os bailarinos deveriam ser beneficiários permanentes de subsídios para salvaguardar a integridade de uma disciplina que não teve lugar suficiente. Companhias desapareceram recentemente, foram fechadas academias. No Paso Libre, fiz uma resenha sobre um relatório que foi feito sobre a dança contemporânea. É um estudo que traz artigos de pessoas do Brasil, do Chile, do Equador, me parece. Fizeram um compêndio pedindo a muitas pessoas que falassem sobre a situação da dança contemporânea. Quase terminei chorando. É uma situação dramática. Fiz dois artigos sobre esse livro. O que se passa para responder sua pergunta? Não há dinheiro suficiente, há muita demanda da comunidade cultural para o estado. O estado distribui como lhe dá vontade e como lhe parece que deve ser melhor. Então, neste sexênio, com este governo de esquerda populista, foi decidido que a prioridade é o resgate e a salvaguarda de todo o patrimônio histórico pelas obras do Trem Maya que já levou vários bilhões de dólares (milhões, convertidos em pesos mexicanos). A outra prioridade é o Bosque de Chapultepec, que está na Cidade do México, que realmente precisava de uma boa reforma, mas que vai levar outro montão de dinheiro. O que você faz quando centraliza o que tem em algumas ações porque, para você, são as mais importantes? Descuida de muitas outras coisas. Enquanto está criando isso, os museus estão caindo. Aqui onde estou, há uns escritórios em um lugar que foi um cassino emblemático na fronteira. Estou trabalhando e ontem fui vê-los. Estão inundados de água, de infiltrações, estão adandonados. Não há dinheiro! Estão dentro de um edifício catalogado como patrimônio arquitetônico do século XX. Onde está o dinheiro? Pois está nas obras de revitalização de Tijuana, que tem milhares de carros. Não há outra forma de fazer as coisas, além de seguir fazendo pontes, pontinhas e pontões porque as pessoas usam carros e o transporte aqui em Tijuana… Quiseram fazer o Metrobús, como na Cidade do México. Aqui, em Tijuana, tentaram fazer algo igual. Hoje você caminha por essas áreas de Tijuana e está abandonado. Por isso, digo a meus amigos: “onde está o dinheiro que você queria para a cultura?” Convertido em 2km do Trem Maia ou em cinco tubos da refinaria de Duas Bocas (Refinaria Olmeca, localizada no estado de Tabasco) ou em qualquer outra, em meia pista de aviação do Aeroporto Internacional Felipe Ángeles.
Sharine: Como vivem os artistas emergentes? Vendem ingressos? Como fazem?
Eduardo: Esta é outra coisa que considero como um preconceito porque minha análise é setorial. Para mim, uma obra de teatro, que é promovida por uma companhia que se dedica a isso, uma empresa que se dedica a isso e cobra por isso, paga seus impostos, paga os artistas, é tão valiosa quanto a que recebe subsídios. São públicos distintos, produções comerciais, não? Bom, se eu compro os direitos de Mama Mía, da Broadway, e a monto, tenho que ter retorno. Creio que teve um custo. Então, obviamente, voltamos ao mesmo. Todas aquelas produções que requerem ser subsidiadas porque não se ajustam ao mercado, porque não respondem ao mercado ou o mercado não responde a elas, voltamos ao mesmo lugar. Não há dinheiro suficiente para financiar companhias de dança contemporânea, companhias de teatro ou grupos que se formam com o objetivo de montar uma produção artística. Não há dinheiro suficiente para que possam ter emprego por meio do subsídio. Essa produção cultural morre ou não é realizada ou sai mais ou menos porque não há dinheiro suficiente, mas também não cabe do outro lado. É aí que entra o apoio do estado aos artistas. Mas, se o estado não destina recursos suficientes para dar emprego a seus artistas, que precisam viver do trabalho gerado pelo governo, há precariedade, há ruptura, há abandono de ofícios, há insatisfação, fúria, broncas… Por quê? Porque o dinheiro não alcança nem mesmo quando há o estímulo fiscal às artes, que financia obras de teatro, pois se queixam que não é suficiente ou que dão a certos produtores e não a outros. Eu queria que houvesse uma bolsa bem grande para que todos tivessem emprego. Não há maneira de investir em uma produção, em um teatro. Não há e não sei de onde vai sair nem como vai sair. Escrevi outro artigo, agora com as eleições, cujo título é ¿Cuánto vale tu voto?. Eu fiz um cálculo de quanto dinheiro foi perdido entre o governo de Peña Nieto, no sexênio anterior, o último do PRI [Partido Revolucionário Institucional], e este de esquerda. Lá estão os números que estão no meu livro, seus bilhões de pesos que deixaram de ser injetados na instituição e até mesmo no mercado. Se uma instituição abrir um museu, tiver dinheiro suficiente para fazer boas exposições, contratar curadores ou contratar a imprensa ou o designer para fazer o catálogo, comprar pregos, comprar tinta para pintura… Isso beneficia aos provedores de insumo da cadeia pela compra do governo. Se a compra do governo diminui, também impacta, de alguma forma, o mercado. Essa é a cadeia de valor. A falta de financiamento público também se passa nos hospitais, no petróleo. Ou seja, quando não há investimento público suficiente, afeta muitos provedores e, além disso, acrescenta as dívidas com os provedores.
Sharine: Era a minha próxima pergunta. No Brasil, é importante ter o investimento público, os editais, por exemplo. Mas, pessoalmente, penso que não é suficiente porque também gera precariedade, porque os artistas trabalham somente por projetos, não podem se aposentar, não têm previdência. Penso que o mesmo se passa aqui. Você já falou bastante sobre isso… É difícil pensar em outra maneira de fazer política pública que não seja utilizando editais…
Eduardo: O tema é mais profundo e é parte da análise setorial. Eu digo em um minuto: no Brasil e, em todos os lugares, há um conceito chamado planejamento. Aqui no México, há uma lei de planejamento e todos os estados têm leis de planejamento. Somos países que, pela natureza de suas estruturas políticas, seu subdesenvolvimento, são relutantes, são anêmicos, odeiam planejamento. Se planejassem o desenvolvimento, haveria dinheiro para tudo e para todos, sob o princípio da economia que diz que nunca são 100%, sempre há um déficit. A ideia de que um dia haverá muito dinheiro para que, então, agora sim, todo mundo fique contente é uma distorção da economia e vai contra todos ao final. Mas poderia ser planejado um desenvolvimento setorial, não das instituições do governo, mas do setor em seu conjunto. Isso é adiado em nossos países. Então, você vive da inércia, da bendição do Pai Todo Poderoso e do que mais ou menos… Se você conseguir um bom funcionário público, se de repente conseguir um grupo de legisladores que criem uma lei, ótimo, certo? Provavelmente aparecerão outros que não estão nem aí. Então você vive desordenadamente.
Sharine: Para terminar, gostaria de perguntar duas coisas. O que você pensa do acesso público em relação com tudo isso, a importância que o público dá para a cultura ou para as políticas públicas? O que você pensa das eleições que estão próximas aqui no México? Como isso pode mudar as políticas culturais ou o setor?
Eduardo: O problema, para mim, nunca foi a vida cultural do México. É boa, é ruim se os mexicanos vivem… O problema, para mim, é que as pessoas que vivem de bens e serviços culturais possam viver bem. Para mim, essa é a análise. A análise não é se o estado de Guerrero tem mais patrimônio que o de Oaxaca ou se os habitantes de Chihuahua são mais ou menos passivos para a dança que para as artes visuais, se as cidades industrializadas, como a Cidade do México ou o estado de Jalisco, têm mais gamers ou mais estilistas, se as pessoas compram mais ou menos livros… Não, o que me preocupa é que essas poucas pessoas vivam do que fazem. Não sou contra o subsídio. Sou contra não existir um planejamento e uma análise que permita projetar o desenvolvimento, por mais que tentem e digam e encham a UNESCO de imagens bonitas e de coisas sensacionais: “juntos venceremos e a economia criativa é o braço…”. O México é um país que não tem problemas com a recepção de sua produção cultural. Além disso, como em todo o mundo, às vezes é feita na raça, em situações de precariedade e de trabalho coletivo, esforços, doações tiradas do nada, recursos pessoais. Ou seja, a criatividade do povo mexicano, sua produção, sua diversidade, esse não é o problema em nosso país. O problema, neste país, é que o que constitui sua cultura gere bem-estar para quem a faz. Qual a consequência para quem a recebe, para quem a consome? Ou seja, é virtuoso. Esta crise vem se arrastando desde, pelo menos, os primeiros anos deste século. É solucionada com puros paliativos. Há partes que, mais ou menos, fazem as coisas funcionarem. O que ocorreu com este governo foi que a crise se aprofundou. A queda tem sido brutal do ponto de vista da estrutura do governo, que teve suas repercussões no mercado. Aí está o gráfico do produto interno bruto. Temos um desenvolvimento histórico muito modesto desde que começaram as medições com a conta satélite. O que este governo fez foi atingir o setor em todas as frentes. No meu livro, há um texto que recomendo que leia, que se chama “4T”, o acrônimo da quarta transformação. Eles dizem: “o colapso que impulsiona um novo setor”. Aí vislumbro não somente a queda do setor em seu conjunto como também as possíveis alternativas. O que nos espera no processo eleitoral? Não há muita expectativa sobre o que possa acontecer. Se ganha o governo atual, ou seja, se houver uma confirmação da confiança dos cidadãos no regime atual por meio da eleição de uma presidente que pertence a esse movimento, será, como se diz popularmente, o mesmo de sempre. Até onde chegará a crise? Não sei. Mas o que irá ocorrer é que vai se prolongar. Tomara que seja como diz uma canção: “dichosos aquellos que tocaron fundo porque saben, al menos, que de ahí no pasarán”. Não sei se a crise do setor cultural mexicano já tocou no fundo. Acho que não, que pode ser pior, que pode haver muito mais desemprego, que pode haver muito mais instituições públicas em apuros e trabalhando com precariedade, que o mercado não vai crescer nem tem capacidade para absorver tanta mão de obra, que não vão aumentar as doações ou o investimento das empresas. Também acredito que não irão crescer se utilizarem a lógica fiscal para o trabalho cultural. Agora, se chegar a oposição, a única coisa que pode acontecer é reinjetarem o dinheiro que foi perdido… “Vou colocar o dinheiro que os outros tiraram”. Essa pode ser uma solução conjuntural interessante, enquanto não se aprofundam as reformar estruturais do setor. Para planejar e fazer as coisas, é preciso reformar muito do que não está funcionando bem no setor cultural e nas instituições em particular, que já são verdadeiros cadáveres. São farinha de outro saco, como se diz também popularmente, e já não quero lhe enredar aqui porque entraríamos em outro mundo. Há um livro que coordenei nas campanhas de 2018, que se chama Es la reforma cultural, presidente. Foi feito um livro de 39 autores em que propusemos um monte de coisas ao então candidato à presidência, López Obrador. Seis anos depois, o livro continua sendo válido porque a reforma cultural não foi feita.
Sharine: Às vezes penso que, no Brasil, fazemos o mesmo desde 1930 ou 1950 [risos]. As coisas mudam um pouco, mas não é suficiente.
Eduardo: Eu queria que fosse. Eu queria que fôssemos mais estrangeiros neste sentido, ou seja, uma política fiscal muito mais favorável para o investimento. Gostaria que fôssemos mais franceses porque há muitos recursos fiscais e podem sustentar um aparato de subvenção tão gigantesco como o francês, que dizem que é o russo. A China sustenta grande parte de seu aparato cultural a partir de grandes quantias de dinheiro em seus âmbitos de produção econômica e cultural. Espero ter ajudado.
Sharine: Sim, muito. Obrigada!