Canclini na Cátedra

Entrevista com Nivón Bolán. Realizada presencialmente, no escritório de Nivón Bolán, na Cidade do México (México), no dia 23 de fevereiro de 2024

Sharine: Obrigada pela conversa. Como disse, estou trabalhando com o Prof. Néstor García Canclini, na Universidade de São Paulo. Estou comparando as políticas culturais mexicanas com as brasileiras, especialmente sobre a Lei Aldir Blanc, que foi uma lei muito importante no Brasil porque mudou uma grande parte do Sistema Federal de Cultura. Mas, antes de começarmos, gostaria de falar sobre sua trajetória.

Nivón Bolán: Eu sou Eduardo Nivón Bolán, sou antropólogo. Trabalho, há muitos anos, na Universidade Autônoma Metropolitana, no Departamento de Antropologia. Comecei a trabalhar com temas urbanos, relacionados à marginalidade e, em seguida, com temas mais próximos à cultura, aos estudos sobre cultura urbana. Escrevi minha tese de doutorado sobre as grandes periferias da Cidade do México. Eu a intitulei “Mirar la ciudad desde la periferia”, buscando uma abordagem diferente, porque normalmente as cidades se veem ao contrário, do centro para fora. Eu tentei fazer o contrário. Mais ou menos a partir de 1995 ou 1997, eu comecei a estudar as políticas culturais, concentrando-me nisso, fundamentalmente. Em 2013, foi criada uma especialização em meu departamento, uma pós-graduação em políticas culturais e gestão cultural. Tenho sido o coordenador desde que o programa foi fundado. Algumas vezes, assessorei algumas atividades, alguns projetos públicos da Cidade do México, ou participei de projetos. Eu participei, a propósito do tema em que tenho interesse, da elaboração de uma minuta da Lei Federal de Cultura, que não foi aprovada. Há uma lei vigente, que foi feita após esse projeto. Esse projeto foi convocado e aprovado pela Câmara dos Deputados, mas, quando passou ao Senado, não foi aprovado. O Senado fez outro projeto de lei, que foi aprovado finalmente.

Sharine: Este projeto de lei é bom? O que você pensa sobre ele?

Nivón Bolán: O projeto de lei vigente acabou sendo mais limitado do que o que fizemos. A Câmara de Deputados convocou um grupo de esfinalmentes para que fizessem o projeto e os instruiu para que trabalhassem por uns seis meses. Éramos umas dez, doze pessoas e havia dois ou três advogados e especialistas que trabalhavam no campo de direitos culturais, que foram os impulsionadores do projeto. Buscaram um projeto mais amplo, definiram com certa amplitude os direitos culturais e elaboraram algumas medidas para garanti-los. Esse projeto foi aprovado quase por unanimidade pela Câmara dos Deputados. Quando chegou ao Senado, os senadores disseram que a Câmara de Deputados não poderia ser a câmara de origem de um projeto de lei porque havia sido a casa de origem das reformas que conduziram à aprovação da Secretaria de Cultura alguns anos antes. O Senado considerou que ele é que deveria ser a câmara de origem do projeto de lei. Houve uma discussão. Depois de um debate, o nome “Lei de Cultura e Diretos Culturais” foi conservado, mas a lista de direitos que havíamos incorporado se reduziu um pouco. Ficaram mais restritas, digamos, as medidas que havíamos considerado sobre o fomento, sobre a consulta, a participação. Desde cedo, houve o cuidado, no Senado, para que não houvesse repercussões orçamentárias. Não queriam uma lei que repercutisse no dinheiro público, no orçamento. Transformou-se em uma lei mais simples do que o projeto que havíamos elaborado.

Sharine: De que ano é?

Nivón Bolán: O projeto que elaboramos é de 2017.

Sharine: Tem a ver com a nova Secretaria de Cultura?

Nivón Bolán: A Secretaria de Cultura foi criada em dezembro de 2015. Essa lei foi aprovada pela Câmara de Deputados no início de 2017. O Senado não trabalhou com ela, mas fez um novo projeto. Creio que foi aprovada, também, neste mesmo ano de 2017, a Lei Federal de Cultura e Direitos Culturais.

Sharine: Sou formada em comunicação social, em publicidade. Mas fui trabalhar no Ministério da Cultura, em uma vinculada que se chama Fundação Nacional de Artes, em São Paulo. No Brasil, meu cargo é de “administradora cultural”. É como se fosse uma gestora cultural. Eu faço a programação de exposições, teatros, danças e coisas assim. Também faço as chamadas públicas, os editais para projetos. De 2021 a 2023, no ano passado, fui coordenadora dessa instituição em São Paulo. São dois espaços: Complexo Cultural Funarte São Paulo e, também, um teatro que se chama Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Penso que você deve conhecer porque Augusto Boal começou a trabalhar lá. Então, é um espaço importante para a cultura brasileira. Desde 2020, eu estou trabalhando com o Prof. Néstor García Canclini. Comecei a fazer uma pesquisa sobre os movimentos sociais que deram origem à Lei Aldir Blanc. Não sei se conhece…

Nivón Bolán: Conheço porque li seu texto.

Sharine: Foi uma lei muito importante porque estávamos no governo de Jair Bolsonaro no Brasil. Era um governo conservador. Tínhamos muito pouco orçamento para a cultura. Também não havia, por parte do governo, uma ação para a pandemia, para ajudar os artistas. Então, houve essa mobilização social por uma lei que foi importante porque foi uma lei descentralizada. Há um projeto, muito antigo no Brasil, do Sistema Nacional de Cultura. É um projeto federativo. O Governo Federal repassa o dinheiro para os municípios e para os estados, para ações locais. Isso chamou a atenção porque vínhamos de uma queda no orçamento. Estava muito baixo. A Lei Aldir Blanc mudou isso. Podemos comparar com saúde, com educação. Somente essa porcentagem é cultura no Brasil. É muito baixo.

Nivón Bolán: É quase a mesma porcentagem que no México, não é? 0,2%.

Sharine: Sim, é a porcentagem do orçamento, não do PIB… Então, tivemos essa manifestação popular. Há imagens dos encontros transmitidos pelo YouTube. Foi uma manifestação muito importante no Brasil. No México, o orçamento é maior. Mas, quando tivemos a Lei Aldir Blanc, a relação se modificou. Falo sobre isso para comparar…

Nivón Bolán: No México, o orçamento da Secretaria de Cultura é de 0,2% [do orçamento do Governo Federal]. É igual aos 0,2% do orçamento que você tem aí [contudo, a porcentagem do orçamento brasileiro foi calculado sobre a diferença entre o valor do orçamento total do Governo Federal e os encargos especiais, o que pode ter influenciado a interpretação do entrevistado].

Sharine: Eu li que há movimentos sociais no México, mas que não foram tão fortes como o realizado pela Lei Aldir Blanc no Brasil. Gostaria de saber como os movimentos sociais percebem as políticas culturais mexicanas.

Nivón Bolán: É uma pergunta difícil. Os movimentos sociais, como no Brasil, sempre foram muito importantes. O impacto que tiveram foi notável em certas áreas. Há movimentos rurais, movimentos campesinos. Se olharmos nacionalmente, não há um impacto muito forte porque os movimentos campesinos estão muito localizados. Onde participaram, houve um impacto positivo, mas não muito notável.  Por quê? Porque, durante muito tempo do século XX, houve um grande partido que conseguiu o controle, sobretudo dos movimentos campesinos… Os movimentos operários também foram muito reduzidos porque esse mesmo partido, o Partido Revolucionário Institucional, tinha um amplo controle sobre os movimentos sindicais. Então, os movimentos operários também tiveram um impacto reduzido. Conformaram-se, sobretudo em algumas áreas. Por exemplo, as universidades. Por outro lado, tiveram um impacto muito notável nas cidades. Os movimentos locais foram muito notáveis porque influenciaram muito claramente a governança das cidades. Exigiram participação e, pouco a pouco, intervieram nas grandes tendências pela democracia. Nesses movimentos urbanos, havia expressões de cultura. Muitos artistas se integraram a esses movimentos, às vezes como militantes nos movimentos urbanos, às vezes propondo medidas propriamente culturais, ou seja, desenvolvendo projetos urbanos que tiveram uma vertente cultural para fortalecer também organizações de bairro, casas de cultura e outras, como escolas de formação, etc. Então, isso começa um pouco aí. Os movimentos culturais foram grandes aliados, como no Brasil também, dos movimentos pela democracia. Penso que os movimentos pela democracia, os movimentos contra as sociedades autoritárias encontraram um grande eco nos movimentos culturais. Por quê? Porque os sistemas autoritários na América Latina eram sistemas autoritários integristas. A cultura, pelo contrário, estalou a diversidade. Então, os movimentos pela democracia tiveram um grande interesse em desmontar o autoritarismo do estado, esse integrismo. Encontraram na cultura um aliado privilegiado porque a cultura estava preparada, estava trabalhando a favor da diversidade. A diversidade foi uma das grandes bandeiras. Era diversidade política e diversidade de todo tipo. Nos anos 1990, os movimentos culturais foram os movimentos aliados ao processo de democratização. Tiveram um grande impacto os artistas, os escritores. Penso que isso se deu em toda a América Latina, de modo muito geral. No caso mexicano, quando os partidos de esquerda começaram a participar na governança, os movimentos sociais tiveram menos transcendência. Muitos dos líderes dos movimentos sociais integraram-se ao governo. Isso fez com que os movimentos sociais começassem a decair porque os líderes começaram a ser funcionários. Esta cidade tinha movimentos pujantes. A partir da esquerda, por exemplo, que passa a conduzir a cidade em 1997, tiveram menos transcendência, menor importância. Então, pode-se pensar que a democratização levou a certa debilidade dos movimentos sociais porque os líderes acabaram se incorporando ao governo, controlando os movimentos e suas propostas. Desde então, continua havendo movimentos independentes, mas com menos beligerância, com menos presença do que houve nas décadas de 1980 e 1990, quando havia uma presença dos movimentos culturais. Sobre seu interesse de refletir sobre isso, eu faria uma consideração desse tipo. Os movimentos sociais entraram em uma avenida um pouco restrita e de certo controle desde que se processou a democratização. O estado assumiu muitas bandeiras da esquerda e tentou desenvolvê-las a partir de cima. Mas os movimentos sociais passaram a ter menos participação.

Sharine: Entendo. Isso ocorreu na cidade. E no país?

Nivón Bolán: No país há outro movimento social muito importante, o movimento zapatista, que é uma guerrilha de muita visibilidade, que se manifestou pela autonomia do movimento e de seus territórios. O zapatismo acaba de fazer trinta anos. Mas o zapatismo ficou muito localizado e, até certo pondo, a defesa de sua autonomia também patinou. O zapatismo, por exemplo, rompeu com instituições como a escola. A escola é um dos grandes instrumentos dos estados modernos para homogeneizar um certo pensamento nacional. No caso do zapatismo, criaram seus próprios instrumentos de governo. Não permitem, praticamente, a presença de partidos políticos em seus territórios. Tampouco permitem a chegada de grandes projetos sociais, de saúde, por exemplo, ou de infraestrutura. O território do zapatismo se converteu em um território efetivamente autônomo, com muito pouca presença do estado, mas muito poroso ao narcotráfico e ao crime organizado. Agora, aos trinta anos, saíram muitas declarações sobre o que tem se passado no território zapatista porque o crime organizado viu com conveniência tanta autonomia, tanta ausência do estado. Há outros movimentos, movimentos indígenas… Mas são mais reduzidos, com algumas figuras muito interessantes, mas mais reduzidos.

Sharine: O que se passou na Lei Aldir Blanc, no Brasil, foi que os artistas, os trabalhadores da cultura, tinham acesso aos deputados, aos senadores, ligavam, mandavam mensagens, contavam quantos votos havia a favor, quantos votos contra. Então, de fato, eles participaram da lei e da política nacional. Penso que isso não há aqui no México…

Nivón Bolán: Não há. As comissões de cultura da Câmara foram criadas na legislatura do ano de 1988, que começou em setembro. Nesse ano, foi criada a comissão de cultura do Senado e a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Antes, os temas legislativos de cultura eram trabalhados pela comissão de educação. Mas, a partir de setembro de 1988, foram criadas comissões de cultura na Câmara de Deputados e no Senado. Justamente naquele ano, em dezembro, assumiu o presidente Carlos Salinas de Gortari e criou o Conselho Nacional para a Cultura e as Artes. Então, foram criados dois aparatos muito importantes: as comissões de cultura e o CONACULTA. As comissões de cultura nunca foram vistas com muito interesse pelos partidos políticos. Se você é um partido político e quer ter uma grande participação e uma grande influência na Câmara, pede a comissão relacionada com obras públicas, a comissão para a defesa ou a comissão de constitucionalidade. Há 25 ou 30 comissões na câmara. Você não escolhe a de cultura. Normalmente, a comissão de cultura era deixada a partidos secundários. Não era uma comissão muito importante.

Sharine: Agora, gostaria de conhecer um pouco sobre a configuração geral das políticas culturais mexicanas. Como disse, no Brasil, há essa tendência de federalização da cultura, de execução do Sistema Nacional de Cultura, como há o sistema de saúde, o sistema de educação. Penso que, no México, há uma centralização, que também há no Brasil, mas que está começando a mudar. Então, gostaria de conhecer um pouco a história. Sei que o FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes] foi muito importante, mas não existe mais, foi substituído por outro sistema da Secretaria de Cultura.

Nivón Bolán: Bem, você já sabe que o México teve um interesse muito importante pela cultura. Após a Revolução Mexicana, a construção de um novo estado fez da política de educação um de seus pilares. Dentro da política de educação, foi muito importante o interesse em utilizar a educação e as artes para a consolidação de um território nacional. Isso começou a partir de 1920. Podemos, até mesmo, rastrear antes disso. Mas foi acompanhado da construção de um partido praticamente único, que também surgiu nos anos 1915, 1920. Então, a cultura se acomodou a esse projeto estatal, que é um projeto vertical, nacionalista, autoritário. Apoiavam essas manifestações os artistas que tinham essa nota de nacionalismo. Esse integrismo foi se rompendo pouco a pouco. Os movimentos indígenas nos anos 1960… Intelectuais indígenas e antropólogos, por exemplo, fomentaram, desde finais dos anos 1960, políticas que aceitaram a diversidade indígena. Tudo isso chega, pois, aos finais dos anos 1980 e aos anos 1990, com um país que vive em um sistema autoritário, com um movimento pela democratização do país, com movimentos culturais que tentaram romper com o monopólio cultural do estado. O presidente Salinas, muito desprestigiado, chega ao poder em 1988 e abre o processo de transformação do aparato cultural. O aparato cultural no México se sustentava sobretudo na educação, embora em 1958 tenha sido criada uma Subsecretaria de Cultura, que não teve uma grande vigência. Mas essa subsecretaria viveu trinta anos, existiu durante trinta anos, mudando de nome e de orientação. Às vezes, essa subsecretaria se comprometia mais com a difusão artística. Em outros momentos, se comprometia mais com a educação popular. Esta função não estava muito definida. Mas, em 1988, houve uma mudança e a Subsecretaria de Cultura se converteu no CONACULTA. O FONCA foi criado imediatamente depois do CONACULTA, umas semanas. O FONCA foi uma concessão a um grupo de intelectuais. A cabeça mais notável era Octávio Paz, que pensava que o estado não podia intervir no apoio a certas modalidades artísticas, mas que deveria haver uma abertura para a diversidade de expressões. Somente o critério da qualidade deveria prevalecer. Ou seja, o FONCA foi criado nesse período. Assim, temos o CONACULTA em dezembro de 1988 e o FONCA, em janeiro de 1989. Surgem, no ano 1988, as comissões de cultura das Câmaras. Os primeiros planos de cultura são feitos porque existe o CONACULTA. Antes de 1988, os planos de cultura não eram feitos ou faziam parte dos programas de educação. Mas não havia planos de cultura. Basicamente, os planos de cultura consistiam no que faziam os grandes institutos de cultura, ou seja, o Instituto Nacional de Antropologia e História ou o Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura. Quando se perguntava aos subsecretários sobre o planejamento de cultura, a única coisa que respondiam era expor o que faziam o INAH e o INBAL. O ano de 1988 é um divisor de águas. A mudança nas políticas culturais no México, nesse sentido, é muito importante. O CONACULTA foi muito notável. Um pequeno decreto presidencial estabeleceu as tarefas, pois havia uma certa modernização da política cultural. Há dois pecados do CONACULTA. Um deles é que foi fruto de um governo com suspeita de fraude eleitoral. Então, o CONACULTA foi uma maneira de congraçar, de ser aceito pelos intelectuais que estavam criticando o governo. Outro pecado é que é a época do neoliberalismo. Então, para alguns, o CONACULTA – e o FONCA – foi associado a um modelo com uma visão neoliberal da cultura.

Sharine: Por quê?

Nivón Bolán: Por exemplo, no caso do FONCA, individualizaram-se os projetos. Os apoios eram feitos por concursos em que o artista, de forma individual, participava.

Sharine: Compreendo. Mas o dinheiro era público?

Nivón Bolán: Era público, sim.

Sharine: Não há participação de empresas privadas?

Nivón Bolán: Não, aqui não há nada, nem lei… Como se chama a Lei que foi feita no período de Collor de Mello?

Sharine: Lei Rouanet. É uma lei muito importante.

Nivón Bolán: Nunca houve. O México é o país da América Latina com menor participação filantrópica na cultura.

Sharine: Mas, no Brasil, a Lei Rouanet utiliza o dinheiro público, praticamente.

Nivón Bolán: Sim, porque são impostos.

Sharine: Sim, são impostos. Há essa discussão sobre o fato de ser um investimento privado. Mas não é: é um investimento público.

Nivón Bolán: É dinheiro público. Mas, aqui, não há isso.

Sharine: Foi uma discussão importante no governo Bolsonaro, por exemplo. Não há interferência por parte do estado. Por isso, a lei também foi tão atacada.

Nivón Bolán: Eu me lembro de que o Ministro Gilberto Gil disse que não estavam contra a Lei Rouanet, mas, sim, que houvesse mais participação do estado no projeto. Mas o atrativo da Lei Rouanet é que o estado não participa da seleção dos projetos. Se o estado participa da seleção dos projetos…

Sharine: Sim, é uma contradição. 

Nivón Bolán: É dinheiro público. Mas o destino do dinheiro público é definido pelos empresários. Então, isso é muito complexo. Digamos, se quiser entender a política daqui, você precisa ver o ano de 1988 e o surgimento do CONACULTA e do FONCA como ponto de partida, quando há, pela primeira vez, um plano de cultura, que tem certas características e vai gerando mais movimento. O eixo das políticas culturais, durante muitos anos, foi o patrimônio, no México, e continua sendo. O patrimônio continua sendo muito importante. Mas foram acrescentados outros objetivos. Às vezes, os governos colocam a ênfase na formação artística, às vezes na difusão. Às vezes, enfatizam a colaboração internacional. Tudo isso vai se transformando. Mas, desde cedo, o patrimônio é muito relevante no México. Durante muito tempo, era o mais importante. Agora, o patrimônio compartilha sua importância. Essas transformações foram associadas a uma tentativa de descentralização. Desde o princípio, o CONACULTA propôs e, até mesmo, criou programas relacionados à descentralização. Nos anos 1990, havia programas com esse nome de descentralização. De 2000 a 2006, houve um programa chamado de vinculação com os estados. Isso continuou, mais ou menos, até este governo. Este é um governo de esquerda por muitos de seus programas. São projetos de distribuição muito grandes. Mas é muito autoritário quanto ao manejo do orçamento, de tal maneira que retirou o dinheiro dado aos estados. Além disso, é um governo que luta contra a corrupção e disse que os fideicomissos eram corruptos, entre eles o FONCA.

Sharine: Como funcionam os fideicomissos?  

Nivón Bolán: É dinheiro público. Mas, normalmente, o dinheiro público tem uma periodicidade anual, de tal maneira que o recurso que não é exercido é devolvido ao estado… Ou, em todo caso, se não é exercido, volta a ser outorgado, mas de acordo com o gasto efetivo que teve no período anterior. De tal maneira que, se lhe deram 100, mas foram utilizados 80, no ano seguinte não terá mais que 80. Os fideicomissos permitem programas públicos de longa duração. São fundos que permitem conservar ou, até mesmo incrementar sem que haja os mesmos mecanismos de controle do orçamento federal do estado. As universidades funcionam assim. Ou seja, você tem um projeto de pesquisa de três anos e forma um fideicomisso para esses três anos, pode ir alimentando com subsídios, apoios internacionais ou algumas outras coisas… São criados esses tipos de bolsas especiais que, sim, são dinheiro público, mas têm um exercício distinto.

Sharine: São como os fundos de cultura?

Nivón Bolán: São como os fundos de cultura, que não estão sujeitos ao mesmo tratamento que tem o orçamento público, que tem seu gasto vigiado e que é obtido anualmente. O estado desapareceu com quinhentos fideicomissos. As mais afetadas foram as universidades. Por quê? Porque pensaram que eram corruptos, mas, na realidade, o estado estava necessitado de dinheiro para suas obras de infraestrutura, viu que havia fundos e os utilizou. O estado pegou todo o dinheiro que encontrou para utilizá-lo em suas obras públicas. Embora fosse muito provável que houvesse corrupção, ainda não demonstrou e não processou ninguém por isso. Simplesmente disse que eram corruptos. Então, eles os fecharam. É um estado que não se endivida. Até este ano, este governo não se endividou internacionalmente. Isso tem a ver com a pandemia. A maioria dos países na América Latina ofereceu apoios a empresas contraindo dívidas. O México não. No México, não houve nenhuma contração de dívida durante a pandemia. O resultado foi que o apoio público, no México, a empresas e programas foi dos mais baixos de toda a América Latina. Creio que o Brasil deu um apoio público durante a pandemia em torno de 6% do PIB. O México deu em torno de 2% do PIB e o Peru e o Equador, cerca de 12% do PIB. De onde vinha esse dinheiro, no Brasil ou em outros lugares? Vinha de dívidas. No México, a política foi de não se endividar. Por isso, não houve dinheiro, durante a pandemia, para os artistas e para praticamente ninguém, nem para as empresas.

Sharine: Com a Lei Aldir Blanc, o orçamento para a cultura no Brasil aumentou algo em torno de 140%. Vi que, no México, o aumento foi de 3%. Algo assim, muito pouco. O recurso federal para a cultura no Brasil é menor, enquanto o estadual e o municipal são maiores. Mas, com a Lei Aldir Blanc, isso está mudando. Por quê? Há cidades ou estados no Brasil que são muito pobres ou muito pequenos, que não têm uma secretaria de cultura ou não têm pessoal para receber e para aplicar o orçamento federal. Na configuração geral do orçamento público, os maiores investimentos são estaduais e municipais, mas, quando chega o dinheiro da Lei Aldir Blanc, o prefeito fala: “eu não vou colocar o meu dinheiro na cultura, vou colocar em educação e em saúde, porque chegou um recurso federal”. Então, isso está mudando. No México, eu não encontrei dados sobre o municipal. O federal é cerca de 60%. Então, penso que é um pouco diferente.

Nivón Bolán: Sim, é bem diferente. Está ainda mais centralizado neste sexênio. Aqui, o que o governo federal dá aos estados são chamadas participações. As participações vêm diminuindo. Então, os estados têm cada vez menos recursos para isso. Somente os estados mais fortes economicamente estão dedicando recursos à cultura. Pense que, onde está Monterrey, que é a São Paulo mexicana, o estado de Nuevo León tem, sim, recursos para a cultura. Ou em Jalisco ou em Guadalajara, o estado pode, eventualmente, destinar recursos. Mas estados pobres não destinam. Seria necessário analisar bem isso. Recomendo um projeto feito por um economista chamado Ernesto Piedras. Ele criou um índice de participação dos Estados e encontrou coisas curiosas porque há estados que não são muito pobres, mas que têm muito pouca participação na cultura e há estados pobres que têm. Por exemplo, Oaxaca é um estado pobre, um dos mais pobres, mas está na metade da tabela. Me explicaram que os movimentos sociais indígenas pressionam para que haja dinheiro, para que lhes destinem recursos. Aí há algo sobre o que refletir. Agora, este governo acabou centralizando tudo. No caso dos programas, há uma espécie de contradição muito interessante, porque o programa estrela deste governo não é o de cultura, é o de cultura comunitária. Mas, no México, não há sistema nacional de cultura. O governo quis realizar por si mesmo o programa de cultura comunitária. Mas, nem aqui, nem no Brasil um governo federal pode chegar às comunidades.

Sharine: É muito grande.

Nivón Bolán: O normal é que os ministérios da cultura sejam os menores que há nos países. Não são como o Ministério da Educação ou o Ministério da Saúde, que podem chegar às comunidades. Aqui, o governo quis desenvolver um programa de cultura nos municípios mais pobres do país, por si mesmo, e não conseguiu. Não pôde fazê-lo. O programa se esgota nisso. Se houvesse um sistema nacional de cultura, o que teria acontecido é que o estado teria estabelecido um pacto com aqueles municípios interessados em um programa de cultura e teria transferido os recursos para que o município executasse.

Sharine: Claro, é como estamos tentando fazer no Brasil.

Nivón Bolán: Mas aqui não, aqui quiseram desenvolver por si mesmos e, finalmente, esgotaram esse programa porque não puderam chegar até as comunidades, salvo em casos muito excepcionais.

Sharine: Como é? É um edital? Tivemos o Programa Cultura Viva no Brasil. Conhece? É um pouco o modelo do governo mexicano, mas não exatamente…

Nivón Bolán: Não, é bastante diferente.

Sharine: Por quê?

Nivón Bolán: Porque, desde 1988, houve uma tendência a apoiar iniciativas locais. Neste governo não. Este governo já não apoia porque, para ele, tudo é corrupção. Então, somente confia em si mesmo, desenvolve as iniciativas por sua conta. Esse modelo de cultura comunitária ocasionava o que você diz: “se o governo vai chegar ao meu município com um programa de cultura, eu já não terei interesse em investir em cultura”. Se o governo quer chegar aos municípios mais pobres do estado de Guerrero, o estado de Guerrero diz: “melhor destinar o dinheiro que tenho para cultura para outra coisa”, que é um pouco o efeito de você está falando, exatamente o mesmo. O governo deveria ter estimulado que os estados investissem nas comunidades e que, a partir desse estímulo, fossem apoiados pelo governo federal. Mas o governo federal não fez isso, quis fazer por si mesmo. É impossível, não?

Sharine: Como fizeram?  

Nivón Bolán: Contrataram gestores culturais, às vezes já vinculados a alguma comunidade. Deram-lhes dinheiro para que fizessem o que normalmente fazem. Há promotores culturais que são artesãos, então deram um curso de artesanato. Há promotores culturais que são músicos, deram um curso de música. Fizeram, mais ou menos, o que já tinham feito.

Sharine: É muito diferente do Brasil. O Programa Cultura Viva, no Brasil, é uma convocatória para espaços culturais que já existem nas comunidades. Há um selo Cultura Viva. No início, o governo dava equipamentos de comunicação, computadores, infraestrutura. Isso foi muito importante para a Lei Aldir Blanc porque há uma comunidade formada pelos Pontos de Cultura, que foi muito importante para o trabalho em rede, para a comunicação sobre a lei, durante a pandemia. Então, quando vi que havia uma cultura comunitária no México, pensei em algo semelhante, mas logo entendi que não é.

Nivón Bolán: Não, não. Deve haver alguns aspectos mais elegantes do que estou dizendo, mais positivos. Eu li um artigo de uma funcionária que falava com muita inteligência do programa de cultura comunitária, mas os dados do programa desapareceram.  Eu acredito que a forma de desenvolvê-lo era totalmente incorreta. A uma forma de desenvolvê-lo é convivendo com os estados ou com os municípios, com as próprias comunidades para que desenvolvam o programa e recebam o apoio.

Sharine: No Brasil, não digo que esteja mudando, porque é um país multicultural como o México. Mas, com a Lei Aldir Blanc, percebemos que há muitas diferenças entre o que é cultura para cada município, para cada estado. Eu fiz gráficos do Brasil. Este é das cidades com mais de 50 mil habitantes. Apoiam a dança, o teatro, a música. Mas, nas cidades menores, há uma importância dos artesanatos, das manifestações populares. Além disso, há uma discussão no Brasil sobre as cotas para pessoas negras, para indígenas… Há, também, um crescimento das populações evangélicas. Dizem que será maior que a população católica em poucos anos. Isso afeta a distribuição do orçamento para a cultura porque há discussões: se vai para as culturas negras, se vai para as culturas indígenas… Na Política Nacional Aldir Blanc, de Fomento à Cultura, há menção aos espaços de culturas negras, quilombolas, que é como falamos no Brasil, mas também à música gospel, que é a música evangélica. Há essas disputas: o que é comercial, o que é experimental… O orçamento é muito baixo para atender a todos. O que acontece no México?

Nivón Bolán: Também temos essa discussão. Eu acredito que seja tão notável e tão intensa quanto a de vocês no Brasil. O apoio à diversidade e às exigências das comunidades são muito grandes. Mas acredito que não temos a clareza com que está me falando. Acho que virá um tempo em que isso aconteça. Aqui, por exemplo, as comunidades de afrodescendentes são menores. Segue-se o critério étnico, imagino que o mesmo que do Brasil. No Brasil, houve um critério étnico, racialista, quase biológico. Creio que isso já foi ficando um pouco para trás.

Sharine: No Brasil, trabalhamos com a autodeclaração. A pessoa diz se é negra…

Nivón Bolán: Aqui também acontece isso. Por exemplo, o critério tradicional para identificar a população indígena no México era a língua e ficava em, mais ou menos, 6% da população do país. Isso fez com que essa população estivesse diminuindo. Com o critério de autodeclaração, a população indígena se duplicou ou cresceu.

Sharine: Sim, o mesmo acontece no Brasil.

Nivón Bolán: Com todos os problemas a que isso pode levar… Não problemas, com todas as características que isso pode ter. Porque também pode variar, não? Um ano me declaro afrodescendente, no ano seguinte, não. Isso pode estar mudando. Aqui há movimentos que querem ser reconhecidos como indígenas. E, quando perguntam: “bom, e de que grupos são? “Somos indígenas, nada mais”. Não se identificam com um grupo em particular, mas dizem que são indígenas e nada mais.

Sharine: Claro. E como afeta a política cultura ou não afeta?

Nivón Bolán: Afeta a política social e cultural porque a política é como no Brasil, porque temos copiado. Algumas decisões nas comunidades indígenas devem ser feitas levando em conta a participação, buscando uma participação informada, livre, prévia, fazendo essas consultas. Se não é uma comunidade reconhecida dessa maneira, são utilizados outros critérios, que são os critérios tradicionais, que são as consultas ou votações nos conselhos municipais. Mas, nas comunidades que se consideram indígenas pelos convênios internacionais, deve haver uma consulta específica.

Sharine: Mas não há cotas, como no Brasil…

Nivón Bolán: Não, ainda não há cotas, mas começam a ser feitas. Agora ouvi, por exemplo, que mais ou menos 8% dos deputados devem ser indígenas. Mas esse também é um problema pelo critério de autodescrição: se uma pessoa diz “eu sou indígena e quero me apresentar como indígena”, quem vai dizer que não? Esse também é um problema das cotas, não?

Sharine: No Brasil, nos editais da Funarte, por exemplo, há cotas específicas para as pessoas negras ou indígenas.

Nivón Bolán: Acredito que logo chegaremos a isso. Possivelmente, estou desatualizado. Mas, sei que o Brasil está na vanguarda. O Brasil e a Colômbia. O Equador também está na vanguarda nessa questão e nós estamos nos aproximando.

Sharine Estamos terminando. No Brasil, e acho que aqui também, há os editais, as chamadas públicas. Os artistas são um pouco dependentes… Não são a maioria porque o orçamento público não chega a todo mundo. Mas muitos artistas, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro, as grandes cidades, dependem dos orçamentos públicos, dependem dos editais para ter dinheiro para fazer os projetos. Não é uma ideia comum a todas as pessoas que pesquisam, mas eu, pessoalmente, penso que isso pode aumentar a precariedade dos trabalhadores culturais. Eles trabalham por projetos, e há um mercado de pessoas que escrevem os projetos. Há pessoas que sabem como escrever os projetos para ganhar os prêmios nos editais. É muito difícil, principalmente se falamos sobre a Lei Rouanet. Há especialistas em Lei Rouanet no Brasil, e isso traz precariedade para o setor porque são pessoas que trabalham por projetos, não podem se aposentar, não têm acesso à previdência. Há uma discussão sobre isso que somente começa no Brasil, mas que ainda não está avançada. Como acontece no México?

Nivón Bolán: Da mesma maneira, eu acho. É notável que muitas pessoas estejam sentindo falta dos projetos, dos editais, que praticamente trabalham com isso. Há algumas diferenças. Há um estudo, de que participei na UNAM [Universidade Nacional Autônoma do México], sobre artistas na época da pandemia. Houve artistas que enfrentaram a pandemia melhor do que outros? Quais enfrentaram melhor? Bem, todos os artistas precisam se diversificar. Quase todos os artistas trabalham em muitos campos. Mas os que trabalham no campo da educação e são artistas atravessaram melhor a pandemia. Também foram melhor na pandemia os que têm uma capacitação, além de sua própria capacitação artística. Os idiomas foram muito importantes. Havia também os artistas que estavam envolvidos com as redes digitais e que puderam enfrentar isso melhor. Então, há aqui vários casos de quem enfrentou melhor a pandemia. Acontece da mesma maneira como me conta sobre o Brasil… Há muitos, como você diz, que aprofundam a dependência porque não têm outros recursos. Há um debate interessante sobre isso. Há artistas que se inscrevem em todos os editais, obtêm uma bolsa federal e uma estadual, às vezes municipal, estão saltando de edital em edital. Mais ou menos, têm êxito ao longo do tempo. Então, alguns dizem que o melhor é sejam dados apoios, mas com uma condicionante: a própria autonomia, o desenvolvimento de mecanismos autônomos dos artistas. Eu estou de acordo, mas isso é muito difícil. Por exemplo, um amigo especializado em teatro que disse que, em nenhum lugar do mundo, o teatro é autossuficiente. Nem nos países desenvolvidos. Sim, há as grandes produções da Broadway e tudo isso, mas o teatro que está sendo feito, o teatro de criação sempre deve ser um teatro apoiado. Pensar que possa haver uma companhia autossuficiente é muito difícil. Se você não for das grandes… É uma dificuldade muito real. Isso se acrescenta a outra questão, que também deve existir em seu país: os apoios são dados a certos grupos ou estão corrompidos por tendências artísticas, por grupos artísticos ou por grupos políticos, o que é pior.

Sharine: Sim, há as duas coisas. Há uma discussão pela continuidade do apoio porque, por exemplo, há um grupo de teatro muito importante em São Paulo que está fechando suas portas porque não têm dinheiro para continuar e não são convocados nos editais, porque há a necessidade de alternar os ganhadores. Não há um apoio continuado para os grupos que são importantes para a cultura. Há um exemplo. Eu trabalho na Funarte SP e há um grupo muito importante, que se chama Ballet Stagium. Não sei se você conhece. É um dos grupos de balé mais importantes do Brasil e estavam quase encerrando as atividades porque não tinham apoio do estado nem orçamento privado. Não tinham nada. Então, emprestamos a eles uma sala para que continuassem com as atividades. Há essa discussão. Vamos investir no que já é tradicional ou dar recursos para os novos grupos?

Nivón Bolán: Aqui há discussão. Por exemplo, há editais que privilegiam a trajetória. Então, um grupo que tem dez anos estará em melhores condições do que um grupo que está começando. Dizem: “bom, mas, se já têm dez anos, já deveriam ter conseguido uma maneira de encontrar uma rota”.  Há outra discussão. Há um colega que fez sua tese de doutorado sobre o FONCA e sobre os apoios. Foi muito crítico ao FONCA, tem sido muito crítico ao FONCA porque diz que ele mudou o estilo de trabalho dos coletivos culturais.

Sharine: Por quê?

Nivón Bolán: Porque, antes do FONCA, os coletivos culturais funcionavam como grupo. Com o FONCA, os apoios foram individualizados. Um coreógrafo solicitava apoio, davam apoio para a coreografia e o coreógrafo contratava o elenco para isso. Mas era o coreógrafo que recebia o apoio. Por isso, diziam: “o FONCA, na época do neoliberalismo, transformou as práticas artísticas”. O mesmo acontece com o teatro, em que antes era a companhia e agora é o autor ou diretor que recebe o apoio e, depois, contrata os atores. As formas foram modificadas. Ele mesmo diz que os apoios no FONCA são feitos de acordo com os jurados, digamos, e os jurados não é que sejam corruptos, mas apoiam seus próprios alunos ou os grupos que trabalham mais próximos…Então, são constituídos grupos e as inovações são muito difíceis. De fato, conversando com ele, não me lembro se isso está escrito, mas, conversando com ele, me dizia que seria bom ter editais exclusivamente de inovação artística. É muito difícil que as inovações compitam com grupos consolidados, com as tendências consolidadas. Os jurados normalmente apoiam as tendências consolidadas e se arriscam muito pouco com as inovações. Então, ele dizia que o mais conveniente seria que houvesse editais somente para inovações.

Sharine: Mas, como eu disse, no Brasil há também o outro problema. Há grupos muito consolidados, que são muito importantes para a cultura, e que estão fechando suas portas…

Nivón Bolán: Então fechando, sim. O mesmo acontece com a descentralização. O FONCA, estatisticamente, apoia mais os grupos que vivem aqui, na Cidade do México e no centro. Há denúncias sobre isso, dizendo que estão privilegiando os artistas que vivem nesta cidade. O mesmo deve acontecer no Brasil. Ou seja, os artistas que estão no Rio de Janeiro ou em São Paulo têm uma vantagem porque estão competindo, em primeiro lugar, com muitas opções e têm as melhores condições de formação.

Sharine: Por isso, há essa mudança de que eu falei sobre a Lei Aldir Blanc. Mas as pessoas chegam às pequenas cidades e dizem: “aqui não temos artistas”. Claro, não há a mesma linguagem que há em São Paulo, que há no Rio de Janeiro, mas há outros artistas.

Nivón Bolán: Esse mesmo colega me dizia que o melhor, o mais democrático, é não fazer um edital nacional, mas cinco ou seis editais por regiões, de tal maneira que haja mais possibilidades de concorrência dos grupos locais e que um pequeno grupo de Chiapas não tenha que competir com um grupo consolidado da Cidade do México porque as trajetórias são muito diferentes.

Sharine: Quando eu pergunto a especialistas, a pesquisadores brasileiros, como mudar isso, como pensar diferente, algo distinto dos editais, não sabem o que responder.

Nivón Bolán: Alguns dizem que devem acabar. Mas eu acredito que isso fica para outra época da vida. Há que mantê-los, mas há que pensar assim: editais exclusivamente de inovação, abertos para os jovens, ou editais para menores de trinta anos… Também pode ser por idade, não? Editais descentralizados… Em vez de um edital nacional, cinco ou seis editais regionais.

Sharine: Gostaria de saber a relação do público com as atividades culturais. 61% das pessoas no Brasil nunca foram a um espetáculo artístico de teatro, dança… No México, a porcentagem é um pouco menor, 59%. Mas, no Brasil, 68% das pessoas nunca foram a um museu. Aqui, no México, penso que há uma cultura dos museus.

Nivón Bolán: Há uma cultura… Sim, porque os museus são associados ao patrimônio e o patrimônio é a bandeira da política cultural.

Sharine: Como se dá o acesso do público?

Nivón Bolán: Bem, as escolas têm programas de frequência a museus e levam os alunos. Creio que, em todos os lugares do mundo, e no Brasil deve ser assim, os alunos, sendo crianças ou adolescentes, vão aos museus porque a escola manda. Normalmente, vão acompanhados de seus pais, mas quando chegam ao bacharelato e à universidade, deixam de ir e voltam a ir quando seus filhos estão na escola primária ou secundária. Mas há uma política de patrimônio muito viva, que tem feito dos museus mexicanos uns instrumentos de socialização artística muito relevantes. Os museus de arte contemporânea são muito difíceis. Mas os museus de patrimônio são um pouco mais fáceis, mais acessíveis. A sociedade mexicana está muito acostumada a ir a esse tipo de museus de patrimônio e faz isso com certo interesse. Há boas políticas de serviços educativos. A diferença que você mostrou não é muito notável: 61% e 59%. Nos museus, sim, há uma diferença. Acrescente o consumo musical. Na América Latina, é o consumo mais importante, sobretudo para os jovens. Mas, no Brasil, é muitíssimo mais importante do que em outros lugares. O Brasil é o país, segundo as estatísticas que vi, que mais consome a própria música. O Brasil consome muita música brasileira. Por outro lado, o México não tem esse mesmo consumo da música mexicana. Teria que ver os dados porque vi essa estatística há quinze ou vinte anos. O Brasil era o país que mais consumia música própria.

Sharine: Sim, penso que é verdade porque nós, de fato, escutamos a música brasileira. Para terminar, gostaria de saber sobre a política porque estão perto das eleições no México. Por que as políticas culturais ainda são importantes, apesar de todos os problemas?

Nivón Bolán: Não sei se são importantes. Tenho essa ideia, mas é só uma ideia minha, creio. Acho que, durante todo o século XX, a política cultural foi muito importante para consolidar um projeto de estado. No México, foi muito evidente, mas também no restante dos países da América Latina. Aqui, o nacionalismo cultural foi chave para consolidar a hegemonia desse sistema autoritário de partido único. Um partido único muito interessante. Por exemplo, dizem que esse partido único, o PRI [Partido Revolucionário Institucional] tinha uma política internacional de esquerda, mas uma política interna de direita. Estou falando sobre o século XX. Por exemplo, o México não rompeu relações com Cuba quando toda a América Latina rompeu. O México não rompeu relações com Cuba quando ela foi expulsa da OEA. O que faz um simpatizante da Revolução Cubana, do México ou da América Latina? Que admirável país teve essa política? Mas, nessa mesma época, nos anos 1960, o México reprimiu todos os movimentos sociais internos.

Sharine: Então não era de esquerda?

Nivón Bolán: A política internacional mexicana era de esquerda e a política interna, de direita.

Sharine: Porque era autoritaria?

Nivón Bolán: Porque era autoritária. O México lidou muito bem com isso. A política cultural foi apoiada por muitos setores de esquerda também. A política cultural mexicana foi muito importante para a consolidação do estado durante o século XX, que não era um estado democrático, era um estado autoritário. Depois, a política cultural se alinhou aos movimentos pela democracia. Os movimentos de democratização da política cultural conseguiram se encontrar porque os dois estavam interessados em desmontar o estado integrista, o estado autoritário, o estado que não aceitava dissidências. O dois tinham suas próprias agendas, mas não se acomodaram. Democracia e cultura conseguiram encontrar isso. A essa altura do século XXI, acredito que esse encontro entre democracia e política cultura já não exista, e menos ainda no México.

Sharine: Por quê?

Nivón Bolán: Este governo, por exemplo, conseguiu um importante apoio do setor cultural para ganhar as eleições. Mas o setor cultural tem sido sumamente maltratado neste sexênio. E ao próprio presidente realmente a arte não interessa. Ele nunca foi, por exemplo, a uma exposição ou a uma apresentação de teatro, de dança. A ele interessa a cultura, mas interessa a cultura que ele acredita que seja a fundamental, que é a que é feita em uma comunidade. E, se for uma comunidade indígena, melhor. Então, a ele interessam pouco essas manifestações tradicionais, a dança e tudo isso. Isso é o que ele diz. O presidente diz: “O México é uma potência cultural”. Isso é uma bobagem, não? Dizer isso a essas alturas do século XXI… Como sabemos, a cultura é incomensurável. Não há países que tenham uma cultura mais poderosa que outros. Mas ele diz: “o México é uma potência cultural”. É uma potência cultural por quê? Por que ele a mira aludindo ao que, no México, é conhecido como o México profundo, um México em que não é necessário investir nada porque já está aí. Mas as outras expressões artísticas, as expressões que têm a ver com a criatividade, com a diversidade, têm sido muito castigadas orçamentariamente. Porque, se o México tem 0,2% do orçamento voltado para a cultura, a quarta parte deste orçamento está em um só projeto. É o projeto Chapultepec, Naturaleza y Cultura. É a quarta parte de todo esse orçamento. Então, na realidade, o orçamento para a cultura é de 0,15%. Por que esse orçamento? Porque a ele interessa. É como se fosse seu legado, deixar ali uma marca. Mas os orçamentos estão muito castigados, se você acrescentar que, na pandemia, não houve dinheiro praticamente para nada, nem para as empresas, muito menos para a cultura…. Se acrescentar que os fideicomissos desapareceram… Se acrescentar tudo isso… Por que pode acontecer isso? Por que um governo de esquerda pôde tratar a cultura dessa maneira? Porque a aliança entre o processo de democratização e o processo cultural, aparentemente, já se cumpriu. Já não é mais necessária a aliança entre democracia e cultura. Já está dada. Ele já ganhou. É o ápice do processo de democratização, segundo ele mesmo. Quem vai ganhar? O governo pode ter essa mesma política cultural.

Sharine: Obrigada!

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