Canclini na Cátedra
Entrevista realizada com Elaine Dutra, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 15 de fevereiro de 2021.
[Sharine] Estamos estudando a institucionalidade da cultura, principalmente neste momento de pandemia, com as questões todas sobre internet, rede social envolvidas. Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc. Estou conversando com pessoas que se articularam para criar e implementar essa lei. Para começarmos, seria bacana se você falasse um pouquinho sobre sua trajetória. Você é do Maranhão, não é isso?
[Elaine] Eu me chamo Elaine Cristina Correa Dutra. Sou conhecida como Elaine Dutra. Sou maranhense, ludovicense[1]. Nasci em 31 de julho de 1985 e comecei a praticar capoeira quando ia fazer 14 anos. Foi em 1999, no mês de julho. Esse foi o início da minha inserção direta na vida cultural. Fiz parte do Grupo Cativos do Maranhão, onde consegui a graduação de instrutora. Após isso, em 2012, eu me tornei presidente da Confederação de Capoeira do Maranhão. Para mim, foi motivo de muito orgulho porque é um segmento um pouco conservador. Então, você vê mais homens como mestres, mais homens em cargos estratégicos do que mulheres. Isso foi uma vitória, não só para mim, mas para muitas mulheres que praticam capoeira. Em 2012, também, eu participei do Fórum de Validação do Plano Municipal de Cultura de São Luís. Foi mais uma experiência, mais uma vivência, um momento de muito aprendizado sobre os segmentos culturais da minha cidade, sobre a história da minha cidade, sobre nossos costumes, tradições. Foi um momento muito rico.
Em 2016, eu me tornei Conselheira Municipal de Cultura de São Luís, na área de cultura popular, que é uma área de que gosto muito porque a maior parte dos segmentos do Maranhão está inserida nessa categoria. Nossa maior especificidade é nossa cultura popular. Depois, passei um ano no Conselho Municipal de Cultura e fui eleita Conselheira Estadual de Cultura, na cadeira de Patrimônio Cultural. Foi também uma experiência maravilhosa porque saí do âmbito municipal e fui para o âmbito estadual. Atuo na questão de sítios arqueológicos, na questão dos folguedos, das festas, dos cultos de matriz africana do nosso Estado. Foi uma experiência maravilhosa. No fim de 2019, eu fui reeleita Conselheira de Cultura e fui eleita presidente do CONSECMA [Conselho de Cultura do Maranhão]. Após alguns meses, veio a questão da pandemia, iniciou-se a articulação pela Lei Aldir Blanc e eu fui eleita a presidente do CONECTA. Também foi um momento maravilhoso porque, até então, o CONECTA não havia sido presidido por uma mulher. Foi mais uma conquista para a classe artística e para as mulheres também. Poder representá-las, para mim, é uma honra.
Fora essa questão de conselhos de cultura e da federação, que é uma entidade de jurisdição estadual, também faço parte do coletivo deliberativo da Salvaguarda da Capoeira e do Comitê Gestor do Bumba-meu-boi, representando o CONSECMA. São duas esferas superinteressantes para aprender essa questão da preservação. Poder ser protagonista, como detentora de segmentos culturais, é superimportante. Também sou pesquisadora. No ano passado, o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] lançou o caderno de Salvaguarda, Práticas de Gestão. Lá tem um artigo que trata sobre as rodas de capoeira dos mestres do Maranhão e lá retratamos de que maneira se deu o processo de salvaguarda da capoeira, do início desse processo até os dias atuais. É isso.
[Sharine] Parabéns pela trajetória! Agora, para entrarmos um pouco mais no tema, gostaríamos de ouvir histórias dos artistas que se engajam nessas articulações em rede, nessas políticas públicas para a cultura, especialmente sobre a Lei Aldir Blanc. Gostaríamos de entender quais são as motivações, os anseios desses artistas que participam dessas articulações, desses movimentos… Se puder falar um pouquinho…
[Elaine] Vou começar pelo Maranhão para, depois, falar um pouquinho do âmbito nacional, que pudemos acompanhar. A SECMA, Secretaria de Cultura do Estado, começou a mobilizar a Lei Aldir Blanc a partir de uma audiência que tivemos, que foi assistida pelo YouTube. Eu ajudei, representando o Conselho, e teve a participação do Secretário, de alguns deputados federais e de pessoas de outras regiões do nosso Estado. Nesse dia, a temática principal foi fazer com que conseguíssemos sensibilizar esses deputados para que votassem a favor da lei, para que a lei fosse aprovada e, depois, sancionada. Deu muito certo porque todos os deputados do nosso Estado foram a favor da lei. Os três senadores também. Foi uma vitória essa nossa articulação.
Depois disso, a SECMA fez, no mês de julho de 2020, reuniões transmitidas pelo YouTube. Essas reuniões eram específicas para segmentos culturais. Então, o Conselho teve o cuidado de selecionar alguns representantes, de acordo com questões de entidades, de engajamento de pessoas para esse segmento. E, lá, cada um colocou as suas perspectivas em relação à implementação da lei. Em seguida, foram formados grupos de trabalho, que enviaram propostas para editais e maneiras de identificar os detentores, os fazedores de cultura, os grupos dos mais diversos segmentos culturais. As lives duravam, mais ou menos, duas horas, com a participação ativa do Conselho. Fomos construindo esse caminho e, claro, colocando os detentores como protagonistas desse processo. Antes, tínhamos mais dificuldade de reunir vários detentores de diversas partes do Estado. Dessa forma, pudemos dividir. Colocamos gente da capital, colocamos gente do sul do Estado, do leste e do oeste do Estado, da parte central do Estado. Então, foi algo muito rico. Tivemos a presença de indígenas, de ciganos, de pessoas que moram em quilombos, de pessoas que fazem parte de comunidades tradicionais de matriz africana. Foi uma experiência única a dessas lives, dessa construção de propostas para a implementação da Lei aqui no Estado.
Nós também tivemos as conferências. Elas estão no YouTube da SECMA, Secretaria de Cultura do Maranhão. Houve um descontentamento – isso também faz parte do processo, são consensos e dissensos – em relação à burocracia dos editais. Mas a SECMA apontou muito bem que estava cumprindo apenas a regulamentação, o que, claro, para nós foi uma surpresa muito grande. Foi muito rigorosa a regulamentação, o que fez com que os gestores estaduais estivessem obrigados a cumprir todos os requisitos que estão na Lei 8.666/1993. Em nossa pré-conferência do Maranhão, tivemos muita gente descontente. Mas foi um momento bom também porque todos falaram sobre o que querem que melhore. Deste ponto de vista, foi bom para a SECMA e para o Conselho também, para saber quais são as insatisfações dos nossos artistas, dos nossos grupos culturais e para que, nos próximos editais – queremos que haja mais editais da Lei Aldir Blanc -, possamos acertar em todos os pontos, o máximo possível.
Na nossa segunda live, que foi a conferência de cultura do Maranhão, já houve um comportamento diferente. Os artistas, os grupos culturais já estavam mais conformados com a burocracia. Muita gente conseguiu participar. Havia uma certa dificuldade, para pessoas que moravam em regiões afastadas da capital, em fazer seu portfólio, e um dos requisitos principais da Lei é comprovar as suas atividades. Ficamos diante de um impasse. Por exemplo, há mestre, morador de comunidades, quilombos, povoados, onde nem internet há, que tem uma bela história de manifestação cultural, mas quase não tinha fotos, não tinha vídeos. Se participou, na cidade dele, de uma programação, não tinha como comprovar, não tinha clipping. Então, nós fomos criando maneiras de fazer com que eles comprovassem, gravando um vídeo, contando sua história de vida. Ou seja, esse momento de pandemia serviu para encontrarmos diversas maneiras para as pessoas comprovarem quem são do meio cultural, suas contribuições. Foi positivo nesse ponto. No começo, foi um grande obstáculo, mas fomos encontrando saídas, pensando em alternativas e deu tudo certo.
Aqui no nosso Estado, foram pagos para os grupos e artistas em geral, mais ou menos, R$ 34 milhões em dotação. Como ainda estão finalizando a prestação de contas, o valor mais aproximado que posso passar é esse. Contando com os valores que foram repassados pelos municípios, temos em torno de R$ 50 milhões no Fundo Estadual de Cultura do Maranhão, somente da Lei Aldir Blanc. Fora isso, estamos aguardando o Ministério do Turismo autorizar novos editais, o repasse de subsídio para grupos, para pessoas físicas. Na semana passada, o conselho, a SECMA e os representantes da Comissão do FUNDECMA, o Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura do Estado do Maranhão, assinaram a liberação de R$ 300 mil reais, com recursos do Estado. R$ 300 mil vão para o Edital de Mestres e Mestras. Todos os anos são quinze mestres premiados, sendo que oito mestres são de categorias que têm mais inscrições e que são bem-estruturadas em materiais. Por exemplo, do tambor de crioula são premiados dois mestres; da capoeira, são dois; do bumba-meu-boi, são dois; e, das comunidades tradicionais, também são dois. Dos outros segmentos culturais é premiados um mestre de cada. Aqui há um bloco tradicional, que só tem aqui em São Luís, que também faz parte desse edital. Cada mestre desses vai receber R$ 20 mil reais em premiação. Descontando o imposto de renda, deve dar em torno de R$ 16,5 mil, mais ou menos. Isso é anual, até 15 mestres premiados.
Esses mestres estão inscritos no livro de registros do Estado do Maranhão, o Livro dos Saberes dos Mestres, dos mais diversos segmentos culturais. No ano passado, não tivemos a cerimônia em que o governador entrega a certificação, assina o livro onde é registrado o nome deles e eles passam a ser patrimônio cultural imaterial do Estado do Maranhão. Eles ficam lá, eternizados nesse nosso livro, são entrevistados, vão para o YouTube para que as pessoas conheçam quem são os nossos mestres e difusores de saberes do nosso Estado. Nós também liberamos R$ 2 milhões porque, até sabermos a resposta do Ministério do Turismo, os artistas e os grupos não vão poder esperar. A pandemia não acabou e todo mundo está precisando de subsídio. Isso vai ser um paliativo. R$ 2 milhões serão empregados no Conexão Cultural 4. É um programa que foi criado no ano passado. Nesse programa, você grava uma live de até uma hora e recebe seu cachê. Essa live vai para o YouTube da Secretaria. Com isso, já temos um acervo bem palpável de informações de artistas, de grupos e de manifestações culturais do nosso Estado. Você pode entrar lá para conhecer especificamente a nossa cultura, porque lá já tem muita coisa.
[Sharine] Esses valores que você está citando não são todos da Lei Aldir Blanc, não é? Há outros fundos também…
[Elaine] Não. Esses R$ 2,3 milhões são daqui mesmo, de recolhimento de impostos daqui. O da Lei Aldir Blanc é uma conta à parte. São R$ 50 milhões em que não podemos mexer. Mas, enquanto isso, nesses próximos meses, fomentaremos com recursos do Estado, com o que ainda sobrar do Fundo. Nós tivemos muitas dificuldades com o fechamento das casas. Diversos projetos da Lei de Incentivo à Cultura não puderam ser executados porque exigiam aglomeração. Todas essas porcentagens de bilheteria, dos projetos culturais, tudo isso ia para o fundo. Então, neste ano, a arrecadação não foi tão boa, mas esse pouquinho que restou vai ajudar muita gente.
A segunda parte é o cenário nacional. Em relação ao CONECTA, nós temos cinco regiões, são cinco diretores. Na região Nordeste, em nossos nove Estados, a Lei foi adaptada. Piauí gastou bastante. Maranhão foi o quinto que mais gastou. Na região Sul, também foi muito bem adaptado. No Sudeste, em muitos municípios, o Conselho foi incansável nessa questão. Roraima teve um pouquinho de dificuldade, segundo o Sabá Moura[2]. Na Bahia, foi excelente porque conseguiram colocar as cotas. Percebemos que as pessoas que fazem parte dessas cotas se sentiram, pela primeira vez, privilegiadas. Antes não havia esse tratamento especial que elas merecem. Isso foi um saldo muito positivo. Pena que a maior parte dos Estados não fez isso. Mas é um exemplo a ser seguido por todos.
Em São Paulo não havia Conselho, mas havia um fórum muito ativo. O recurso foi recebido e conseguiram implementar bastante. Aqui no Maranhão, dos R$ 34 milhões, só falta pagar R$ 17 mil porque uma pessoa se inscreveu com um e-mail pelo qual a SECMA não consegue resposta, colocou um telefone no mapeamento, no cadastro, na inscrição pelo qual também não se consegue contato. Então, estamos aguardando essa pessoa aparecer para pagarmos esses R$ 17 mil. Fora isso, tudo foi pago. Mas você percebe que, na maior parte dos Estados, o tempo foi muito exíguo para lançamento do edital, inscrição, avaliação das propostas até chegar ao período de fazer as ordens de pagamento e repassar o pagamento. Na verdade, é a atividade finalística da Lei: fazer com que esse recurso chegue. Essa parte foi a mais difícil em todo o país em relação à Lei Aldir Blanc. Nós fomos o primeiro estado a lançar edital. Então, conseguimos organizar toda essa parte financeira. Não tivemos dificuldade com isso. Até o dia 31 de dezembro, muita gente já tinha sido paga, digamos que 90%. 10% foram pagos na primeira e na segunda semana de janeiro. Só ficamos com esses R$ 17 mil reais e esperamos que a pessoa apareça. Em relação aos outros estados, vemos com muita preocupação, por quê? Quase findando o prazo e a maioria não tinha nem começado a pagar. Ainda bem que houve essa sensibilidade do Ministério do Turismo em permitir que o prazo fosse alargado. Foi perfeito porque deu para o pessoal organizar e pagar quem precisava.
[Sharine] Você acompanhou todo o processo de elaboração da lei. Como você ficou sabendo dessa articulação? Vocês foram convidados? Ficaram sabendo pela internet? Como foi?
[Elaine] Aqui no Maranhão, o Conselho entrou por meio do CONECTA. Havia um grupo de WhatsApp e nós fomos inseridos. A partir desse momento, nós nos familiarizamos. Porque é assim: nós acompanhávamos, pelo YouTube, os cursos, as palestras. Mas a partir do momento em que fomos inseridos no grupo do WhatsApp, a relação se tornou melhor, porque tivemos informações com mais antecedência. Geralmente, os encontros eram aos finais de semana, às vezes às quintas-feiras. Lá no grupo, não. As informações eram compartilhadas com mais rapidez e conseguíamos mobilizar da maneira correta, repassando em tempo hábil para os artistas, para os grupos, e articulando o nosso Estado em relação à Lei.
[Sharine] Quais foram as maiores facilidades, o que mais contribuiu para a implementação da Lei e quais foram as dificuldades para que essa Lei fosse criada e implementada? Você falou sobre o aspecto burocrático e, também, sobre a mobilização… Se puder aprofundar um pouquinho…
[Elaine] Aqui, há um paradoxo. Para alguns, foi maravilhoso fazer o cadastro pela internet, mandar sua inscrição, seu projeto e já receber seu valor em conta. Alguns não possuíam documentos, estavam atrasados com uma ata ou uma certidão que não saía. Eles recorreram a produtoras e havia 15% de desconto, mas isso não foi um empecilho porque, de certa forma, alguns tiveram essa questão de documentos, de atraso, justamente por causa da pandemia. Não estavam arrecadando nem um recurso para o grupo. Então, os pontos positivos são esses, além do Maranhão ter hoje esse mapeamento na página da SECMA. Antes nós não tínhamos. Então, tivemos esse legado para melhorar esse mapeamento, atualizá-lo todos os anos. Será um exercício permanente aqui.
Sobre as dificuldades, o Maranhão tem 217 municípios. Nós recebemos muitos contatos de municípios pelo telefone do Conselho, do CONSECMA, além de reclamações de artistas, de muitos grupos culturais, relatando que algumas secretarias não enviaram suas inscrições para a Plataforma Mais Brasil, não enviaram planos de ação. O município, às vezes, nem recebeu o recurso. Outros municípios receberam o recurso e não repassaram para os artistas e para os grupos. Há até casos de municípios onde as pessoas dizem que acham que o dinheiro foi gasto para outras finalidades e não foi para onde deveria ter ido, que era para os grupos e artistas. Isso, para nós, foi um fator supernegativo, ver que os gestores municipais não deram a devida importância para essa Lei. É como se o setor cultural, nessas cidades, não tivesse importância nenhuma. Como se aqueles artistas fossem invisíveis, não precisassem comer, colocar o pão de cada dia na mesa. É uma realidade bem triste e, quanto mais nos afastamos da capital, mais as dificuldades aumentam. Outro ponto negativo, da perspectiva do CONSECMA nosso coletivo de 40 conselheiros: em vez de a SECMA fazer reuniões itinerantes em municípios onde não havia implementação da Lei, fez em polos onde já havia a implementação. Para nós, do Conselho, essas reuniões deveriam ser estratégicas. Por exemplo, o município de Belágua, com o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] baixo, muitas dificuldades, esse era o município onde a SECMA deveria ir, conversar com o gestor, chamar os municípios que próximos para a reunião, para tentar fazer com que a adesão à lei fosse maior. Aqui, nós tivemos também esse ponto negativo.
Também considero algo muito negativo o fato de o CONSECMA não ter feito parte da comissão de avaliação dos projetos da lei. Esse é um ponto super negativo porque nós precisamos de uma gestão participativa em todos os sentidos. Aqui há o decreto 35.822, de maio do ano passado, que [diz] que o CONSECMA faz parte da administração superior da Secretaria de Cultura do Estado, junto com o Secretário. O nosso regimento é um dos melhores do país, quando se trata de jurisdição de um conselho. Lá diz que nós é que vamos apontar de que maneira será feito o planejamento, para onde vão os recursos, quais serão as ações culturais. A partir do momento em que o poder público se sobrepõe à representação da sociedade civil, percebemos que não houve um entendimento da função do conselho, que não é de atrapalhar a gestão, é simplesmente “pactuação” [pacto], é simplesmente a representatividade. É aquela coisa da dimensão cidadã da cultura. Se nós não participamos, para nós não foi 100% válido porque não tem o nosso olhar. Vemos que alguns editais poderiam ter sido melhores se o conselho tivesse permitido essa participação bem ativa. Esses são os pontos que, posso dizer, considerei negativos. No Conselho, nas nossas reuniões, nós fizemos uma reflexão sobre esse processo, e isso precisa ser melhorado. O Conselho deve ser visto como termômetro da sociedade civil. Se há insatisfação, o conselho vai demonstrar onde existe a insatisfação. Por meio dessa conversa, a SECMA poderá melhorar a gestão cultural em nosso estado.
[Sharine] Principalmente porque o Conselho participou ativamente da formulação da Lei. No momento de implementá-la, pelo que você disse, acabou ficando um pouco de lado… E quais foram os principais atores sociais, pessoas, instituições, entidades que participaram desse processo, com quem você tem tido contato e que você acha que foram mais importantes para formular e para implementar a Lei?
[Elaine] Aqui no Maranhão, nós tivemos a Federação Maranhense de Capoeira, a Federação das Entidades Folclóricas e Culturais do Estado do Maranhão, algumas companhias, como a Companhia Destaque de Imperatriz. Nós tivemos fóruns. Em São Luís há vários fóruns, e eles participaram ativamente. Fórum de música, fórum de artes cênicas, fórum da cultura popular e de outros municípios também, além de alguns conselhos municipais de cultura do nosso Estado. Foi bem rico. Também teve o pessoal do Boi de Zabumba, o clube de Zabumba. São vários grupos de bumba-meu-boi articulados no clube do Boi de Zabumba. “Seu” Basílio Durans há muitos anos realiza o festival do Boi de Zabumba. Teve também a União dos Bois de Orquestra. Foi super rico. Teve o conselho do Tambor de Crioula do Maranhão. Elas foram ativas nesse processo até onde foi permitido, até mesmo na construção da Lei, apontando quais são os grupos, cadastros. Tudo isso foi bem interessante. A participação deles foi bem ativa.
[Sharine] Eles também se inscreveram nos editais, aproveitaram os recursos da Lei?
[Elaine] Todos. Também percebemos isso, que é um ponto positivo. Dos que participaram desde o início, todos conseguiram se inscrever em algum edital, porque os editais foram diversos. Um ponto negativo é que as pessoas que moram, por exemplo, no quilombo de Itamatatiua, na região de Alcântara, não fizeram inscrição. Algumas comunidades de matriz africana… houve poucos terreiros inscritos nesses editais. Para eles, seria fácil porque têm muita riqueza para demonstrar, como, por exemplo, as indumentárias, os rituais, os toques, as cantigas, as lendas, os orixás, os vodus. Tudo isso era para ser explorado nesses vídeos e não vimos a participação massiva que esperávamos, por quê? Havia um grupo de WhatsApp só deles, só das matrizes de comunidades africanas, e esperávamos que todos que estavam ali pudessem ter sido contemplados pela Lei. Essas casas fecharam. Elas faziam festas e não só quem era da casa participava, mas a comunidade inteira, com distribuição de alimentos e aquela coisa comunitária que os terreiros fazem. Realmente, esse período de pandemia, para eles, foi muito difícil. Ficamos bem tristes de ver que quem mais precisava não conseguiu captar recursos.
[Sharine] Por que você acha que eles nem chegaram a se inscrever nos editais se participaram da formulação da Lei? O que impediu que esses grupos se inscrevessem?
[Elaine] Uma das questões principais é que muitos terreiros não possuem CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica]. Isso foi um grande impedimento porque muitos deles não compreenderam que poderiam ter contratado uma produtora, porque a lei exigia um CNPJ ou um CPF [Cadastro de Pessoa Física] com representação, com preposto. E não houve esse entendimento. Esse foi o maior problema.
[Sharine] Isso na questão dos editais. Mas havia também o inciso I.
[Elaine] Muitos municípios conseguiram fomentar espaços culturais, com algumas dificuldades, mas deu certo. Aqui em São Luís, eram R$ 8 milhões em recursos. A Secretaria não executou, passou para o Estado e o Estado fez o edital. O CONSECMA enviou um documento para um edital de espaços culturais de São Luís. Esse documento tinha requisitos avaliativos que são de acordo com nossa realidade. Por exemplo, aqui, os grupos culturais e os espaços culturais não possuem funcionários, possuem voluntários. No nosso universo, não chegamos a esse patamar de ter dinheiro para contratar alguém para cuidar dos espaços. E o edital pedia isso. Você chegava a uma determinada pontuação se tivesse funcionário. Tinha que comprovar que a carteira era assinada, o tipo do vínculo empregatício tinha que ser comprovado. Outra questão: o teto de recursos que a entidade utilizou durante o ano também era muito alto. Só tivemos uma fundação, chamada Sousândrade, que ganhou R$ 10 mil. Acredito que três ou quatro grupos receberam R$ 6 mil e a maior parte dos grupos só recebeu R$ 3 mil, em uma parcela, porque a Prefeitura de São Luís passou o recurso já no final do prazo. E você vê que a maior parte desse recurso não foi gasto, não chegou para quem precisava.
[Sharine] Você conhece um pouco sobre o Sistema Nacional de Cultura? Qual a relação com a Lei Aldir Blanc?
[Elaine] Eu penso que seria o momento de os estados e municípios implementarem as ações do Plano Nacional de Cultura, com que nossos planos estaduais e municipais também estão interligados. O que se observa é que os gestores não têm conhecimento sobre o Sistema de Cultura, que uma coisa está ligada à outra. Veja que recurso veio para o fundo, que também faz parte do Sistema. O plano é o instrumento de apoio e de fomento, de onde será captado o recurso para que aquelas ações e metas sejam cumpridas. Mas, aqui no Maranhão, não observamos isso. Por exemplo, o CONSECMA tem o planejamento com ações de curto, médio e longo prazo, que tem tudo a ver com o que está no Plano Estadual de Cultura, que vai até 2025. Mas a SECMA não teve o cuidado, não teve este olhar, durante a implementação da Lei Aldir Blanc, para implementar esse planejamento. Com o recurso que veio daria para fazer o que estava lá e mais ações, que estão no plano. Não houve avaliação do Plano Nacional de Cultura, que foi prorrogado. Eu espero que a gente consiga demonstrar, em algumas regiões do país, que o plano foi executado, porque ter um planejamento e não o executar, para nós, é muito complicado. Um plano que foi feito a várias mãos, que teve toda uma articulação. Ele fomenta toda e qualquer manifestação cultural e ficamos penalizados ao ver que o que mais precisávamos, durante todos esses anos, para implementar o Plano Nacional de Cultura, era de recursos. Mas nós esbarramos na falta de conhecimento de algumas gestões, infelizmente.
[Sharine] Com a Lei Aldir Blanc, o recurso veio…
[Elaine] Veio o que a gente tanto sonhava!
[Sharine] Que bom! Pena que foi rápido assim…
[Elaine] Muito rápido. Necessitávamos de, no mínimo, um ano para conseguirmos implementar essa lei da maneira que queríamos. Pelo menos um ano para fazer esses editais. Sabemos que edital é uma coisa que tem que ser feita com muita calma. Precisamos de tempo, e tempo foi o que não tivemos.
[Sharine] Você acha que a Lei Aldir Blanc traz algum legado para o Sistema Nacional de Cultura? Você acha que ele sai fortalecido?
[Elaine] Acho que sim. Acredito que conseguimos contemplar parte dessas ações. Pode ter sido de uma maneira transversal, mas conseguimos atingir algumas dessas finalidades. Acho que um dos maiores legados que a Lei Aldir Blanc traz é a possibilidade de transformar, de recriar algumas questões. Aprendemos a nos comunicar mais pelas redes sociais. Isso diminuiu custos porque, quando pensávamos em uma reunião presencial, havia a questão do deslocamento, de hospedagem, de alimentação… Enfim, uma série de coisas. Por exemplo, estamos fazendo aqui essa reunião remota, essa entrevista remota. É algo super-rápido, super prático. Eu acho que um dos legados que a Lei Aldir Blanc vai deixar é isso. Podemos reinventar, criar diversas maneiras de executar ações culturais.
[Sharine] Você acha que a possibilidade de comunicação pela internet e as formas de as pessoas se encontrarem acabou, de alguma forma, ajudando a pressionar o governo para implementação da Lei? Falo sobre a manifestação popular por meio da internet…
[Elaine] Com certeza. Eu acredito que a mobilização foi muito maior do que a mobilização que tínhamos uns anos atrás, antes da pandemia. Um aspecto muito interessante foi a união. Todo mundo unido, falando a mesma linguagem, em prol de um mesmo objetivo. Isso também foi sensacional.
[Sharine] Então, não foi somente o dinheiro que motivou as pessoas. Foi algo mais…
[Elaine] Há diversos aspectos, não é? Principalmente a vontade de não deixar a cultura sucumbir, de deixar legados culturais, novos aprendizados, de demonstrar a questão identitária. A cultura não movimenta somente a questão artística, vai além disso. É a questão da cidadania, é a questão da economia. Acredito que nunca exercitamos tanto nosso direito cultural como nesses tempos de pandemia. Pudemos mostrar o quanto a cultura é rica, o quanto nós somos muitos e o quanto nós somos importantes para o Brasil. Deixamos uma lição para a posteridade.
[Sharine] Vamos mudar um pouquinho de assunto. Você acha que há diferença entre o financiamento público e o financiamento privado para a cultura e a arte? Como essas duas esferas se relacionam, no dia a dia dos artistas?
[Elaine] Vou lhe dar um exemplo. Aqui no Maranhão, o financiamento público chega facilmente às pessoas. Por exemplo, nossos editais de contratação artística, nossa lei de incentivo à cultura, a questão mesmo do Fundo Estadual de Cultura… são muitas as ações implementadas pelo poder público. Mas, quando você pensa em iniciativa privada, tudo se torna mais difícil. Às vezes, não chegamos ao teto de captação de recursos da Lei de Incentivo aqui. Por quê? As pessoas não conseguem um patrocínio. Você não vê um evento cultural que consiga diversas empresas para patrocinar, a não ser que seja um grande evento, que seja um artista muito conhecido. Há várias categorias de eventos, de pequeno, de médio e de grande porte. Os grandes sempre conseguem, com muita dificuldade, o financiamento dessas empresas. Mas há os eventos de médio e de pequeno porte, até mesmo os projetos sociais, que é algo mais importante que o evento – este você faz só em um dia e o projeto social dura meses, tem um alcance muito maior, principalmente em comunidades de pessoas que estão em vulnerabilidade. É muito difícil ver os empresários financiando a cultura, quando falamos dos menores e dos invisibilizados.
[Sharine] Se os artistas não tiverem recurso público, fica difícil realizar os projetos por conta própria…
[Elaine] Aí você vê que não há uma certa autonomia. Eles sempre ficam dependentes do Estado. Não é que o Estado queira que essa relação seja permanente dessa maneira. É que as condições não possibilitam que esses artistas possam ter esse incentivo também das empresas. Não há uma sensibilidade das empresas. Elas não entendem, a meu ver, que isso é um investimento. Se você investe em um artista, em um grupo cultural, em um projeto cultural, você está investindo na cidade, não é isso? Por exemplo, se eu tenho um projeto de capoeira, em um bairro de São Luís que tem muita violência, algo do tipo, se eu conseguir pegar jovens, adolescentes e até mesmo adultos e idosos desse bairro, mobilizar, fazer com que não fiquem o dia na ociosidade, estou ajudando essa comunidade. Mas não há esse entendimento por parte dessas empresas, infelizmente. Quando há um grande evento, por exemplo, São João do Maranhão, nossa!, você vê as maiores empresas apoiando. São muitos links, são muitos cartazes. Mas, quando você vê naquela pequena comunidade, na periferia, não existe isso, infelizmente.
[Sharine] Os artistas da periferia conseguem se manter, às vezes, por conta própria, com doação… Não sei como funciona aí no Maranhão…
[Elaine] Aqui em São Luís, há uma região chamada Bahia de Arraial, Bairro do Arraial. Lá tem o Festival do Camarão. Nesse período, em que eles pescam o camarão, a comunidade fica bem movimentada, os artistas da redondeza fazem shows, por dois ou três finais de semana, tempo de duração dessa festa. Mas o dono do bar vende a cerveja, vende a comida e paga uma parte do cachê para aquele artista. É só essa questão.
[Sharine] Para terminarmos, quais você acha que são as opiniões dos artistas e dos profissionais da cultura em relação às instituições culturais? Por instituição cultural, podemos entender tanto a Secretaria Especial de Cultura, em âmbito nacional, até um teatro de bairro, um centro cultural de alguma comunidade. Qual a relação institucional que os artistas mantêm com esses espaços?
[Elaine] Atualmente, com o Ministério do Turismo e a Secretaria Especial de Cultura, vemos o descontentamento de muitos artistas, de muitos grupos. Por quê? A partir do momento que foi extinto o Ministério, que tinha vários órgãos, que atuavam em várias linhas relacionadas à cultura, percebemos o empobrecimento de investimentos na cultura. Não o empobrecimento dos grupos porque acho que, mesmo com todas as dificuldades, as pessoas estão sobrevivendo, as manifestações estão sobrevivendo. Sobre essa questão dessas instituições, de grupos culturais de bairros, eu percebo que há mais engajamento dos grupos em fomentar ações, em fazer com que isso seja permanente. Os artistas também veem isso com bons olhos porque participam ativamente de programações. Por exemplo, aqui nós temos um quilombo urbano, chamado Liberdade. Esse quilombo urbano possui diversas entidades. É um bairro cultural. Não há cachê para pagar, mas o artista está ali, o produtor cultural está ali, no bloco tradicional, nos terreiros. Tem cacuriá[3], tem tambor de crioula e o pessoal está lá engajado, vai lá para o barracão. Tem bumba-meu-boi. O pessoal vai, borda seu chapéu, borda sua indumentária, faz a reforma dos instrumentos. Existe o investimento tanto de quem é do boi quanto de quem faz parte do boi. E a relação é muito boa entre esses grupos culturais. Por exemplo, o grupo de tambor de crioula precisa reformar uma parelha de tambor. O dono do grupo às vezes tira dinheiro do bolso. Então, há um engajamento muito bom entre eles. Quando partimos para o poder público, como a Secretaria Estadual ou Municipal, ou o próprio Mistério do Turismo atualmente, temos uma relação um pouco desgastada, às vezes pela falta de incentivo, às vezes porque a maneira como a política está sendo implementada não condiz com a realidade dos grupos culturais, dos artistas, e não atinge sua finalidade. É um paradoxo.
[Sharine] Eles dependem do poder público, pelo que você disse antes.
[Elaine] Dependem. Mas há diversas críticas sobre a maneira como a política é implementada.
[Sharine] E as pessoas que se engajam nessas comunidades não têm nenhum apoio de edital ou alguma verba pública?
[Elaine] Existe apoio. Aqui lutamos muito para que o investimento não seja só no Carnaval, no São João e no Natal. Queremos cultura o ano inteiro. Quando você fala em cultura o ano inteiro, você não pode se apegar só a editais. Existem diversas ações que não dependem de editais. Acho que isso está faltando. Por exemplo, um projeto que posso citar, que foi feito pelo IPHAN, é O Boi vai à Escola. Foi realizado durante um ano, em uma escola do Tagipuru, onde mestres foram contratados, mestres do bumba-meu-boi, do sotaque Costa de mão. Hoje só há sete grupos desse sotaque no nosso Estado. Já houve muito mais grupos. Ele está quase extinto. As crianças aprenderam a bordar, as crianças aprenderam a fazer o instrumento, aprenderam a tocar, aprenderam como se dança, aprenderam por que o boi é sotaque Costa de mão. Ele tem origem em um quilombo. Então, isso é uma ação de preservação. É uma realidade totalmente diferente de fazer um edital de contratação artística, em que as pessoas vão ver aquele boi se apresentar, depois vão para suas casas e nem sabem do que se trata, que boi é aquele, por que eles dançam daquela maneira, por que o ritmo é daquela maneira, por que eles tocam o pandeirão com a costa da mão… Porque eram pessoas que foram escravizadas e trabalhavam o dia inteiro, machucavam as mãos e, à noite, tocavam com a costa da mão aquele pandeiro. As crianças dessa localidade terão uma visão diferente, terão um sentimento de pertencimento por esse boi. Em grandes festas, como o Carnaval, o São João e o Natal, você vai, brinca, olha, mas volta para sua casa e não conhece algo que está ali todos os dias, que faz parte do universo cultural de seu Estado, de sua cidade. Você não tem pertencimento, não terá o cuidado de preservar para que continue. Lutamos muito aqui, atualmente, com a Secretaria de Estado, para que tenhamos projetos, programas, ações que pensem em preservar não só o boi, não só o tambor de crioula, não só o bloco tradicional, mas todas as outras manifestações culturais. Vamos formar novos talentos. As crianças desse projeto, provavelmente uma ou outra, vão querer fazer parte desse boi. Então, é isso que queremos: fazer com que essa cadeia fique maior a cada dia que passa. Quando você só faz aquele show, acabou o show, acabou tudo. Muitas pessoas vão para lá para se divertir. Isso não produz algo 100% positivo para a continuidade das manifestações. Lutamos muito por essa questão de não só ficar em edital e em períodos de festa. Cultura tem que ser o ano inteiro e temos que pensar em ações diversas.
[Sharine] Você quer falar mais alguma coisa sobre a Lei Aldir Blanc, sobre sua implementação, sobre a cultura do Maranhão? Ou tem alguma história que queira compartilhar conosco?
[Elaine] Sobre a Lei Aldir Blanc, há esse nosso desejo de que esse recurso possa ser gasto, o que ainda está nos fundos estaduais e municipais de cultura, porque, se for até o fim do ano, até dezembro, isso significa que vamos fomentar a cultura do nosso Estado no momento que mais estamos precisando. Não só aqui no Maranhão, mas nos outros estados. Nossos artistas que receberam auxílio não estão mais recebendo auxílio algum. Houve gente que, no ano passado, comprou materiais para fazer suas indumentárias. O que foi recebido nesse período, na primeira etapa de implementação da Lei Aldir Blanc, não foi suficiente nem para pagar os gastos do plano de 2019. Isso significa esperança para nós, de podemos ver, no ano que vem, o boi dançando, a coreira rodando a saia, o capoeira jogando e por aí vai. Nosso desejo é que o Ministério do Turismo tenha essa sensibilidade e que esse recurso possa ser aplicado, investido. Não vou nem dizer que será gasto, será aplicado e investido. Quando pensamos em cultura, pensamos em desenvolvimento. É isso. Muito obrigada. Parabéns pela sua pesquisa. Prazer.
[Sharine] Foi um prazer, Elaine. Obrigada!
[1] Nascida em São Luís, capital do Maranhão.
[2] Presidente do Conselho de Cultura de Roraima.
[3] Dança típica maranhense.