Canclini na Cátedra
Entrevista com Esther Hernández. Realizada presencialmente, na Secretaria de Cultura, Cidade do México (México), no dia 12 de março de 2024
Sharine: Obrigada por me receber! Para começar, podemos falar um pouco sobre sua trajetória até chegar à Secretaria.
Esther: Bom, eu sou pedagoga de formação. Comecei trabalhando no que tinha a ver com alfabetização em comunidades indígenas, particularmente em Chiapas e, também, em comunidades urbanas marginais, em Nezahualcóyotl, Estado de México. Essas foram minhas duas primeiras atividades. Em seguida, trabalhei em um museu, na parte de oficinas, que depois se converteu no Departamento de Serviços Educativos do Museo Diego Rivera Anahuacalli. Posteriormente, trabalhei no Fundo Nacional para a Cultura e as Artes, no Programa Jovens Criadores. Lá também atuei em alguns projetos, além de Jovens Criadores, na Cátedra de Cultura do México, em que falava sobre cultura mexicana em algumas atividades dos Estados Unidos. Também trabalhei em um programa chamado Opera Prima, que tratava da formação de jovens cantores de ópera. Foi nisso que trabalhei no Fundo Nacional para a Cultura e as Artes, mas era uma parte da arte que não me chamava muito a atenção porque, apesar da coordenação dos programas, era toda uma parte muito elitista. Sentia como algo desligado até mesmo da origem de meus primeiros trabalhos. Posteriormente, teve início a Direção de Culturas Populares e Indígenas do CONACULTA [Conselho Nacional para a Cultura e as Artes] e, por essas razões, trabalhei primeiro na coordenação de arte popular. Impulsionei programas de fortalecimento de saberes, principalmente de setores artesanais em risco. Então, trabalhava com os artesãos sobre as razões pelas quais essas práticas artesanais iam sendo deixadas de lado. Por outro lado, ia recuperando as memórias relacionadas a esse tema para, então, criar esse programa de fortalecimento que tinha a ver com falar sobre as iconografias que foram deixadas de ser utilizadas, as técnicas que foram deixadas de ser utilizadas. Era um programa para recuperar tanto as técnicas como o sentido e a iconografia desses artesanatos em risco. Posteriormente, estive na Direção de Promoção e Pesquisa de Culturas Populares e Indígenas, tudo o que tinha a ver com as duas áreas. O nome diz muito: promove pesquisa, mas também nos focávamos em manifestações em risco de desaparecer ou em manifestações nas quais já havia muito poucos praticantes de certa expressão cultural ou em que havia muito poucos falantes de uma língua indígena, etc. Era como a coordenação das distintas equipes de pesquisa. Também fizemos alguns programas relacionados à formação, nesse sentido, mas formação a partir da base comunitária. Posteriormente, estive trabalhando, lá mesmo, em um programa que se chama Cultura para a Harmonia, que é o antecedente do que trabalho hoje, em Cultura Comunitária. Em Cultura para a Harmonia, principalmente, estávamos em municípios com alta incidência de delitos, explorando as possibilidades da arte como uma alternativa de transformação social, como uma alternativa também para infâncias e juventudes, nas problemáticas do narcotráfico, frente a problemáticas de violência e outras, como uma alternativa por meio da arte para evitar condutas antissociais. Depois disso, estou aqui na Direção Geral de Vinculação Cultural. Aqui, o trabalho tem duas linhas. Por um lado, uma linha muito institucional de relação com todos os titulares de cultura do país, com os diferentes secretários de cultura de cada um dos estados da república mexicana. Por outro lado, os programas institucionais que são conduzidos a partir daqui. Um está muito relacionado com essa vinculação com os estados, que se chama Apoio a Instituições Estaduais de Cultura [AIEC], que é, principalmente, um apoio financeiro dado aos estados para que desenvolvam linhas de política pública, de política cultural, relacionadas à promoção e difusão das expressões culturais, como a descentralização, principalmente. Os estados trabalham muitíssimo nas capitais e seu orçamento vai para as capitais. Então, esse recurso é um pouco pensado para que descentralizem as ações e cheguem mais aos municípios. Também com ações relacionadas à promoção e à difusão, com pesquisa. Há distintas linhas de política para que os estados utilizem esse recurso. O outro é um Programa de Apoio à Infraestrutura Cultural dos Estados, que é o PAICE. Antes, esse programa dava o mesmo orçamento para que fizessem os grandes teatros ou reabilitassem os grandes teatros e os grandes museus das capitais. Agora, o objetivo é trabalhar primeiramente em municípios sem infraestrutura cultural, implementar uma infraestrutura cultural nesses municípios onde nunca houve, impulsionar projetos mais comunitários, relacionados a isso. Continuam enviando projetos. Agora é por concurso. Antes era uma transferência direta. Agora é um edital público para que instituições estaduais e municipais, mas também universidades públicas e organizações da sociedade civil possam enviar esse tipo de projetos de infraestrutura cultural. Finalmente, há o programa Cultura Comunitária. No programa Cultura Comunitária, temos três linhas muito fortes de trabalho. Uma tem a ver com a participação cultural. É transversal a todo o trabalho desenvolvido e tem a ver com mudar a visão das pessoas como público e começar a pensá-las mais como agentes culturais. Por um lado, há uma ação que se chama Convites Culturales, que é como um programa de formação de públicos, mas com enfoque participativo, em que são recuperados espaços públicos por meio de atividades relacionadas à arte e à cultura, sempre pensando no local, sempre pensando em quais são as inquietudes, os interesses e, também, os elementos de riqueza cultural que já existem nesse lugar. Mas possibilitando que, uma vez por semana, sejam feitos encontros. Geralmente, o que a Secretaria fazia era esta ideia de levar cultura para as comunidades e, nesse levar cultura, as atividades aconteciam uma vez por ano. Eram feitas caravanas ou jornadas que passavam e não voltavam nunca mais. Então, a ideia aqui é permanência. Trabalha-se com promotores culturais e com agentes de alguma disciplina artística ou alguma expressão cultural que, juntos, vão trabalhando com os públicos. São muito variados. Depende do que há em cada um dos lugares. Vou lhe dar um exemplo: em um município de Tlaxcala, havia um interesse pela medicina tradicional. Os agentes culturais, evidentemente, são médicos tradicionais, pessoas que sabem sobre isso e os promotores que vão atraindo os públicos a se interessarem por esse campo. Esse comitê cultural começou: “Em primeiro lugar, vamos fazer uma horta. Vamos plantar na terra todas essas plantas e ervas que ajudam na medicina tradicional”. Depois disso, fizeram algo chamado de farmácia viva. São ciclos, mais ou menos de seis meses, em que vão fazendo isso e, depois, a transformação do produto, passando da erva a uma pomada, para que seja uma tintura, para que seja um xarope, por exemplo. Então, a partir daí vão entrelaçando os conhecimentos ou os saberes sobre a medicina tradicional e sobre como curar certas condições de saúde, etc. Há outros em que o que interessa explorar é a memória, como foi criado o bairro, a memória histórica de um bairro. Começam com uma estratégia de registro fotográfico, de tirar fotos dos lugares emblemáticos do bairro e de as pessoas mais velhas contarem as histórias sobre isso, sobre como se constituiu, etc. Terminam em uma grande exposição, por exemplo, feita com o que vão trazendo as vizinhas e os vizinhos. Então, essa é uma linha. Não é o clássico: as pessoas chegam, sentam-se e veem o que acontece. Estão sempre participando. Em cada uma das ações, há conversas, há oficinas e terminam com uma mostra comunitária. Essa mostra comunitária pode ser a exposição, para dar um exemplo, ou uma obra de teatro sobre o processo de formação, sobre como se formou o bairro. Outra linha é Semilleros Creativos. Os Semilleros Creativos são grupos de formação artística com foco comunitário. São com crianças e jovens, embora também cheguem adultos. Os Convites são intergeracionais. Este está mais focado em infâncias e juventudes. É um pouco o que lhe contava sobre o antecedente em Cultura para a Harmonia, de oferecer uma alternativa a crianças e jovens que vivem em contextos de vulnerabilidade social, seja pela violência, seja por marginalidade e pobreza. Então, neste modelo, toma-se a arte como caminho, ou seja, a intenção fundamental não é formar artistas, mas utilizar a arte como um meio para a expressão, mas também para formação de pensamento crítico a respeito do que acontece com nossos entornos. Nessa formação de pensamento crítico, há uma metodologia que também impulsiona a participação das crianças. Outra vez, não são somente quem vai e recebe o conhecimento dos artistas ou dos professores, mas quem propõe também. A partir da experiência estética, vão propondo e identificando, por um lado, quais são as problemáticas sociais que lhes inquietam e, por outro lado, quais são os elementos culturais que lhes preocupam ou aos quais querem dar visibilidade de alguma maneira. Então, nos Semilleros são feitas assembleias. Nessas assembleias, são incentivados a comentar a situação para a qual querem dar visibilidade, seja um problema social ou uma manifestação cultural. Depois, na assembleia, é decidida uma ação comunitária. Quer dizer, o que vão fazer, por meio da arte, para dar visibilidade a essa situação? Se for possível, tentam resolvê-la. Mas, se não, dão visibilidade à situação, vão criando consciência sobre isso. Nessas ações comunitárias, conseguem também essa relação com a comunidade. É onde se envolvem para dizer: “nossa geração está preocupada com tais coisas. Como os adultos e a comunidade vão se envolver com essas situações particulares?” De tempos em tempos, há também uma mostra de seu trabalho artístico. Ambas são ações que acontecem diariamente, cinco dias por semana, quatro horas diárias. Ou seja, são quatro horas em que o professor está à frente do grupo, mas, digamos, duas horas para o grupo infantil, duas horas para o grupo de jovens. Há outra linha em que se trabalha o exercício de direitos culturais com populações vulneráveis, principalmente pessoas privadas de liberdade e população migrante. Com a população migrante, é bem complexo, principalmente pela mobilidade. São praticamente oficinas, ferramentas que lhes oferecerem para que utilizem a arte em seu cotidiano para expressar o que sentem, para pensar em mandar uma carta para a família: o que diriam? Quais seus sonhos ao migrar? Que parte da cultura seguem? Digamos, uma pessoa migra e deixa muitas coisas. Então, pode tomar consciência sobre isso e sobre como, ao chegar a outros lugares, está implicando sua cultura com outras culturas. Com a população privada de liberdade, trata-se, principalmente, de formar coletivos com artistas de fora, que são os que vão e dão as oficinas, e criar uma comunidade de artistas dentro do centro penitenciário. De maneira muito geral, esse é o programa que temos agora.
Sharine: Obrigada. Eu não falei, mas eu também trabalho no Ministério da Cultura no Brasil. Trabalho na Fundação Nacional de Artes, mas em São Paulo, não em Brasília nem no Rio de Janeiro. Agora estou de licença para fazer a pesquisa, mas somos colegas de trabalho. Gostaria de saber como são escolhidos os lugares onde vão fazer essas atividades, o público… Como isso é feito? Há editais, fazem em todos os estados, somente na capital?
Esther: A escolha dos lugares tem a ver com uma estratégia do governo federal. De modo geral, atende, em primeiro lugar, os municípios que não têm participação das instâncias federais em nenhum de seus programas. São municípios com alto e altíssimo índice de vulnerabilidade social. A Secretaria de Bem-estar nos passou uma relação desses municípios e a Secretaria de Segurança, uma relação dos municípios com grau um de violência, ou seja, com os maiores níveis de violência que há no país. Uma vez tendo essas relações, foi lançado um edital para localizar os agentes culturais com os quais íamos trabalhar. É importante que sejam locais porque é diferente dessa ideia de levar a cultura. Não as pessoas da cidade indo às comunidades, mas as pessoas das próprias comunidades reconhecendo qual é a riqueza cultural de cada um dos lugares. Nessa parte, foi lançado o edital em todos esses municípios. Nem todos os municípios responderam. Nos municípios em que houve resposta, começamos com uma capacitação dos agentes culturais. Principalmente, no caso do Semilleros, chegava a acontecer de os artistas das comunidades não terem experiência docente, por exemplo, ou serem jovens que tinham estudado arte e não tiveram nenhum trabalho relacionado à sua linguagem artística. Então, a primeira coisa que acontecia era uma capacitação sobre o tema dos direitos culturais, direitos das infâncias, a parte didática, como compartilhar esses saberes, etc. Toda vez que entravam novos agentes, era feito esse processo de formação. A área se chama algo como capacitação cultural, mas o enfoque é um pouco distinto. Tem mais a ver com a formação e com o intercâmbio de saberes, a partir dos agentes culturais nas localidades. Talvez não tenham trabalhado diretamente na docência, mas têm também algumas ferramentas para essa transmissão de saberes. São compartilhados alguns princípios de trabalho, alguns conhecimentos relacionados ao fortalecimento de suas habilidades no trabalho territorial, no trabalho com os públicos, com as pessoas, com os agentes culturais, com as crianças. Com as pessoas privadas de liberdade, é outra capacitação, muito particular, ou com a população migrante. Então, é feito com eles esse processo formativo. Eles têm que começar com a promoção da atividade que vão realizar: Convites, Semilleros ou as oficinas para migrantes. O trabalho vai desde buscar a sede onde a atividade será realizada. A Secretaria de Cultura Federal não tem espaços físicos nos estados, não tem infraestrutura, ou seja, apoia a infraestrutura, mas não tem espaços físicos nos estados. Então, a gestão é feita, em primeiro lugar, com a instância estadual de cultura, com a instância municipal de cultura. Se nem a estadual nem a municipal têm espaços, são utilizados espaços de infraestrutura social. Vai se buscando onde podem ser realizadas as atividades. No caso de Convites, são espaços públicos. Podem ser parques, pode ser a quadra de basquete que há na comunidade. Em todas as comunidades, no México, há quadras de basquete [risos]. Foi algo implementado no governo de Carlos Salinas de Gortari, entre 1988 e 1994. Podem ser as quadras que já não são ocupadas nem para atividades esportivas, mas onde é feito o tráfico de drogas, onde estão as gangues e coisas assim. A intenção é recuperar o espaço para o uso da população. De modo geral: em primeiro lugar, Bem-estar e Segurança nos deram um catálogo de municípios; a partir daí, lançamos um edital; depois de lançar o edital, tivemos o processo de formação com os agentes culturais locais e, por fim, a gestão do espaço, a difusão, para que as pessoas aderissem… Há um passo em que estão terminando a formação, antes que comecem a atividade, que tem a ver com uma série de pesquisas para verificar quais são os hábitos de consumo cultural das pessoas. O que lhes interessa? O que entendem como cultura, como direitos culturais? Que manifestações, que expressões da arte e da cultura interessam? Há tudo isso e, no caso das crianças, é muito relacionado, principalmente, com o agente cultural que há na localidade. Há lugares de muitíssima música e você vai encontrar muitos músicos que possam montar um grupo comunitário. Mas há outros em que há mais teatro, mais artes, artesanato, mais canto, mais dança. No caso do Semilleros, depende muitíssimo dos agentes culturais que há para determinar o tema.
Sharine: São quantos no México?
Esther: Há 423 Semilleros em todo o país, 196 Convites que, digamos, são os mais abertos ao público. Os outros são variáveis em função das permissões em centros penitenciários, em estações migratórias, etc. Mas o que temos como ações permanentes são Semilleros e Convites.
Sharine: O que você pensa das mudanças do governo de López Obrador em relação à história das políticas culturais mexicanas?
Esther: Foi uma mudança radical de política cultural. Justamente a esses eixos que foram muito apoiados, que eram as belas artes e a antropologia e a arqueologia, que eram as duas fontes, sobretudo, de ação cultural e de apoio à cultura, somou-se a parte da cultura comunitária, somou-se o sentido de participação cultura, somou-se o sentido de cidadania cultural. Há uma mudança forte, em primeiro lugar quanto ao fato de que as ações estavam centralizadas na capital do país, aqui na Cidade do México. A Secretaria de Cultura federal parecia uma extensão da secretaria da Cidade do México porque quase todo o seu orçamento e as suas ações eram executados aqui. O planejamento agora é voltado à maioria dos municípios. Se não me engano, conforme os dados da nossa Secretária, Alejandra Frausto, a Secretaria está em 96% dos municípios já com as distintas ações, que são as de cultura comunitária, que são também ações de culturas populares e indígenas, que são também ações com os artesãos. Há um programa que se chama Original, que trabalha muito com os artesãos. A política mudou da ideia de uma cultura elitista, de uma cultura centralizada, de uma cultura que tinha que ser levada aos territórios, a uma cultura de base territorial, a uma cultura que parte da riqueza cultural de cada uma das localidades e que reconhece nessa diversidade cultural a maior riqueza que há. Enquanto as políticas culturais do passado tinham a ver com o letramento cultural em tais ou quais expressões de belas artes, agora têm mais a ver com esse reconhecimento da base cultural que existe em cada um dos lugares.
Sharine: Houve uma mudança no orçamento do FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes], por exemplo, para essas ações comunitárias ou são coisas distintas?
Esther: No FONCA, principalmente, há ações como o programa “Apoyo a proyectos y coinversiones culturales“, que tem, como uma de suas linhas, trabalho comunitário. Então, tem-se, a partir do FONCA, esses apoios. Também o que tem a ver com criação em línguas indígenas, que tem um orçamento e um edital específicos. Há outros em que o foco é trabalhar com os músicos tradicionais. Então, há algumas ações dentro do FONCA que são dirigidas a isso.
Sharine: Mas são orçamentos distintos para o FONCA e para a sua diretoria?
Esther: Sim, são orçamentos distintos. No entanto, fazemos um cruzamento para envolver os beneficiários do que hoje é chamado Sistema de Apoios à Criação e Projetos Culturais (já não se chama FONCA), que têm esse tipo de projetos, com os projetos que desenvolvemos aqui. Temos uma rede de intercâmbios criativos a partir dos beneficiários. Eles têm que fazer algo como uma retribuição social. Essa retribuição social é feita em interação com o programa.
Sharine: O programa de cultura comunitária… Essa é uma pergunta muito particular porque, no Brasil, temos o programa Cultura Viva. Não sei se você conhece. Tem uma relação com o Programa Cultura Comunitária ou não?
Esther: Pois parte precisamente da concepção das culturas vivas, da riqueza em cada uma das localidades, das culturas que estão vivas, das expressões culturais que estão nesses lugares e outras coisas. No entanto, você me corrige, no Cultura Viva estão os Pontos de Cultura…
Sharine: Sim.
Esther: Digamos que nossos pontos de cultura sejam os Semilleros e os Convites, para fazer uma analogia. No entanto, o que nós fazemos é a contratação das pessoas como pessoal eventual da Secretaria de Cultura. Quer dizer, elas têm o mínimo de direitos laborais. Não sei se, no Brasil, é mais como apoio…
Sharine: São apoios.
Esther: Então, a diferença seria um pouco essa: aqui, o que se faz é contratar as pessoas, se houver. No caso do Convites, em particular, há sim apoio aos agentes culturais que participam em todo o processo. Mas, ao mesmo tempo, são contratados três promotores, que estão trabalhando constantemente. A diferença é que aqui não são dados apoios, mas é feita a contratação direta dos agentes culturais para que levem adiante o processo durante todo o ano. Todos os anos é feito um corte. A maioria dos projetos tem continuidade, mas, às vezes vemos que o projeto pode pensar em alcançar outro município ou outro bairro, outra localidade…
Sharine: Agora estamos começando, no Brasil, um processo muito importante de federalização. Não sei você já ouviu falar na Lei Aldir Blanc…
Esther: Não…
Sharine: Foi uma lei emergencial durante a pandemia, que trabalhou com a descentralização orçamentária do governo federal. Agora temos duas novas leis, que são a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, que se transformou em uma política também de repasse do orçamento do governo federal para os estados e os municípios. A adesão dos municípios à Política Nacional Aldir Blanc foi de 97%. Penso que há uma relação com isso que acabou de falar sobre o apoio às infraestruturas. Mas é diferente do Semilleros Creativos …
Esther: São diferentes.
Sharine: São duas coisas diferentes? A primeira são os editais para os apoios. E, para os Semilleros Creativos, não são feitos editais. São projetos da Secretaria desenvolvidos nos estados…
Esther: Na verdade, são feitos os editais para contratar os professores para que implementem um modelo. Esse modelo, desde o princípio, tem suas variações de acordo com o lugar em que se desenvolve. Se o ponto tem a ver com o fortalecimento das expressões culturais locais, de acordo com a expressão cultural de cada localidade, vão mudando um pouco as atividades que são realizadas. Mas é um modelo que vai se enriquecendo com as particularidades de cada lugar. Então, são contratadas as pessoas para que realizem essas ações. As primeiras, tanto o Apoio a Instituições Estaduais de Cultura como o Programa de Apoio à Infraestrutura Cultural dos Estados, são editais públicos. Nesse caso, é a entrega de um apoio para a infraestrutura ou o desenvolvimento.
Sharine: Os editais para os governos locais…
Esther: A primeira apoia instituições estaduais de cultura. É para as instituições dos governos locais. A segunda, a de infraestrutura, é sobre a qual digo que podem participar também organizações da sociedade civil e universidades públicas.
Sharine: A Lei Aldir Blanc foi criada no Brasil pela pressão dos movimentos populares. Estávamos em um governo de direita, não tínhamos muito orçamento para a cultura e houve uma mobilização social muito importante. Então, me interessa saber como os artistas e os trabalhadores da cultura, os movimentos sociais em geral se relacionam com o governo e com as políticas culturais no México.
Esther: É algo variável em distintos níveis. Há algumas ações muito diretas, as que implementamos em cultura comunitária. Já a parte que tem a ver com formação cultural, conversas, algo que chamamos La Pixca, é um espaço para compartilhar saberes sobre a gestão cultural comunitária. Esses são espaços onde ocorre essa aproximação institucional entre os projetos e o desenvolvimento que há nos distintos municípios, mais no nível da base comunitária, mais no nível social. Há outros casos em que se planeja quais são as linhas de política cultura e convida-se os estados e os municípios a adotarem essas linhas de política cultural. Mas somente podem ser convidados de forma normativa, não há nada que os obrigue a segui-las. A intenção, principalmente, é que o exercício do orçamento seja descentralizado, que seja dado um maior apoio direto às pessoas, algo que mudou muito, voltando à pergunta anterior e relacionando com esta. Antes, todo o orçamento e todas as ações da Secretaria eram realizados nos estados por meio de subsídios aos próprios estados. Era dado um recurso gigantesco para que fizessem o que quisessem. No entanto, havia muita corrupção, muita discricionariedade no uso dos recursos. O que foi feito, em geral, para todas as secretarias do Presidente Andrés Manuel López Obrador, foi que os apoios ou os recursos vão diretamente aos beneficiários. Não passam por intermediários. Não passam pelo estado, não passam pelo município, mas vão diretamente. Há vezes em que o estado ou o município podem ser o beneficiário, como nos editais da AIEC ou como em uma das partes do PAICE. Eles podem ser os beneficiários, mas são os únicos casos que existem. Todos os demais são apoios que vão diretamente para as pessoas. Além de todos os editais do FONCA, há o edital de Apoio a Festivais Culturais, que não é administrado no FONCA, está o programa PACMyC, que é o Programa de Apoio a Culturas Municipais e Comunitárias. São apoios que tampouco são administrados pelo FONCA. Bom, há o PAICE, há outro que se chama Apoio a Cidades Patrimônio. As que têm esse patrimônio são praticamente todas [risos]. Mas antes era feito somente com as cidades reconhecidas como povos mágicos ou que tinham um reconhecimento pela UNESCO como patrimônio mundial, que eram bem poucas. Agora abriram-se a uma concepção ampla de patrimônio. Também há um programa de restauro, que é feito com as comunidades. Uma parte do recurso é dada pelo estado a municípios onde há obras que queiram restaurar, monumentos, principalmente. E uma parte quase sempre tem a ver com a mão de obra, com saber fazer o restauro. O restante é dado pela comunidade, que é tripartite. Então, além do FONCA, há esses outros programas.
Sharine: Mas pergunto também em relação aos artistas, à comunidade de criadores. Como eles se relacionam com as políticas culturais?
Esther: As distintas áreas têm esses mecanismos de aproximação. Para nós, são principalmente ações com conversas, formação, etc. O FONCA, por exemplo, faz isso a partir dos próprios editais. Há algumas capacitações para concorrer nos editais. Essas capacitações são anteriores aos editais. Depois dos editais, já contemplados os projetos, há todo o acompanhamento do edital. O IMCINE [Instituto Mexicano de Cinematografia], por exemplo, faz constantemente ciclos de conversas com pessoas do cinema para discutir o que estão fazendo. Agora que se apoia muito mais o cinema indígena, o cinema afromexicano, foi aberta a possibilidade. Há um estímulo fiscal ao cinema. Antes, o produtor tinha que chegar já com uma empresa que quisesse esse estímulo fiscal. Então, eram sempre os produtores mais ricos que tinham acesso e conheciam as empresas. Agora foi aberto o jogo e, então, as pessoas inscrevem os projetos e não precisam conhecer os empresários que querem participar. É um critério artístico que determina o projeto que será beneficiado com um estímulo fiscal.
Sharine: Que interessante. É diferente do Brasil… Como são escolhidas as empresas?
Esther: As empresas decidem participar nos estímulos fiscais. Ou seja, não é que sejam escolhidas, mas dizem: “Eu quero participar dos estímulos fiscais”. Eu lhe digo: antes tinham que chegar juntos, mas agora há toda a base de empresas que querem participar dos estímulos fiscais; há toda a base de projetos. Os projetos são inscritos, ganham por um critério artístico e, então, mais ou menos em função do montante que a empresa tem para o estímulo fiscal é que se articulam os projetos. Isso abriu muito porque, antes, muito poucos podiam ser beneficiados, sempre os mesmos, sempre o mesmo tipo de filmes.
Sharine: É mais ou menos o que acontece no Brasil. Beneficiam os artistas mais conhecidos porque as empresas querem também a publicidade, fazer propaganda e coisas assim.
Esther: É assim. Agora é outro tipo de cinema, não? Com esses estímulos fiscais são apoiados filmes indígenas, filmes afromexicanos, mais independentes. Essa ideia de abertura surgiu precisamente de conversas prévias que tivemos, em que se dizia: “eu não posso aspirar a ter um orçamento com um estímulo fiscal porque não vou conhecer nunca um empresário”. Aí começaram a romper as antigas práticas. Foi feita toda a modificação normativa e foi possível.
Sharine: Os editais são abertos para quem quiser participar…
Esther: Sim.
Sharine Para terminar, uma pergunta que o professor Néstor García Canclini me pediu para fazer.
Esther: Que bom!
Sharine: O que você pensa das relações internacionais no campo das políticas culturais, especialmente com o Brasil, porque é meu país, mas também em geral?
Esther: Acho que são oportunidades bem importantes. Por um lado, o conhecimento sobre como estão sendo realizadas certas políticas que podem se tornar boas práticas no outro país e que falam de experiências atuais, como conversávamos sobre os estímulos fiscais. Ou seja, trabalha-se dessa forma, mas é possível trabalhar de outra se for feita uma mudança normativa. São como boas práticas nas políticas públicas nos distintos países, são ações que podem ser reproduzidas aqui. Por exemplo, no caso do México e em uma opinião muito pessoal, acho que nos faz falta uma linha mais contundente na questão de apoio aos projetos comunitários, que não seja somente através do FONCA ou que não seja somente através do PACMyC. Como usar esses projetos para que tenham um maior impacto? O PACMyC tem muitíssimo impacto nas comunidades, tem um bom orçamento e, digamos, poderia, nesse sentido, cruzar-se um pouco com a ideia dos apoios que são dados para a Cultura Viva no Brasil. Acho que essas relações internacionais são importantes por esse intercâmbio de práticas ou, melhor, por esse conhecimento de práticas que podem ser implementadas nos outros países. Há o tradicional, que tem a ver com o intercâmbio. Vão artistas mexicanos ao Brasil, brasileiros ao México, etc. Essa parte sempre será importante, sempre será necessário conhecer as outras culturas do mundo no México e que o México se conheça nas outras culturas, nos outros espaços do mundo. Acho que isso sempre será interessante. Acho que se abre uma oportunidade ou que estamos em um momento em que as relações diplomáticas são muito sólidas, em que se pode pensar em implementar alguns dos projetos que têm sido exitosos em cada um dos países. Com suas características particulares, podem ser precedentes de um programa que tem tido êxito ou de políticas que têm tido êxito e que, então, podem ser implementadas também em outros países. Ou seja, não reinventar a roda. Já há formas, há experiência, há resultados. Esse modo de fazer política pública pode também ser implementada em outros países. Acho que o Programa Cultura Viva, essa visão, é algo que finalmente está tendo ressonância em toda a América Latina. Vários países adotaram esse modelo do Brasil e estão implementando também dentro de suas políticas culturais. Eu diria que é o paradigma latino-americano na gestão cultural porque a tradição em gestão cultural que havia no México, que vinha da Europa e de outros lugares, não considerava a parte comunitária, não considerava as culturas vivas, e é claro que o Brasil, por exemplo, contribuiu e que o México também adotou uma parte daí. Mas acho que isso pode ser mais compartilhado para que os programas, em um caso ou em outro, ou essas práticas do México também possam ser exploradas no Brasil e em outros países.
Sharine: Eu disse que seria a última, mas tenho mais uma pergunta, se puder responder. O que você pensa das políticas públicas para melhorar o problema da precariedade dos artistas e de todos os trabalhadores?
Esther: Acho que isso é muito importante. Acho que, às vezes, as instituições podem até mesmo não ser suficientes em seus esforços. O tema da informalidade no setor artístico e cultural é algo que torna muito complexa a situação em que se vive, essa precariedade de que você fala. É algo que tentamos fazer no que nos diz respeito, precisamente, contratar as pessoas. Ou seja, dar a elas a possibilidade de direitos laborais. Não somente o exercício de seus direitos culturais, mas também de seus direitos laborais e que sejam consideradas como trabalhadores da cultura, não somente como criadores, não somente como artistas, mas como trabalhadores da cultura. Ao serem consideradas assim, é preciso reconhecer esses direitos. Acho que esse é um dos maiores desafios que, com certeza, também acontece no Brasil. Acontece muito no México. A maioria das pessoas é contratada como prestadora de serviços. Ao serem contratadas como prestadores de serviço, têm um certo esquema de previdência, etc. A instituição não tem nenhuma obrigação com os direitos laborais da pessoa. É uma relação contratual muito diferente. Por outro lado, há iniciativas… Agora está acontecendo um programa piloto no México, de previdência social para agentes culturais, que não envolve somente a parte médica. O programa piloto foi feito para incentivar as pessoas a se inscreverem nesse padrão de trabalhadores independentes da cultura. A Secretaria de Cultura paga os primeiros seis meses de adesão, o que dá todas as possibilidades de pedir um financiamento para habitação, de pedir financiamento para um automóvel. Têm o benefício de creche, podem contribuir para o seu sistema de aposentadoria e têm o serviço médico. Agora está como programa piloto com duas mil pessoas. Foi feito através de uma pesquisa de quem precisava, interessados que não tinham nenhum tipo de previdência social e queriam testar. Esse piloto tem apenas um mês de implementação. Mas acho que o caminho é ter a consciência de que a atividade cultural também é uma atividade produtiva, também é uma atividade econômica e que, nesse sentido, também tem que contribuir para o bem-estar social, pessoal, do agente cultural.
Sharine: Obrigada, Esther!
Esther: Não há de que, Sharine. Espero que tenha sido útil.
Sharine: Sim, me ajudou muito. Estou falando com artistas independentes. É distinta a visão do governo e dos artistas… Eu estou no governo, mas também sou pesquisadora…
Esther: Do lado da comunidade artística e cultural ainda há muitas reclamações. Há uma série de coisas que têm a ver com orçamentos que não foram ou que teriam que ser executados, mas, definitivamente, sempre há a busca dessa relação com as comunidades culturais e artísticas, por um lado. Por outro lado, esperamos que os orçamentos da cultura beneficiem aos agentes culturais. Acho que esse é o caminho em que ainda precisamos percorrer um bom trecho.
Sharine: Sim, claro. Como no Brasil e como em todos os lugares, penso.
Esther: A quantidade é imensa, não? E não é como os outros programas em que você dá uma bolsa e, então, essa é a única relação. Aqui, a comunidade é uma exigência na forma de fazer gestão cultural, mais do que: “me dê um recurso”. Há outros que, por outro lado, dizem: “Bom, não me diga nada, não me fale sobre nada, me dê o apoio”.
Sharine: Sim, claro, é como acontece. Muito obrigada por me receber.