Canclini na Cátedra
Entrevista realizada com Gabriel Portela, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 7 de dezembro de 2020.
[Sharine] A minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc: por que, em um momento em que as instituições acabam ficando tão frágeis, neste momento de pandemia, neste momento de emergência sanitária, conseguimos fazer um movimento como o da Lei Aldir Blanc, que envolveu vários atores sociais, várias instituições para, ao contrário do que vemos acontecer ultimamente, ao contrário de as pessoas se afastarem das relações institucionais, deixar as instituições mais fortes? Meu projeto de pesquisa é, mais ou menos, este, com foco na Lei Aldir Blanc. Para começar, gostaríamos de ouvir histórias sobre artistas e profissionais da cultura que se engajam politicamente para a elaboração de políticas públicas para o setor. Quais os anseios, as motivações desses profissionais? De que modo esses anseios, essa movimentação toda do setor, acabam afetando, influenciando a sociedade em geral? O foco é especialmente na Lei Aldir Blanc, porque sei que você participou de todo o processo.
[Gabriel Portela] Acho que, de fato, a Lei Aldir Blanc vai render, ainda por muito tempo, muita análise, muitos debates, balanços… Acho que é um processo… realmente é um marco histórico. Tem acertos, tem erros nesse processo. Mas tem sido um movimento fundamental. Acompanhei o processo desde o início. Não atuei diretamente nos primeiros momentos de articulação, porque isso ficou muito lá no Congresso Nacional, naturalmente, mas também se deu muito por meio da articulação da sociedade civil, a partir de alguns atores: o Alexandre Santini é um deles, que estava naquela live sobre a publicação[1], e tantos outros… Acho que foi uma junção de fatores, para refletir. A pandemia é um fato histórico também. Não é inédito, mas, nas nossas gerações, é inédito vivermos algo desse tipo. A pandemia possibilitou essa visão de o Estado socorrer a sociedade, em alguma medida. Então, seja pelo auxílio emergencial, de R$ 600, ou pela ajuda ao setor privado, através da suspensão dos contratos CLTs e todas essas medidas que o governo realizou – na minha visão, foi muito menos uma iniciativa do Executivo e muito mais uma iniciativa do Congresso Nacional – abriram um campo de possibilidades.
Nesse embalo, os parlamentares mais ligados à agenda da cultura viram que poderiam tentar implementar ações emergenciais, assim como vários países anunciaram medidas mitigadoras do impacto da pandemia para a área cultural. Você vê a Secretária da Cultura da França, se não me engano, fazer uns anúncios. A Inglaterra, até países que têm uma essência liberal, do ponto de vista econômico, estão realizando ações de proteção social e econômica da cultura. Então, criou-se um ambiente favorável para se pleitear esse recurso, um recurso super relevante: estamos falando de três bilhões de reais. Acho que também houve uma sabedoria nessa articulação, que foi entender que esse recurso não era um recurso novo do Governo Federal. Na verdade, eram saldos não executados do Fundo Nacional de Cultura, de algum tempo. Acho que isso facilitou. É diferente de você chegar para o Governo e falar: “tira três bilhões do seu orçamento”. Você mostra: “olha, você já tem esse dinheiro lá, esse dinheiro não é executado há anos, então, vamos colocar na rua”. Acho que este também foi um fator fundamental: a disponibilidade do recurso.
A questão que eu acho que se destacou nesse processo foi, de fato, algo que não víamos há muito tempo na área cultural: o engajamento muito amplo da sociedade civil, dos movimentos culturais, em torno da Lei. Eu acho que teve um fator que possibilitou isso: a internet. Rolaram várias conferências populares de cultura. Teve reunião, de que eu participei, em que havia mil pessoas na sala Zoom. Eu participei direto – trabalhava no Ministério da Cultura – da Conferência Nacional de Cultura. Mas era uma logística você montar um processo desse. Era um processo oficial, era um processo convocado pelo Estado. Mas, com a pandemia, entendemos que é possível se articular de fato, estar mais próximo, por causa da internet. Foi um fator fundamental. Eram reuniões e reuniões e reuniões, que geraram um contexto para ajudar a pressionar lá dentro do Congresso.
Eu, particularmente, fiquei muito impressionado com o modo como a Lei foi aprovada. Foi praticamente por unanimidade. O único partido contrário foi o Partido Novo. Mas, do PSL ao PSOL, todo mundo votou a favor. Foi bem impressionante. Aí foi para o Governo Federal, que fez uma regulamentação fraca. O Governo Federal não se responsabiliza em nada pela execução dos recursos. Ele simplesmente transfere a responsabilidade jurídica, administrativa, institucional, para os municípios executarem a lei. Acho que a lei poderia ter amarrado algumas questões para tentar que o governo federal se responsabilizasse um pouco mais. Não sei se isso seria bom ou ruim, na minha opinião. E, com a história toda da sociedade civil, dos atores políticos envolvidos nisso, começou um outro fenômeno que eu reparei, já como Secretário Adjunto de Cultura: o relacionamento com outros municípios. Foi fundamental aqui em Belo Horizonte. Tivemos bons resultados. Já estamos pagando 98% dos recursos. Mas eu sei que somos um ponto um pouco fora da curva.
[Sharine] É exceção. Sei que a maioria das cidades não está conseguindo executar.
[Gabriel Portela] Exatamente. Fomos muito bem-sucedidos, mas sei que é exceção. Mas uma coisa fundamental nesse processo foi nos apoiarmos em outros gestores de outras cidades. Por exemplo, há o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Municipais de Cultura, que é um fórum que estava parado, estava morto e, a partir da questão da Lei Aldir Blanc, começou a se movimentar. Mas ele não tem um processo de participação muito organizado, é um pouco confuso. Partindo dessa necessidade de trocarmos informação, pensarmos juntos, como gestores públicos de cultura, montamos outro grupo, formado por contatos nossos: “eu conheço o Secretário de São Paulo”. O outro conhece o Secretário não sei de onde. Montamos um grupo de umas doze cidades, a maioria de capitais, e começamos a fazer reuniões semanais desse grupo, super qualificado, para trocar ideias, para fazer análise juntos, para partilhar problemas, para buscar soluções conjuntas. Isso foi fundamental.
Do outro lado, na outra ponta – que é algo que não víamos há muito tempo, principalmente nos municípios menores, talvez -, a sociedade civil estava cobrando os entes locais: “e aí, Prefeito, o que você está fazendo para executar a Lei Aldir Blanc?” “E aí, Secretário de Cultura, o que você está fazendo, o que está mobilizando?” Isso também gerou outra coisa que foi muito interessante: a constituição de comitês locais, conselhos gestores locais, de execução, de implementação da Lei Aldir Blanc. No caso de Belo Horizonte, montamos um comitê. Eram 21 pessoas: dez da sociedade civil, dez do poder público e um representante da Universidade Federal de Minas Gerais, que convidamos também. E construímos todo esse processo dentro deste comitê. Formulávamos a proposta de execução de recursos, o desenho dos mecanismos, o cadastro, o edital, como iria funcionar. Levávamos ao Comitê, debatíamos. Era um processo desgastante, porque a participação não é algo fácil, mas vale a pena porque, de fato, o resultado tende a sair muito melhor. Você sai com um resultado validado, construído junto com a sociedade civil. Só que o tempo que tínhamos era um tempo muito… surreal. Foram 115 dias para receber o dinheiro e fazer tudo, até agora, para terminar de pagar.
Grosso modo, acho que esse é um pouco o trajeto que eu acompanhei. Tem também um outro ponto que é importante, para tentar responder o porquê dessa mobilização toda. Acho que um ponto é o dinheiro. Inegavelmente, é uma questão material. A Cultura está muito acostumada, infelizmente, a orçamentos ridículos, em qualquer âmbito, federal, estadual, municipal. Acho que o setor cultural está muito cansado. Desde o Governo Dilma, tivemos uma interrupção da construção de uma política cultural que vinha sendo bem-sucedida. Já foi um primeiro baque. Quando sai a Presidente, por impeachment, já vem a extinção do Ministério da Cultura. Depois se volta atrás… É difícil manter tantos anos assim.
Por fim, para tentar concluir, uma coisa em que eu reparo, mais geral, mas que acho que também tem a ver com a Aldir Blanc… Você falou do Canclini, da institucionalidade da cultura… Eu tenho a impressão de que um ambiente institucional público e privado, com políticas estruturadas, também se reflete na organização do campo, do setor cultural. Por exemplo, no setor audiovisual, temos uma Agência Nacional, temos uma política que vem de décadas e, na última década, em especial, se consolidou. Tem legislações importantes, tem recursos que hoje alimentam o fundo, que são recursos alimentados pelo próprio setor. Então, você não depende do orçamento da União. Criou-se uma estabilidade – claro, neste momento há uma crise muito grave, está muito complicado. Mas eu sinto que esse ambiente institucional contribui para que o campo também se organize um pouco mais. O audiovisual, dos diferentes setores da cultura, das linguagens, é um dos mais organizados. Há sindicatos muito fortes, associações muito fortes. Não acho que seja a organização mais incrível do mundo, mas eles têm já um histórico. Já têm coisas muito palpáveis onde podem se agarrar, defender e tentar aprimorar. Os outros campos, não necessariamente. Se formos falar da música, por exemplo, o que temos hoje, em termos de políticas federais? Temos a Lei Rouanet, que atende a uma parcela ínfima desse universo. Então, eu sinto que eles têm essa influência. Acho que, quanto mais estruturado for o ambiente institucional da cultura, mais ele ajuda, contribui para a organização do campo.
[Sharine] Sobre duas coisas que você falou: esse grupo de doze cidades foi constituído como um grupo específico ou não, foi algo mais informal?
[Gabriel Portela] Foi uma coisa informal. Montamos um grupo de WhatsApp, convidamos alguns gestores e marcamos uma reunião. Falamos: “vocês topam conversar, cada um fazer um relato sobre o que está pensando?” E foi muito bom. Fomos mantendo isso, mantendo o grupo ativo e mantendo as reuniões. Por muito tempo, toda semana, toda quinta-feira pela manhã, nós nos reuníamos com esses gestores que variavam de secretários de cultura ou diretores adjuntos, dirigentes em cargo de decisão, que estavam tocando a implementação da Lei Aldir Blanc. Brincávamos que acabava sendo um pouco nossa sessão de terapia em grupo, porque o processo todo foi muito angustiante.
[Sharine] Outra coisa que você falou, sobre as reuniões dos fóruns, que tínhamos na época mais forte do PT [Partido dos Trabalhadores] no Ministério da Cultura. Eu trabalho também na Funarte, além de fazer a pesquisa de pós-doutorado na USP. Eu acompanhei muitas dessas reuniões com as classes. Mas a organização agora foi diferente, não foi? Porque essas reuniões partiam do Ministério da Cultura. Era o Ministério que organizava. Agora, não. Agora foi a sociedade civil que organizou. Você consegue falar um pouco mais sobre como foi esse processo, essa organização?
[Gabriel Portela] Desse processo eu não participei proativamente. Eu participei de reuniões, mas não estava muito na mobilização. O Alexandre Santini, sim. Ele se dedicou muito a essa mobilização. Claro, o Santini tem uma relação com a deputada Jandira Feghali, que é a relatora da Lei Aldir Blanc. São do mesmo partido, ele trabalha com ela já há muito tempo. É óbvio que ele é um ator importante, mas que está conectado a um mandato, de alguma forma. Informalmente, ele tem essa conexão com esse mandato. Mas ele, sem dúvida, é um ator, como tantos outros, importante nesse processo. Só uma pequena avaliação crítica desse processo… Foi muito legal porque eles começaram a montar cartilhas sobre “como fazer um edital” para os municípios e para a sociedade civil também se empoderar com essa informação para cobrar seus secretários de cultura, suas secretárias de cultura nessa implementação. Só que havia falas de algumas pessoas que estavam nesse grupo, dizendo que era fácil para o ente local, que tudo era muito simples, que não precisa pedir tal documento, que meia dúzia de servidores resolve tudo. Isso também foi criando uma “quentura” da sociedade civil com o poder público local, que, de fato, estava ali resolvendo as questões com suas procuradorias, com suas controladorias. Você sabe, você trabalha na área pública…
[Sharine] É bem complicado fazer um edital.
[Gabriel Portela] Eu sempre falo: a nossa legislação, o Estado brasileiro não está pronto para lidar com a dinâmica cultural. A lei que se usa para fazer licitação de tapar buraco de rua é a mesma que estamos usando para a Lei Aldir Blanc.
[Sharine] É a mesma lei[2].
[Gabriel Portela] Foi um processo em que essa questão da participação, da mobilização foi super positiva. Mas, às vezes, ela fica nesse lugar só de agitação, mas, na hora que vai cair no conteúdo real da coisa, existe uma discrepância. Isso aconteceu um pouquinho.
[Sharine] Já que você falou disso: quais foram os fatores que mais contribuíram para aprovação da lei e as dificuldades, não só na aprovação, mas também na implementação da lei, na execução.
[Gabriel Portela] Sobre a aprovação, falei um pouquinho no início, esses contextos todos, esses astros que foram se alinhando, a questão da mobilização da sociedade civil, o recurso, a internet, acho que todos esses elementos. Sobre a implementação, posso falar mais detalhadamente. Eu senti bem isso nos últimos meses. Os Estados e Municípios ficaram entregues. O Governo Federal falou: “fizemos a nossa parte, disponibilizamos os recursos, o resto é com vocês”. Isso se evidencia na regulamentação federal. Como eu disse, a regulamentação falava simplesmente: “como vocês vão fazer é problema de vocês. Está expresso que, caso tenham qualquer problema, a responsabilidade é de vocês”. A partir do momento que o Governo Federal não tomou a liderança desse processo, cada um correu para um lado, para resolver do jeito que pôde. Há coisas bobas, como, por exemplo: aqui, conseguimos, com a nossa Controladoria e com a nossa Procuradoria, que não fossem exigidas as Certidões Negativas de Débito, que normalmente se pede. Você sabe, para o poder público repassar o recurso, ele tem que receber a certidão negativa. Conseguimos, aqui, que não fosse cobrada a certidão negativa. É incoerente: a galera já está endividada, há meses. Como vamos pedir a certidão negativa? Mas vários outros municípios e estados pediram. As procuradorias tiveram outra leitura. É bom que os estados e municípios tenham algum nível de autonomia nesse momento, porque cada um conhece o seu território e vai saber a melhor forma de aplicar esses recursos, mas essa falta de entendimento comum sobre questões importantes para um auxílio emergencial, que nunca ninguém executou antes, criou discrepâncias.
Do ponto de vista administrativo e jurídico, um desafio que, na verdade, foi muito interessante, foi tentarmos pensar num repasse de recursos que não fosse na mesma lógica do fomento tradicional. O que estou querendo dizer? O Inciso II da Lei Aldir Blanc é o subsídio para espaços culturais. Isso foi um desafio gigantesco de implementação, porque não havia uma referência anterior em que pudéssemos nos basear, um cadastro desse, com essa lógica de repasse. Tivemos que criar essa lógica do zero, criando critérios. O cadastro não tem a mesma lógica do fomento: “o seu projeto tem mais mérito que o meu”. O cadastro não é isso. No cadastro, ou você tem caraterísticas em que se enquadra ou não tem as características. Para mim, isso evidenciou um pouco o que falo em meu artigo na publicação[3]: quando vimos, com os dados da Secretaria da Fazenda, a quantidade de CNPJs ligados a atividades culturais, que poderiam ser beneficiados por esse inciso, apostamos muito nele. Tivemos um bom resultado, mas muito aquém desses dados que tínhamos captado… O que me provocou, como gestor público, mais uma vez, é conseguirmos de fato pensar formas de nos relacionarmos com esse campo econômico da cultura, que é importante, mas formas que estejam além do fomento, porque o fomento se relaciona com uma parcela específica da área cultural. Acho que isso é um desafio. A questão da participação em si é um desafio. Esses comitês, diálogos com a sociedade civil, toda essa pressão, é um desafio, mas é um desafio positivo. Acho que é isso.
[Sharine] Obrigada! Você trabalhou também no Ministério da Cultura, deve saber explicar a relação entre a Lei Aldir Blanc e o Sistema Nacional de Cultura. De alguma forma, a Lei Aldir Blanc acabou reforçando o Sistema que estava parado já há algum tempo. Ele existe, mas não funcionava muito bem.
[Gabriel Portela] Esse é um debate que apareceu muito durante toda a discussão sobre a Lei Aldir Blanc. Eu entendo que esse debate apareça porque ele traz uma certa lógica de repasse de recursos. Mas eu acho perigosa a narrativa de que a Aldir Blanc contribuiu ou contribui para a efetivação do Sistema Nacional de Cultura. Por que acho perigoso? Porque, para mim, o Sistema Nacional de Cultura estabelece uma lógica institucional. Você tem: secretaria ou órgão de cultura, conselho, fundo. Você tem essa estrutura. Foi positivo o movimento, lá atrás, de o Governo Federal fazer isso. Mas eu acho que falar que o sistema nacional de cultura é isso: é um fundo, é um conselho, é insuficiente. Acho que olharam muito para o SUS, o Sistema Único de Saúde. Mas, quando falamos de saúde pública, quem presta o serviço é o poder público. O poder público coloca os hospitais, os médicos, os postos de saúde, presta o serviço. Quando estamos falando de cultura, quem presta o serviço é a sociedade. É uma lógica diferente. Eu acho que foi positivo esse movimento lá atrás, sim. Acho que ajudou a dar uma estruturada nesse campo público da cultura, nos conselhos etc. Mas não existe Sistema Nacional de Cultura sem política pública de cultura. Quando falamos que a Aldir Blanc está efetivando o Sistema Nacional de Cultura, eu discordo. Como falar em Sistema Nacional de Cultura? Porque eu repassei um dinheiro, então estamos falando de sistema? Não, não estamos. Eu acho que é reduzir muito a lógica do Sistema Nacional. Hoje li um artigo de um colega meu e ele também faz um pouco essa crítica. Todo mundo fala: “é o Sistema Nacional, olha lá!”. Mas, para mim, não foi. Para mim, foi um auxílio emergencial que aconteceu, foi um repasse. Sem políticas nacionais, sem o Programa Cultura Viva, sem o Pronac, sem esses grandes programas e políticas que, historicamente, foram importantes para os estados e municípios, sem isso, não há que se falar em Sistema Nacional de Cultura.
[Sharine] Você falou que vários grupos culturais, vários segmentos, não se relacionam com as políticas públicas para a cultura. Há alguns grupos específicos, como teatro, dança, que já estão mais acostumados com o fomento. Quais são os papeis das políticas públicas para a cultura e do financiamento privado, que sabemos que é muito pequeno no Brasil? Como essas possibilidades se combinam? Como os artistas e profissionais da cultura se relacionam com essas duas fontes de recursos financeiros?
[Gabriel Portela] O Brasil criou uma jabuticaba, que é a Lei Rouanet, o mecenato. Nunca vi mecenato sendo feito com dinheiro público. Sobre a Lei Rouanet, o Juca Ferreira, o ex-ministro, fala que recebeu uma delegação – não sei se ele estava na Inglaterra ou se ele recebeu uma delegação, acho que ele recebeu uma delegação do Reino Unido. Quando ele explicou, acho que para outro Ministro, como funcionava a Lei Rouanet, os ingleses ficaram em choque. Eles falaram: “como assim? O dinheiro é sempre público e a decisão de investimento é privada?” Ele falou: “na Inglaterra, isso não existe”. E estamos falando da Inglaterra, um país liberal. Então, acho que a gênese da Lei Rouanet é um problema para a lógica de fomento privado no Brasil, porque se criou essa ideia de que o privado só se relaciona com o setor cultural porque consegue abater do imposto. O investimento privado na cultura no Brasil é muito baixo, é baixíssimo. Quando só se coloca no lugar de executar a Lei Rouanet, o governo simplesmente está terceirizando o fomento cultural para a decisão completamente privada. Aí temos os resultados que você conhece bem, históricos da Lei Rouanet que conhecemos, como concentração geográfica, por linguagem, por proponente. Há uma concentração gigantesca. No nosso caso, municipal, temos uma equação, hoje, um pouco mais equilibrada. Por que eu falo equilibrada? Temos uma lei de incentivo, sobre o INSS, que é uma lei que funciona muito bem, no sentido da captação. Todo recurso que disponibilizamos é captado praticamente integralmente, ano após ano. Ele tem essa lógica do 100%[4]. Mas temos um fundo municipal de cultura, que é forte também. Hoje eles estão quase equiparados em termos de valores. Nosso fundo gira em torno de R$ 11 milhões de reais por ano, e o incentivo gira em torno de R$ 13 milhões de reais por ano. Então, há um certo equilíbrio entre essas duas lógicas de fomento. O fundo, que deveria ser um mecanismo fortalecido, ainda é muito insuficiente. Conseguimos contemplar só 20% da demanda que recebemos. Por que estou dizendo isso? Porque muita gente fica de fora e muita gente não vai conseguir buscar no privado, porque há projetos em que o privado não tem interesse, ou são manifestações que não vão conseguir se adequar à lógica do marketing cultural que o incentivo demanda. Nos últimos anos, você vê também as empresas que, de alguma forma investiam, cada vez mais diminuem seus recursos, começando pelas estatais. Hoje, os grandes editais não existem mais, nem mesmo no setor privado. Não sei se estou respondendo, mas a participação privada no Brasil é péssima e o setor cultural tem poucas alternativas, porque o fomento direto é escasso. O Fundo Nacional de Cultura poderia ser esse lugar de fortalecimento do fomento direto, mas há anos não é executado. Outras formas de apoio privado são pouquíssimas. A questão, por exemplo, das empresas culturais que podem buscar crédito nas instituições financeiras… São raríssimas as linhas de crédito que, de fato dialogam com o setor cultural. Há alguma coisa no audiovisual, mas eles demandam muito que você tenha, como garantia, bens, imóveis… e sabemos que a grande parte desses microempreendedores não têm essa condição.
[Sharine] Acaba gerando um trabalho informal para o setor, uma economia informal, que não tem o apoio do financiamento público nem do financiamento privado.
[Gabriel Portela] Você já viu aquele trabalho do Observatório da Economia Criativa da Bahia, sobre o impacto da COVID da Cultura? Eles trazem algumas coisas, mostrando quantos dos entrevistados já se relacionaram com incentivo fiscal, com recursos privados e com fomento. Dá um pouco o retrato dessa fragilidade.
[Sharine] Sim. Para terminarmos, então, qual a opinião que os artistas com quem você convive têm em relação às instituições culturais? Como eles se relacionam, não só com as instituições públicas. Entendemos como instituição desde a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo até um ponto de cultura ou uma instituição menor. Qual a relação que os artistas e profissionais da cultura têm com essas instituições no dia a dia?
[Gabriel Portela] Vou tentar responder, começando a falar sobre o poder público, que eu vivo mais no cotidiano. Estamos vivendo um momento muito ímpar também. Talvez se você fizesse essa pergunta para mim dez anos atrás, eu lhe daria outra resposta.
[Sharine] Você pode traçar uma série histórica também. Acho que é bacana, para a pesquisa, uma comparação sobre como era dez anos atrás e como é hoje.
[Gabriel Portela] Acho que o momento em que o Ministério da Cultura, em especial com o Gilberto Gil e o Juca Ferreira, passou a ter a compreensão sobre política cultural do ponto de vista antropológico, a trazer uma abrangência sobre o papel do estado em relação à cultura brasileira, foi fundamental para mudar a chavinha em relação ao setor nas próprias instituições públicas. A partir desse momento, o Ministério, o Governo começaram a entender que indígena faz parte da cultura brasileira. Então, você tem que se relacionar com ele. Você começa a entender que há milhares de pontos de cultura espalhados por todo o Brasil e você tem que se relacionar com eles. Não é se relacionar ditando o que eles têm que fazer, mas dando condições para que eles sigam fazendo o que sempre fizeram ou, se quiserem fazer mais, que possam fazer. Acho que a lógica, a visão do Ministério naquele momento, abre as portas da instituição para que ela se torne mais porosa e que, de fato, dialogue com essas diferentes realidades. Naquele momento, a sociedade civil, o setor cultural, os artistas, os agentes da cultura começaram a se relacionar de uma forma mais positiva, propositiva, porque o poder púbico estava dando condições para isso, condições de participação e condições materiais também. Não existe política pública sem orçamento, sem dinheiro. É só uma grande conversa. Com a extinção das políticas, sinto que as instituições públicas, em geral, estão virando, cada vez mais, um lugar de socorro imediato do fomento: “o que você vai me dar de dinheiro? É isso que tem e eu preciso desse dinheiro”. Eu sinto que vai se perdendo, um pouco, a construção coletiva.
Voltando à conversa sobre o Sistema Nacional de Cultura, acho que sistema tem que ser isso, tem que ser esse ambiente de troca. É o setor cultural que presta o serviço, não somos nós. Temos que dar condições. Eu acho que fomos perdendo essa dinâmica há alguns anos. Não estou falando de Belo Horizonte. Acho que Belo Horizonte está um pouco na contramão do que vem acontecendo. São secretarias sendo extintas por todo o Brasil, fusões de secretarias de cultura. Aqui, o prefeito, na gestão passada, criou a Secretaria de Cultura. Existia uma Fundação e ele criou a secretaria. Então, ele foi na contramão de um movimento. Eu acho que tem também uma questão que, de alguma forma, acaba impactando essas relações todas, que é a onda conservadora que estamos vivendo no país. As bancadas conservadoras que se consolidaram nas câmaras municipais, nas assembleias, no Congresso e, também o setor da sociedade civil que se reconhece em um lugar de extrema direita, de conservadorismo, entendem a cultura como um campo de disputas. Então, o campo cultural fica sob vigília. Qualquer movimento de um órgão de cultura, que há dez anos seria algo tranquilo, como apoiar um projeto, tem repercussão: são feitas denúncias, mobilizam pessoas. Isso também gera uma reação do campo cultural. Não é à toa que as lutas identitárias, cada vez mais, vêm ganhando força, de forma necessária. Mas isso cria também um campo de polarização, de atrito e de falta de consenso, que estamos vendo no país. A essência da política está sendo perdida, que é justamente: “eu tenho uma ideia, você tem outra, mas precisamos conversar para ver como chegamos ao meio do caminho”. Isso está completamente perdido. Acho que esse ambiente do conservadorismo acaba impactando a forma como a sociedade civil se relaciona com as instituições; também impacta o poder público, nas suas políticas, em como temos trabalhado.
[Sharine] Você quer falar mais alguma coisa sobre a Lei Aldir Blanc, sobre o processo, as dificuldades, alguma coisa que você ache importante?
[Gabriel Portela] Não, Sharine, acho que falei bastante [risos]. Tem uma questão… Ainda teremos que fazer muita análise sobre a Lei Aldir Blanc. Acho que vem outra etapa, a prestação de contas, que é um ponto muito sensível, tanto para os gestores locais quanto para a sociedade civil, que vai ter que prestar contas desse recurso. Eu realmente fico muito apreensivo de podermos ter, em um futuro próximo, centenas, milhares de CPFs e CNPJs enrolados por questões de prestação de contas. Aqui, já fizemos esse manual de prestação de contas, fizemos uma live para tirar dúvidas. Já estamos trabalhando nisso para tentar mitigar ao máximo esse problema, que pode ser um problema futuro. Por fim, há um ponto importante, em que possamos falar, talvez, do legado da Aldir Blanc e do impacto da pandemia na cultura. A Lei Aldir Blanc trouxe à tona algumas questões a que o poder público em geral nunca se atentou; a sociedade civil também nunca trouxe a questão de forma mais evidente. Vou citar um exemplo: os técnicos, os profissionais dos bastidores das artes, a turma que está trabalhando com produção de show, teatro, os iluminadores, essa turma bem da área técnica mesmo. É uma galera que nunca se relacionou com o poder público, mas foi altamente impactada pela pandemia porque seu ganha-pão acabou. Normalmente, são profissionais que têm uma renda mais baixa. Então, ficaram em uma situação de vulnerabilidade muito grande.
[Sharine] Normalmente são terceirizados também.
[Gabriel Portela] Exatamente. Trabalham por projeto. Então, não têm seguridade social nenhuma. Eles se organizaram neste momento da pandemia. Em São Paulo houve uma organização, no Rio de Janeiro, aqui em Belo Horizonte. Era um movimento chamado “Salve a graxa”. Eles se chamaram de “o pessoal da graxa”. Eles se organizaram e, a partir dessa organização, dessa demanda, “olhem para nós”, aqui em Belo Horizonte, pelo menos, falamos: “realmente é fundamental dar uma assistência para essa turma”. Uma das categorias, uma das linhas do nosso edital de premiação foi para eles. Só que, agora, é o seguinte: no meu sentimento, essa turma se conectou. Eles se entenderam como atores fundamentais nessa cadeia produtiva da cultura e vão seguir demandando. Então: “beleza, fizemos a Aldir Blanc, mas e agora? E ano que vem? Queremos formação. O que vocês estão pensando sobre formação? Queremos nos capacitar”. Acho que a Aldir Blanc e a pandemia geraram algumas provocações no poder público, que eu acho que vão nos forçar, de uma forma positiva, a ter que repensar algumas formas de relacionamento com a área cultural. É um ponto importante. Vamos ver como vai se desenrolar, mas acho que é um ponto que pode gerar coisas interessantes.
[Sharine] Agradeço muito sua participação no projeto. Foi fundamental.
[1] Portela refere-se ao livro Como anda a Lei Aldir Blanc? (FEGHALI, 2020)
[2] Ambos se referem à Lei 8.666/1993, na época utilizada para casos de contratações no serviço público, substituída pela Lei 14.133/2021.
[3] Portela refere-se novamente ao livro Como anda a Lei Aldir Blanc? (FEGHALI, 2020).
[4] Portela refere-se ao fato de 100% do valor total dos projetos serem pagos com recursos de renúncia fiscal.