Canclini na Cátedra
Entrevista com Lia Calabre. Realizada presencialmente, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (RJ), no dia 18 de outubro de 2023
Sharine: Obrigada pela participação. Você já vem acompanhando o nosso trabalho. Já participou de eventos relacionados à pesquisa. Eu expandi um pouco a pesquisa que vinha fazendo antes. Estava falando somente com articuladores da Lei Aldir Blanc e com seus beneficiários. Mas foram surgindo tantos outros assuntos, nas entrevistas e nas conversas, que resolvi expandir um pouco os assuntos para tentar entender como as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo podem influenciar ou não as estruturas do Ministério da Cultura, as políticas culturais, de uma forma mais ampla. Como você já sabe, não estou trabalhando com o texto da lei. Estou trabalhando com a articulação social e com as percepções que as pessoas têm a respeito das leis e das políticas públicas. Como você é especialista no assunto, e estou expandindo também para este campo dos pesquisadores, não havia como não conversarmos. Para começar, gostaria de perguntar sobre sua trajetória na gestão cultural e a relação que teve com a Aldir Blanc.
Lia: Sou Lia Calabre. Na verdade, Lia Calabre de Azevedo Félix. Mas Lia Calabre, de Lattes e de produção. Minha formação é em história. Eu cheguei ao Governo Federal, na área pública, na área de políticas culturais, em 2002, através de um concurso da Fundação Casa de Rui Barbosa. Agora sou aposentada, mas fiz parte do quadro. Foi quando Mário Machado decidiu criar o setor de políticas culturais. Era um concurso para o conjunto das áreas de pesquisa e para uma nova área que não sabíamos exatamente o que era, com duas entradas: política cultural e cultura política. Foi assim que eu cheguei ao campo das políticas culturais. Em 2002, era um campo muito novo, com uma produção muito pequena. Era um pouco inspirado nas ações francesas. Um pouco do que tínhamos de memória eram as ações do Mário de Andrade, da Marilena Chauí, com muito mais dúvidas do que com processos de institucionalização e estabelecimento. Havia uma encomenda do Mário Machado, que era a de recuperar, a de promover pesquisas sobre as políticas culturais no Brasil, preferencialmente as contemporâneas – eu acabo incorporando a discussão de 1930 até hoje – para que, de alguma maneira, pudéssemos consolidar e fornecer ao Ministério da Cultura, a partir de suas vinculadas (a Fundação Casa de Rui Barbosa é uma vinculada do Ministério da Cultura), a possibilidade de produção de informações, de discussões teóricas, de uma inserção um pouco mais confortável na discussão sobre políticas culturais. Ao longo da gestão de Francisco Weffort, foi tratada muito pontualmente, em algumas publicações, mas não havia nenhuma discussão e nenhum aprofundamento. Então, fizemos essa trajetória toda… Tivemos a chegada do Governo Lula, do Ministro Gilberto Gil e toda essa discussão sobre a institucionalização, na área federal, com a criação do Sistema Nacional de Cultura. Há a questão dessa institucionalidade, que se desdobra para estados e municípios a partir do Sistema Nacional de Cultura. Os elementos que compõem o Sistema foram implementados em ordem um pouco inversa, no que o cotidiano permite. Tivemos a Primeira Conferência Nacional de Cultura. Eu participei da Conferência. Depois houve a posse do Conselho Nacional de Políticas Culturais, que é o segundo pé nesse processo de elementos formadores do Sistema. Há a própria discussão do Sistema, sistemas de formação, grupos de trabalho. De alguma maneira, essa discussão sobre o fomento, o fomento direto, a reformulação da Lei Rouanet, a criação de um fundo específico, do Fundo Nacional de Cultura como fundo específico do Sistema, aconteceu nesses anos, mas não se efetivou. É muito interessante perceber esse processo de idas e vindas… O Sistema é aprovado, mas a regulamentação não sai, temos a crise com o Governo Dilma, estava no momento de fazermos a revisão do Plano Nacional de Cultura (em 2010, tivemos o plano), tivemos todos os retrocessos, o golpe contra a Presidenta Dilma, as tentativas de desmonte, até que efetivamente houve a extinção do Ministério e a transformação em uma Secretaria, a pandemia, que era algo absolutamente impensável, a articulação da sociedade civil e a possibilidade de exercitar essa descentralização de recursos massiva, na pandemia, com a Lei Aldir Blanc. Essa é minha trajetória mais ampla. Agora vamos conversar pontualmente.
Sharine: Agora em 2023, com a volta do Ministério da Cultura, a situação de fomento à cultura e às artes no Brasil mudou em comparação com o que vinha ocorrendo desde 2016, 2017. O que teve de continuidade e de mudança em relação às políticas públicas anteriores, incluindo todo o percurso de que você estava falando?
Lia: Na verdade, estamos em um momento em que, tudo leva a crer, vamos construir a virada. O que fizemos em 2003, 2004, 2005 foi construir um projeto de futuro: a estruturação do sistema, a criação e a implementação do Plano Nacional de Cultura… Olhávamos para uma institucionalidade para frente, visando ao futuro. O Ministério, a conjuntura levaram a uma opção que se dá de maneira mais lenta, que é a constitucionalização do processo. Se feito por leis comuns, ele estaria implementado em dois anos. Entretanto, seria muito mais frágil. Se, por um lado, podemos ter críticas à morosidade do processo, ao excesso de burocracia, por outro lado, foi isso que protegeu no período de desmonte do governo anterior. A cultura foi altamente atacada. Mas desmontar o sistema e desmontar a estrutura institucional tinha um custo. Na verdade, precisava ir à votação no Congresso. Então, tinha um custo político, tinha um custo social, um conjunto de custos. Na estratégia dos governos de desmonte, às vezes você não estingue a lei, mas sufoca os setores. Você não dá recursos, você esvazia de pessoal. De alguma maneira, faz com que os processos ou desapareçam ou, na verdade, fiquem reduzidos a um mínimo, aumentando a escassez de recursos humanos, recursos financeiros. Foi isso que vivemos. Entretanto, o arcabouço institucional, que estava constitucionalizado, ficou de pé. É uma contradição interessante. Muitos de nós sempre ficamos muito preocupados com o tempo, com a morosidade. É um projeto para um governo ou é um projeto para dois governos? Ele se estendeu a quatro gestões e, no meio da quarta gestão, não estava completamente estruturado. Isso é um risco. Entretando, se pensarmos nos prós e nos contras, foi isso que nos protegeu e que permitiu, por exemplo, que vários conselhos fossem extintos, mas o Conselho Nacional de Políticas Culturais não fosse, ainda que tivesse dificuldades de operacionalização; que o governo não fomentasse a adesão ao Sistema Nacional de Cultura, mas, se os municípios e estados quisessem, eles poderiam aderir, o Sistema estava vigente. É interessante porque tem uma contradição: a adesão ao Sistema Nacional de Cultura continuou ainda que o governo ignorasse e fingisse que o sistema não existia, não andasse com a regulamentação… Vai e deixa… O plano vence e você usa uma série de artifícios, como pandemia, isso e aquilo, e prorroga o plano. Mas você não pode dizer que ele não existe, que daqui para frente ele não vai existir. Você tem que fazer uma prestação de contas, tem um compromisso jurídico, um compromisso público para resolver. É interessante: algumas coisas não têm só o seu lado bom ou só o seu lado ruim. É interessante que parte dessa burocracia tenha gerado uma morosidade. Que muitas vezes pensamos: “puxa, perdemos o timing da política”. Perdemos em parte. É claro que seria muito mais fácil fazer algumas coisas em 2010. Elas foram menos fáceis em 2014. E menos fáceis ainda em 2016. Em 2010, estávamos lá no auge da discussão, com todo mundo mobilizado. Teria sido muito mais fácil. Entretanto, essa morosidade nos deu alguma segurança jurídica e nos permitiu nos manter. Você tinha um projeto: em partes, foi implementado. Por exemplo, teve o Plano Nacional de Cultura. Agora, precisamos repensar o desenho do plano: no que ele foi efetivo, no que não foi efetivo. Onde se errou na mão? Ele ficou muito amplo, muito burocrático, difícil de medir? Criou uma série de impossibilidades de execução. Ele se tornou um plano de difícil execução. É excessivamente intersetorial. Há uma série de questões que estão postas que não são do campo da cultura, que a gestão da política ou do projeto não é do campo da cultura, como algumas questões ligadas à formação, cuja gestão, cuja responsabilidade é do Ministério da Educação. O Ministério da Cultura pode sugerir, pode até propor parceria, mas ele não determina. Quem determina é o Ministério da Educação ou o Ministério das Comunicações. Nosso plano propunha compromissos para além do Ministério da Cultura, propunha compromissos para o Governo do Estado, propunha compromissos para o Governo do Município. Não podemos perder de vista a questão da autonomia dos entes. De alguma maneira, isso era necessário, mas também dificulta a implementação e o acompanhamento do plano porque você precisa ter o encaminhamento em todos esses possíveis coautores, coparticipes desse plano. Chegamos a um momento em que é fundamental olhar para o plano, avaliar o modelo, o desenho, a aplicabilidade e a efetividade das metas. Quer dizer, que plano construímos? Devemos manter planos decenais? É a primeira pergunta. Estamos no futuro, mas não com tudo o que estava proposto para esse futuro implementado. Então, precisamos, neste momento, olhar um pouco para o que frutificou, avaliar os desenhos. Acho que o Ministério precisa ter um pouco o cuidado de olhar para essas experiências que se efetivaram no território, para aqueles parceiros que seguiram o que o governo federal parou, estados e municípios. Que inovações eles implantaram naquele desenho original que podemos incorporar a uma recomendação federal? Municípios e estados avançaram e aperfeiçoaram a discussão sobre o sistema, o plano. Acho que é um momento em que precisamos fazer um balanço, olhar com cuidado e com delicadeza o avanço no território, principalmente naqueles estados e municípios que resistiram, e muitos resistiram. O que a Lei Aldir Blanc nos mostra? O que ela ressaltou? Que muitos municípios continuaram trabalhando na questão do sistema, continuaram trabalhando na questão da participação social, continuaram trabalhando na questão dos conselhos. Esses conseguiram operar melhor com a chegada dos recursos. Tinham canais abertos na comunicação com a sociedade civil, conseguiram identificar rapidamente os beneficiários, conseguiram ter uma adesão mais efetiva aos editais, conseguiram distribuir regionalmente melhor os recursos, conseguiram fazer uma cobertura mais ampliada para o conjunto dos agentes culturais declarados. É muito interessante. Minha avaliação é que estamos exatamente no momento intermediário. Não devemos ainda descartar ou tomar como passado uma série de proposições. Em 2003, em 2004 não avançamos em uma série de questões. Nesse diálogo com a sociedade civil e nesse fomento direto, o estado ainda tem muitos impedimentos burocráticos no atendimento efetivo ao cidadão. Não conseguimos um desenho, um modelo, mesmo pensando na simplificação da Lei Cultura Viva. O Brasil não operou isso. Discutimos, aprovamos a lei e não operamos. É um outro desenho de operação que precisa ser implementado, até porque podemos pensar em muitas inovações, mas a área política pode barrar todas as nossas inovações; a área de controle, de prestação de contas. Precisamos combinar com os outros os processos inovadores. Sei que não é o caso, mas começam a aparecer alguns trabalhos avaliando o processo de prestação de contas da Lei Aldir Blanc e o que percebemos é que teremos muitos problemas. Na verdade, um porcentual significativo de municípios e, até mesmo de fazedores de cultura, não estava preparado para operar com recursos públicos.
Sharine: Como aconteceu com os pontos de cultura…
Lia: Exatamente. Mas é isso, um processo de aprendizagem. Vamos precisar, por parte dos estados, em especial, e dos municípios também, de um processo de sensibilização dos órgãos de controle. Senão, teremos uma condição massiva, porque [o percentual] está batendo em 40%, 50% ou 60% de reprovação de prestação de contas. Muitas vezes, é coisa simples. Os governos federais, os governos estaduais precisam aperfeiçoar as formas da chegada dos recursos para que eles possam ser acessados pelos fazedores de cultura. Precisam criar estruturas e canais de acompanhamento desses projetos, de assessoramento, de alerta sobre a prestação de contas. Como recebemos, de muitos órgãos de controle: “sua prestação de contas terá que ser encerrada em 30 dias”. É isso. Tem [que haver] um grande processo de formação e de qualificação desses agentes culturais, por mais difícil que isso possa parecer, porque você interfere nos modos de ver, nos modos de fazer, nas práticas cotidianas e comunitárias. A chegada dos recursos aos lugares pode ser desagregadora. Tem um conjunto de delicadezas que precisam ser tratadas. O que não devemos permitir é que a possibilidade da chegada do recurso para outros grupos sociais, para outras camadas, acabe se transformando em um processo quase punitivo porque eles não têm as informações e eles não trabalham com as normas, com os padrões mais rígidos que o estado impõe para outros segmentos da sociedade. Teremos que aprender, na cultura, o que talvez outras ações das áreas sociais já praticam. Na verdade, precisamos criar outros desenhos dos fomentos, que não sejam os que, tradicionalmente, nós utilizamos na cultura. Temos, por exemplo, o Bolsa Família… Precisamos pensar em programas que sejam de fomento, mas que tenham essa sensibilidade sobre o que é, efetivamente, essa contrapartida dessa sociedade e em que nível. Não de uma maneira burocrática, como uma prestação de contas de um projeto financiado em outras bases e voltado para outros segmentos da população. Estamos em um momento em que projetos anteriores não podem ser descartados, mas em que já temos bastante evidência daquilo que não dá certo. Já acumulamos evidências. Já temos muitos problemas, e não adianta não olharmos para os problemas. Temos que avaliar os problemas para pensar em soluções diferenciadas. A Lei Aldir Blanc foi um exercício disso, mas ainda está longe.
Sharine: Você acha que a Aldir Blanc 2 e a Paulo Gustavo influenciam, de alguma forma, os outros órgãos do Ministério da Cultura? Essas duas leis estão bem no centro do Ministério da Cultura. Você acha que elas podem influenciar o modo de funcionamento da Funarte, do IBRAM, até mesmo em questão de sobreposição [de atribuições]?
Lia: É muito interessante e muito confuso. Hoje estava conversando com o Guilherme Varella. Ele usou uma expressão de que gostei muito. Ele falou que o Ministério da Cultura sempre operou, ele e as vinculadas, na lógica da escassez. Nunca tivemos recursos. Operávamos assim: conseguíamos uma emenda parlamentar, conseguíamos um dinheirinho daqui, um dinheirinho dali, íamos fazendo as parcerias. De repente, nós nos vimos operando na abundância. Não sabemos operar na abundância. Não temos condições de operar. Eu achei perfeita essa frase do Guilherme. Realmente é isso. O crescimento desordenado também não é bom. Ele pode gerar resultados tão ruins que a gente ande para trás mais do que a gente imagina. O que verificamos com a questão da chegada da Paulo Gustavo? Muitos municípios e estados ainda estão sem conseguir resolver as questões da prestação de contas da Lei Aldir Blanc. Os beneficiários irão se repetir. Haverá novos beneficiários e beneficiários que irão se repetir. Alguns desses beneficiários estão por um triz para ficarem impedidos de usar recurso público porque não resolveram sua prestação de contas. É claro que é urgente. Não podemos desperdiçar recursos em uma área que sempre foi muito carente de recursos. A grande discussão sempre foi a concentração de recursos, lei de incentivo, eixo Rio-São Paulo, o que não é só isso: é Centro – Zona Sul de São Paulo, Centro – Zona Sul do Rio. Na periferia de São Paulo, na periferia do Rio, a Lei Rouanet nunca chegou. A pessoa fala assim: “a cidade do Rio de Janeiro”, “não, não, não”, “a cidade de São Paulo”, “não, não, não”. Em Cidade Tiradentes, o recurso não chega. Ele chega à avenida Paulista, sustenta os centros e equipamentos culturais da Paulista, mas ele não sustenta as atividades do hip-hop e da literatura alternativa. No Rio também não. Aos coletivos da Zona Oeste, aos coletivos das favelas, os recursos não chegam. Você tem um ou outro que, às vezes, pula o fosso e consegue um recurso. Temos problemas dos dois lados: temos problemas nas estruturas públicas, municípios e estados, que não estavam preparados. Muitos nunca tinham operado com a chegada de recursos públicos. Por outro lado, há um conjunto de atores sociais que também nunca tinham acessado recursos públicos. Alguns haviam acessado, mas, como herança do programa Pontos de Cultura, ficaram com muitos problemas nos processos de prestação de contas. Já eram pessoas jurídicas, não eram pessoas físicas. Naquele momento, no mínimo, precisavam ter criado uma estrutura e, mesmo assim, houve muito problemas. Então, chegamos com um volume de recursos muito grande, que vamos precisar entender, vamos precisar estudar. O que começamos a ver, por exemplo, é que alguns municípios, que aportavam alguns recursos, tiram os deles porque tem um recurso federal chegando. Eles falam: “Ah, então eu posso deslocar o meu orçamento”. “Como não tenho condições de operar com tudo isso, esse dinheiro já é muito, não ponho orçamento”.
Sharine: Até porque sabemos o quanto é difícil gastar o dinheiro, não é?
Lia: Exatamente. O sujeito fala: “não coloco [recursos]”. Hipoteticamente: eu operava com R$5mil, chegaram mais R$15mil. Eu não sei como operar com R$20mil. Já que os R$15 mil que chegaram são [do Governo Federal], vou tentar operar o máximo com esses R$15 mil, e esses R$5 mil vou levar para uma outra área ou só vou tirar desses R$5 mil aquilo que, burocraticamente, eu preciso para manter a máquina e que não posso tirar desses R$ 15 mil. Mas toda a atividade finalística sairá dos R$ 15 mil. Se pensarmos, na verdade, é isso que está acontecendo, que vai acontecer. Então, temos muitos problemas. Alguns dos municípios estão reaprendendo ou aprendendo, na verdade, treinando equipes novas. Como era lei emergencial, como era pandemia, ouvimos vários relatos: alguns municípios deslocaram servidores de outras áreas, daqui e dali, para fazer força-tarefa. Mas será uma força-tarefa para sempre? Temos toda uma discussão da necessidade do fortalecimento da área da cultura dentro das administrações estaduais, municipais e federal. A área federal, a área da cultura, o Ministério e suas vinculadas, está extremamente esvaziada. Então, a operação… A Funarte tem uma capacidade fantástica de operar, o IBRAM também tem capilaridade, tem diálogo. Entretanto, não tem gente para operar. Tem o potencial, mas não tem a capacidade. Todos nós temos um lastro, uma história, um potencial, mas estamos desprovidos de capacidade, principalmente de recursos humanos. Não adianta chegar o recurso financeiro, se você não tem os recursos humanos para operar. Essa é uma questão muito séria no Governo Federal. Mas é uma questão também para os estados e municípios. Você não vai manter uma equipe para operar R$ 15 mil se você só tem R$ 5mil. Mas se você, seguidamente, neste ano, no outro ano, tem R$ 15mil, vai precisar aumentar a equipe. O que percebemos quando fazemos estudos de vários municípios do estado [do Rio de Janeiro] é que todos precisaram contratar servidores temporários para trabalhar com os projetos, para entrar, para criar, para fazer isso, fazer aquilo, mas sempre da forma precária. Então, chega um volume de recursos que é fundamental, sem dúvidas, para esses trabalhadores que ainda estão com a vida precarizada, que saíram da área de cultura. As atividades estão sendo retomadas pós-pandemia, nem tudo voltou. As coisas não voltaram da mesma forma. As práticas culturais das pessoas mudaram. A forma com que os sujeitos conseguiam se sustentar, algumas delas não existem mais. Na verdade, há um volume gigantesco de problemas. Não podemos perder de vista outras questões, não só a chegada dos recursos via lei. Você precisa preparar a chegada desses recursos. Você precisa fortalecer. Algumas pessoas vão dizer: “é no tensionamento. Aí tem recursos e você obriga o prefeito a ampliar a Secretaria.” Em partes. Concordo, as três leis colocam um foco de luz sobre o fazer cultural que muitos municípios e muitos prefeitos nunca enxergaram. Colocam o foco sobre a área e isso é muito importante. Mas acho que uma preocupação prioritária é: como fazer tudo isso sem penalizar os sujeitos na ponta.
Sharine: Apesar dessa dificuldade, teve 98% de adesões [à Lei Paulo Gustavo]. A que você atribui?
Lia: Acho que à escassez de recursos na área e à pressão da sociedade civil.
Sharine: À pressão social…
Lia: Exatamente. O tempo inteiro nós vimos vários movimentos: “cadê o planejamento da Lei Paulo Gustavo?” As comunidades de produtores e fazedores de cultura, em geral, estão bastante mobilizadas, pressionando as prefeituras e pressionando o governo do Estado a resolver a questão para operar com a Lei, dada a histórica escassez de recursos na área.
Sharine: Há muitas prefeituras, ou de direita ou que não têm estrutura… Mesmo assim, elas estão aderindo a essa lei.
Lia: Sim, há uma pressão social muito grande. Há até um trabalho que vai ser apresentado agora sobre o Mato Grosso. Tanto o governo do estado quanto a prefeitura, nenhuma deles é de esquerda. Mas houve uma repercussão social muito grande da chegada dos recursos. Essa não é a prioridade deles, mas eles também se deram conta de que é uma área que tem demanda social. Se tem demanda social, eles, no mínimo, precisam responder. Ainda mais se tiverem a pretensão de continuar no governo ou se candidatar a outras coisas. Na verdade, as coisas se movem pelos embates e pelas contradições. Mas é preciso que o governo federal, que os planejamentos para o futuro, que as parcerias que o governo federal vai criando, pensem em suportes de formação, tanto para secretarias quanto para a sociedade civil, pensem em processos de acompanhamento não só na hora de fazer um projeto, mas de acompanhamento intermediário e periódico para evitar que as pessoas sejam tão punidas ou que saiam da área da cultura para sempre.
Sharine: Desiludidas…
Lia: Fiquem completamente desiludidas porque todas as tentativas, ao final, terminam sendo penalizadas. Agora, há uma mobilização muito grande dos fazedores de cultura, articulados em rede, fazendo uma pressão sobre o governo.
Sharine: Muitos desses articuladores, hoje, estão no governo. Como você acha que isso influencia ou não?
Lia: Eu acho que tem muitos. Mas a rede cresceu muito. Sem dúvida, isso influencia. São sujeitos que têm a capacidade de ouvir e de dialogar, e isso é fundamental. O governo de hoje, do presidente Lula, se propõe a ser um governo de discussão e disputa social ampliada. Então, precisamos ter nos postos pessoas dispostas a ouvir. Elas precisam estar dispostas a ouvir. Elas precisam estar dispostas a dialogar com as escutas. Mas também precisamos que essa escuta se transforme em ação para resolver. Se você tem um grupo muito pequeno e a grande maioria está atuando na escuta, quem faz? Essa é uma pergunta. Você precisa ouvir e atender, ouvir e atender. Precisamos do efetivo fortalecimento do Ministério e do conjunto das vinculadas. Precisamos de concurso. As pessoas precisam chegar, elas precisam ser treinadas. Elas precisam aprender também a trabalhar com o campo da cultura. Não é porque você passou no concurso que está capacitado para a ação. Depois de tantos anos na área pública, estamos cansados de saber disso. O sujeito chega e fala “eu não conheço nada disso”.
Sharine: Eu mesma cheguei assim. Fomos aprendendo na prática.
Lia: Exatamente. Então, precisamos dessa chegada agora porque precisamos não perder esse conhecimento desse grupo que daqui a pouco vai sair. Precisamos ampliar a proposta de que a gente tenha um Sistema Permanente de Fomento Aldir Blanc. Então precisamos ter gente que opere com o Sistema Permanente de Fomento Aldir Blanc.
Sharine: Para terminarmos, vou juntar duas perguntas e, depois, há uma terceira. Sabemos que esses mecanismos ajudam, mas não resolvem a precariedade do setor. As pessoas não têm aposentadoria, não têm renda fixa. Como você acha que as políticas públicas podem, de alguma forma, atuar nisso. E como podemos ampliar o conhecimento dessas políticas públicas para evitar situações como a que tivemos no governo Bolsonaro. Por exemplo, havia pessoas falando sobre a Lei Rouanet sem saber de fato o que é, sem conhecê-la. Então, essas duas coisas: como diminuímos a precariedade na cultura e como ampliamos esse conhecimento?
Lia: Na verdade, diminuir a precariedade é quase andar na contramão do que se tem feito em relação ao trabalho. Vivemos tempos de precarização absoluta do trabalho. Uma pessoa, outro dia, me contou – originalmente era metalúrgico, hoje em dia é taxista – que foi à empresa, fez um teste, é um soldador de primeiríssima, e a empresa ofereceu a R$1.400,00. Ele falou: “é impossível, não sobrevivo com este salário, isso não paga nem a prestação do meu carro do taxi”. Aí as pessoas fizeram para ele uma proposta e falaram assim: “mas, se você esperar um mês, talvez possamos pagar um pouco mais”. Ele falou não… Então, temos, na verdade, uma mentalidade de precarização do conjunto das áreas. O que precisamos é trabalhar junto à seguridade e pensar efetivamente qual o perfil. Por exemplo, no país, estamos avançando em relação à cobertura da aposentadoria. Avançamos na aposentadoria rural, fomos avançando no reconhecimento de um conjunto de trabalhos. Então, o trabalho intenso a ser feito é no reconhecimento dessas profissões, para que, de alguma maneira, elas passem a constar nas nossas estatísticas mais efetivamente e, talvez, criar sistemas previdenciários intermediários, como você tem para o microempreendedor, para a área da cultura, que seja adequado, por exemplo, à sazonalidade, à intermitência. Mas sabemos que isso é muito difícil. São poucos os países no mundo que têm. A questão é que alguns têm uma cobertura de maior qualidade e maior eficácia que a nossa. Quais são? A Lei de Intermitência francesa. Quanto à questão de como conseguimos combater, na verdade, as fake news… A área cultural sempre foi muito impregnada por preconceitos: “artista é malando”… Começamos a pensar: as atrizes no começo do século XX eram todas vistas como prostitutas, ainda mais sendo mulheres neste campo de trabalho. Os “caras” eram todos malandros. Então, trazemos uma certa tradição… A não ser os mais consagrados atingem o ápice. Há uma certa desconfiança: trabalhar com cultura e arte não é uma coisa muito séria.
Sharine: Não é trabalho…
Lia: As pessoas não conseguem enxergar que aquilo que ocupa o seu tempo livre, seja de que estilo for, na sua grande maioria, é fruto de trabalho de trabalhador da cultura: a música que ele ouve, o instrumento que ele gosta de tocar, a roda de capoeira que ele faz…. Ele vai dançar… Aquela comida diferente, aquele artesanato… É tudo fruto de trabalho da cultura boa parte daquilo que ocupa o lazer dele, aquilo que ele vê na televisão, aquilo que ele olha na internet, nos blogs… O TikTok, na verdade, é um exercício de teatralização, de música. Então, tem cena, tem figurino, tem tudo. A prática cultural está tão presente no dia a dia que o sujeito não consegue enxergá-la como fruto de trabalho… Está porque está… As pessoas adoraram ouvir música, ver filmes durante a pandemia. A cultura povoou a vida delas, mas elas não ficaram tão sensibilizadas com a falta de trabalho, a fome que passou a assolar a vida do conjunto dos artistas, daqueles músicos que venderam seus instrumentos de estimação para pagar o aluguel – e vimos muito isso. Aqueles sujeitos que foram fazer outras coisas porque precisavam pagar as contas… Mas elas consumiam avidamente esse conteúdo cultural que circulava nas redes. Então temos uma contradição. É quase como se fosse dado. Mas isso é trabalho, isso é fruto de trabalho, só existe porque é fruto de trabalho. Quanto mais conseguirmos envolver a população na discussão do direito à cultura e mostrar para ela que, quando ela consegue exercer determinadas práticas, ela está exercendo um direito garantido constitucionalmente, quando pudermos trazer esses sujeitos para mais perto da compreensão desse fazer cultural, quanto mais esse fazer for apropriado, conseguiremos avançar no processo de sensibilização das autoridades para a questão do trabalho, sensibilizar os sujeitos sobre a importância do fomento. Construir um hospital é muito importante, mas construir um centro cultural também é fundamental. É aí, na verdade, que ele vai poder fazer novos aprendizados, vai poder ter o lazer. Existe uma complexidade, uma dificuldade de o sujeito olhar a área da cultura numa cadeia produtiva. Ele olha para o carnaval e não consegue enxergar todo o trabalho que há ali, desde a sondagem da ferragem dos carros à elétrica, todos os trabalhos, o trabalho da costureira… Depois tem aquela coisa fantástica. Mas aquilo é um somatório de fazeres que forma aquele grande espetáculo que está na avenida. Mas as pessoas não conseguem pensar na indústria, na produção do trabalho, na cadeia produtiva do carnaval, por exemplo, pensando nas nossas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, de Parintins, que fazem espetáculos fantásticos. Aquilo, na verdade, é uma cadeia de trabalho que começa assim que o carnaval termina, no desmonte, no que se aproveita, no que não se aproveita. Os barracões não param.
Sharine: Para terminarmos, é um exercício de fabulação. Como você acha que deveria ser, idealmente, a política cultural no Brasil.
Lia: Não sei… Não sou muito boa de cenários. Mas acho que ela precisava ser diversa, ela precisava de espaços efetivos onde as pessoas pudessem conhecer a riqueza e a potência, que elas pudessem ouvir vários sotaques, que elas pudessem ver vários fazeres, que elas pudessem se encantar com a diversidade das cores, das formas. Temos uma produção cultural fantástica, rica em formas, em cheiros, em cores, em expressões culturais nas suas mais diversas manifestações. Que as pessoas pudessem efetivamente se permitir e se encantar com a diversidade que nos conforma e que nos enriquece, que nos abre a possibilidade de pensar o mundo mais diverso, mais efetivo, mais democrático, que se permita admirar a beleza e a diferença do outro. Acho que é isso.
Sharine: Que lindo. Obrigada!