Canclini na Cátedra
Entrevista com Maria Minera. Realizada presencialmente, em um café em Coyoacán, Cidade do México (México), no dia 05 de março de 2024
Sharine: Antes de começarmos, gostaria de conhecer sua trajetória na cultura.
Maria: Bom, acho que parte de minha trajetória tem a ver com ser filha de gente de teatro. Meus pais, os dois, têm feito teatro desde os anos 1970. Teatro para crianças, no início, e, depois, teatro para adultos. Os dois escrevem teatro, dirigem teatro. De alguma maneira, sempre estive no mundo da cultura. Depois, estudei história da arte. Na realidade, não me dediquei à academia. Não sou acadêmica, não pertenço a nenhuma instituição. Mas há 26 anos escrevo sobre artes visuais e teatrais no México. Escrevo crítica de arte, digamos, há muitos anos e, há oito ou nove anos, comecei a pensar e escrever mais sobre as políticas públicas voltadas à cultura, as instituições culturais, os programas de cultura. Cada vez mais, dedico-me a isso e às complicações de um país como o México, a mudança sexenal de governo e a falta de continuidade nos programas… Sem fazer isso a partir da academia, sinto que me especializei um pouco mais no que acontece e em como se maneja o dinheiro cultural em um país, o México, com duas características que me parecem fundamentais e que são semelhantes às de outros lugares. Claro que uma é a centralização. Ou seja, a maioria das coisas está na Cidade do México. Você foi a Xalapa [Veracruz] e viu que não é exatamente assim. Xalapa é uma exceção porque também tem a Universidade, que é importante. Mas, em geral, fora dos grandes centros, Guadalajara, Monterrey, Xalapa, quase tudo se concentra na Cidade do México. Os orçamentos, os espaços para as artes, os museus, os teatros. A outra característica complicada é que é um país muito dependente do estado. Começamos a ver, há alguns anos, quinze anos, uma presença mais forte da iniciativa privada, investindo em cultura. Sempre houve, digamos, uma atitude comercial, mas somente há pouco tempo, começamos a ver, realmente, o binômio estado e iniciativa privada, governo e iniciativa privada, fazendo coisas juntos. Mas, por muito tempo, até hoje, em parte, os artistas e as instâncias dependem totalmente do estado.
Sharine: Há quantos anos, mais ou menos?
Maria: Isso vem de toda uma vida… Quando mudou? Eu diria, por exemplo, que nunca houve e há uma luta há muitos anos para que haja uma lei de mecenato, de modo que seja muito mais fácil para que a iniciativa privada apoie alguma exposição, museu, teatro… Começo a ver alguns programas, como os chamados EFIARTES [estímulos fiscais para as artes], e isso tem, no máximo, quinze anos. Ou seja, é bastante recente. Mas, por exemplo, os museus públicos, que são a maioria… Agora há alguns museus particulares, mas, por muito tempo, não havia. Os museus públicos recebem dinheiro privado, mas isso é quase ilegal…
Sharine: Como recebem o dinheiro?
Maria: Por exemplo, o Museu Tamayo, para fazer o catálogo de uma exposição, pede um apoio a um banco e pede como se fosse uma pessoa porque não há canais legais para que isso aconteça pelo governo. Então, os diretores de museus e espaços têm que inventar modos de receber esse dinheiro. Não está estipulado, não existe. O Tamayo é um exemplo ruim porque tem um patronato. Eles são os que recebem dinheiro. É possível que o patronato esteja fora do museu, quando, na realidade, é um museu completamente público, 100% público. Os museus, na Cidade do México são públicos, exceto Jumex. Entre os grandes museus, acredito que seja o único. O Museu Franz Mayer, de desenho industrial, é privado. Mas os demais são públicos e têm que inventar, ou seja, não tem havido vontade de criar leis que permitam o investimento misto nas artes. Então, o que ocorre é que devem estar sempre inventando modos de receber o dinheiro para que não passe por aqui, por ali… Para mim, isso define, absolutamente, o que é a cultura no México, que esteja centralizada e que seja, em praticamente 90%, um desenvolvimento estatal. Isso marca a cultura perfeitamente. Além disso, tem gerado dependências que, em um sentido, são desejáveis. Por exemplo, o famoso FONCA (Fundo Nacional para a Cultura e as Artes) agora foi extinto. Alguns dos apoios permanecem com outros nomes, mas foi extinto. A sensação é a de que há muitas atividades que quase não poderiam ser feitas de outro modo. Por exemplo, penso na poesia, em algumas artes muito marginais. Quase não se pode imaginar que vivam por si mesmas, ou seja, de vender livros. Então, o apoio do estado tem sido essencial. Agora está em perigo, mas tem sido essencial. Em outras artes, talvez não fosse tão necessário, e simplesmente nunca foi oferecida uma flexibilidade para que não fosse assim. Então, sinto que foram criadas dependências tremendas e que, se o estado desaparece, como tem ocorrido agora, tudo desaparece. Especialmente as artes cênicas. Isso foi claríssimo na pandemia.
Sharine: Eu pensava que você também fosse atriz…
Maria: Não, eu iria ser atriz em algum momento. Era meu propósito. Era o que eu iria fazer, era um fato. No último momento, quando tive que decidir, fui estudar história da arte.
Sharine: Não sei… Penso que, por causa da entrevista que há no livro [Emergências Culturais], eu tinha essa ideia.
Maria: Claro e a família. Fiz teatro, mas não me considero atriz… Fiz teatro…
Sharine: Teatro amador ou profissional?
Maria: Até mesmo profissional em algum momento, mas com minha mãe.
Sharine: Bom, você já me conhece. Também já conhece a pesquisa. Não vou repetir. Mas trouxe um gráfico sobre o Brasil para comparar com a situação mexicana. É o orçamento para a cultura, a parte do orçamento para a cultura no governo federal brasileiro, a função cultura. Há algumas coisas que não estão dentro da função. Mas penso que é uma maneira de compara os países porque aqui também há a função cultura.
Maria: Sim, exatamente, e essa é a função mais atingida agora.
Sharine: No Brasil, também estava sendo atingida desde 2014, mais ou menos.
Maria: Quando entrou Dilma Rousseff?
Sharine: Em 2015. O impeachment foi em 2016, e, em 2019, Bolsonaro assumiu como presidente. Então, tínhamos um orçamento bem baixo…
Marina: Quase igual ao de 24 anos atrás.
Sharine: Sim, subiu e, depois, caiu de novo. Aqui é uma comparação com o orçamento para a saúde e para a educação no Brasil. Você já sabe que tivemos todo um movimento social pela Lei Aldir Blanc. Aqui há uma imagem da tela com os artistas participando das reuniões virtuais. E aqui há uma comparação com o orçamento mexicano. De fato, o México investe muito mais em cultura do que o Brasil.
Maria: Veja, nunca tinha pensado nisso. São reais?
Sharine: Não, eu converti em dólares para comparar. Talvez não seja exatamente isso porque eu converti e, depois, converti novamente. Mas é este o desenho. São os dados oficiais do governo brasileiro e do governo mexicano. De fato, eu estou vendo que há mais investimento federal em cultura aqui do que no Brasil. Não temos essa quantidade de museus federais. Mas, com a Lei Aldir Blanc, isso mudou. Também com a Lei Paulo Gustavo.
Maria: Quanto foi a Lei Aldir Blanc? 500 milhões de dólares? Esse é o orçamento do México, mais ou menos… Um pouquinho menos é o orçamento anual do México para a cultura.
Sharine: Sim, mas, no Brasil, era menos que o valor de todo o orçamento para a Lei Aldir Blanc. Por isso, penso que tem sentido essa diferença entre o Brasil e o México. Agora, há a Lei Paulo Gustavo e uma nova lei que se chama Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, que é a continuação, mas com muitas mudanças, da Lei Aldir Blanc, e é válida por cinco anos. Começa agora em 2024. Os estados e municípios já aderiram à lei.
Maria: São pessoas da equipe de Lula, que estiveram no início, na cultura, que voltaram?
Sharine: Poucas pessoas, algumas sim, mas poucas. Agora temos, no governo, muitas das pessoas que trabalharam pela Lei Aldir Blanc.
Maria: Que maravilha.
Sharine: Esta é a situação no México. Esta imagem é sobre nossa pesquisa, sobre os coletivos. Sei que também houve manifestações no México, mas que não tiveram a força das manifestações pela Lei Aldir Blanc no Brasil. Gostaria de saber como os coletivos, como os movimentos culturais, veem as instituições culturais no México e o que fazem para transformá-las. Qual é a relação?
Maria: Eu diria duas coisas. Sei disso por causa da pesquisa que vocês fizeram e compartilharam. O que mais me impressionou na Lei Aldir Blanc foi a organização da comunidade artística no Brasil. Isso é algo que não tenho visto por aqui, não aconteceu aqui e não está acontecendo agora. Não nos conhecemos. Entendo que, a partir dos Pontos de Cultura, havia uma espécie de rede na qual se baseou o movimento que culminou na assinatura da Lei Aldir Blanc. Aqui não nos conhecemos. Ou seja, nós nos conhecemos um pouco por setores, na Cidade do México. Em cada cidade, os que mais se conhecem entre si são os de teatro, por uma razão que é importante destacar. Eu não poderia lhe dizer a data exata. Há cerca de quarenta anos [a primeira mostra foi realizada em 1978], o governo fez uma coisa que se chamou Mostra Nacional de Teatro, que foi um grande encontro. A sede era em distintos estados e, uma vez por ano, o governo convidava e pagava diversos grupos. No México temos uma forte tradição de companhias teatrais independentes, desde sempre, e a mostra não apresentava apenas o que havia sido montado nos espaços oficiais ou pela Companhia Nacional de Teatro, que também existe, mas também pelos grupos independentes. Isso foi essencial para que houvesse uma espécie de rede parecida aos Pontos de Cultura. Essa foi uma das primeiras coisas desmanteladas por esse governo. Foi extinta. Agora tentaram retomar. Desde o ano passado tentam repeti-la. Mas sem o entusiasmo, digamos, a inércia de anos de reunião. Se você deixa de se reunir durante cinco anos, as pessoas que organizavam mudam. Então, eu diria que isso se passava com o teatro. Outra coisa que era fundamental, que este governo também extinguiu e que, agora, tentou recuperar por causa da pressão artística… O FONCA tinha três programas. Eram muitos programas, mas havia três essenciais. O Sistema Nacional de Criadores, que nunca foi um sistema propriamente dito, que é o que sempre foi solicitado. Temos um Sistema Nacional de Ciência e os cientistas que pertencem a esse sistema pertencem por toda a vida se cumprem com o que é pedido, com publicações e mantendo uma pesquisa atualizada, importante, etc. Mas, se cumprem, pertencem ao sistema por toda a vida e recebem apoio. Por muito tempo foi solicitado que o Sistema Nacional de Criadores fosse igual. São três anos. Acaba, esperam um período e podem repetir, pedir novamente o apoio de três anos para um projeto específico. Mas nunca chegou a ser tão ambicioso como o Sistema Nacional de Ciência. O Sistema Nacional de Criadores é equivalente a uma quarta parte das pessoas que pertencem ao Sistema Nacional de Ciência. Afinal, a comunidade cultural é pequena para um país como o México. Então, quem está no Sistema Nacional de Criadores? Os eméritos, que são os que recebem o Prêmio Nacional de Artes e, então, permanecem por toda a vida, quando idosos, recebendo um apoio. Há 60 eméritos, nada mais que isso, sendo que há 120 milhões de habitantes. Há 60 eméritos. É muito arbitrário. Quem tem e por que tem? Por que não há mais pessoas? Não sei. E, depois, há o Jovens Criadores, que vai até os 35 anos. Eles recebem apoio de um ano, nada mais. Mas o valioso no Jovens Criadores, por muitos anos, foi que, em cada ano, havia um encontro. Havia três encontros presenciais, em distintos estados da República. E isso, qualquer artista pode lhe dizer, era essencial para a criação de uma comunidade, mas para a aprendizagem artística também. Reuniam-se, para além das linguagens, para apresentar os trabalhos, os poetas, os artistas, os fotógrafos, as pessoas de teatro, relacionavam-se, faziam vínculos importantes. Havia, além disso, uns monitores. Chamavam artistas um pouco mais velhos, que eram jurados, mas, ao mesmo tempo, um pouco professores. Então, era como uma pequena escola, cumpria uma função que me parecia essencial em um país que tem uma educação artística tão precária, tão insuficiente, tão brutalmente insuficiente. Isso era essencial e este governo desmantelou.
Sharine: A educação artística é obrigatória?
Maria: Não. Quando digo educação artística, refiro-me à educação artística já profissionalizante.
Sharine: Não há nas escolas?
Maria: Muito pouco. Houve uma coisa muito bonita… Nos anos 1970, inventaram os cursos técnicos em arte, que é como a escola preparatória. Os jovens têm entre 15 e 18 anos… Eram esses cursos técnicos de arte, onde estudavam todas as disciplinas, matemática, história, o que for, mas havia uma ênfase nas artes. Nos anos 1970, fizeram 12 cursos técnicos, dos quais, me parece, a metade está na Cidade do México, em diferentes lugares. E os outros: um em Monterrey, outro em Xalapa… Mas não são suficientes. A ideia é que, se algo estava funcionando, também fossem feitos doze em cada sexênio, de modo que, ao final, houvesse cinquenta e, então, fosse construído o que eu chamo de uma escalada de profissionalização. De modo que alguém possa estudar na preparatória e, ao sair, vá ao conservatório de música ou algo assim… Isso não ocorreu. E não só isso. Estão completamente sem orçamento os doze CEDARTs, chamam-se CEDART [Centros Educativos de Arte]. Estão todos sem orçamento, caindo aos pedaços. O mesmo acontece com as escolas de profissionalização das artes cênicas. Sempre houve um pouco, mas, neste governo, o corte no orçamento foi muito pior. O conservatório não tem os pianos afinados, não há cordas nos violinos, nas salas de dança a madeira está descascada e, então, os bailarinos machucam os pés. Não tem havido manutenção e crescimento de um programa educativo importante. Além disso, no nível de profissionalização, nem todos os estados têm todas as disciplinas. Muitas devem ser cursadas na Cidade do México. Cinema, por exemplo. Os encontros dos jovens criadores cumpriam um pouco essa função. E este governo extinguiu. Agora, foi tamanha a pressão, que voltaram a abrir. Acaba de acontecer o primeiro, outra vez, na Cidade do México. Mas, por muitos anos, não houve. Havia encontros por Zoom, mas eram um desastre. Não era isso de conhecer, de realmente criar vínculos. Minha sensação é que o setor cultural do México… Pessoas mais velhas me dizem “María, a comunidade nunca esteve organizada, é uma fantasia sua, nunca ocorreu, para além de 1968… Ou seja, um tipo de articulação política, isso nunca ocorreu”. O máximo que se passou foi que, no sexênio anterior, houve um corte brutal no orçamento e nos organizamos, conseguimos muitas assinaturas e o dinheiro voltou.
Sharine: Voltou? Que bom.
María: No sexênio anterior. Conseguimos cinco mil assinaturas de criadores. Mas no governo anterior. Neste governo, ficamos desorientados. Uma das primeiras ações do governo foi extinguir o Fundo Nacional para a Cultura e as Artes. Então, rapidamente houve um impulso de organização. Mas veio a pandemia. Havia uma coisa que chamamos de frente ampla e nos reuníamos em um Zoom. No início, éramos 150 pessoas e, logo, acabamos em quatro. O que acontece? Não havia um acordo. Nunca encontramos a maneira de criar um patamar comum. Ou, pelo menos, de defender esse comum. É verdade, muitos dizem: “os chilangos, os da Cidade do México, sempre tiveram tudo. Por que vamos apoiá-los?”. Ok, têm razão pelas artes visuais. Alguns os veem como mais privilegiados. Não havia maneira de chegar a um acordo. Não houve um patamar comum. Minha sensação ao final, e isso foi muito doloroso, foi que muitos não sentem que as instituições culturais sejam algo que se deva defender, que valha a pena defender. Especialmente os jovens. Os jovens não sentem que as instituições lhes pertencem, que os representam, que são espaços onde podem ter algum tipo de agência. Isso não ocorre. Então, por que vão defendê-las? Defender o que? Nós tentamos tornar público todo o conhecimento do que ocorreu no Brasil e as pessoas não acreditavam, mas tampouco sentiam que era possível fazer o mesmo no México. Não sei, foi muito estranho. Eu fiquei muito magoada: como é possível não conseguirmos articular nada? Por distintas razões… Acredito que teve a ver também com o governo atual… Supõe-se que seja de esquerda e vou colocar totalmente entre aspas porque não acredito que seja um governo de esquerda o que está militarizando o país e a cultura. Temos visto uma paulatina militarização da cultura também.
Sharine: Como?
María: Por exemplo, recentemente houve um festival de artes vivas no Equador. O governo do México, por meio da Secretaria, em vez de enviar os criadores mexicanos, como sempre aconteceu (o México era o país convidado do Festival de Artes Vivas do Equador), mandaram os cadetes da escola militar, do colégio militar, para recitar poesias, tocar na banda. O exército acabou de formar uma espécie de esquadrão da Guarda Nacional, que vai cuidar do patrimônio cultural.
Sharine: O patrimônio do exército?
María: Não. O patrimônio cultural, as coleções nacionais. Pouco a pouco, estão tomando, estão se encarregando das aduanas do México… Ou seja, há uma militarização em curso muito profunda, que já está chegando à cultura. Nem sequer conseguimos que a comunidade esteja escandalizada e diga: “isso não nos parece…”. Em partes, por essa armadilha ideológica, como acredito, de ser um governo de esquerda, quase toda a comunidade votou por ambos.
Sharine: Sim, eu vi os números.
María: Era uma possibilidade de mudança, de que o PRI [Partido Revolucionário Institucional] fosse embora, de que as coisas mudassem, de que agora sim entrasse a esquerda e houvesse uma atenção maior aos direitos culturais. Enfim, não aconteceu. Então, acho que muita gente ficou atordoada: “mas votamos”, “mas eram de esquerda…” Não sei nem como explicar. Os movimentos #NoVivimosDelAplauso, MOCCAM [Movimiento Colectivo por la Cultura y el Arte en México], Asamblea de las Culturas foram os que mais resistiram. É um belo movimento desde o nome, porque a relação está intrincada, especialmente em artes cênicas, dos criadores com o estado. É muito fácil que os grupos e demais fiquem presos nas armadilhas burocráticas porque não pagam a tempo ou não pagam, pagam muito mal, pagam muito pouco, pagam uma, duas ou três sessões, mas pagam oito meses depois. “Não vivemos somente de que nos aplaudam” porque, além disso, existe tal dependência mútua. Não haveria programação em nenhum teatro, em nenhum museu se não fosse pelos artistas mexicanos. Claro, é uma dependência mútua, mas é em um grau… O governo, desde o nome, trata os artistas como prestadores de serviços. Esse é o nome com o qual pagam, quando pagam. Você está prestando um serviço como quem vende os papeis higiênicos do museu ou como quem faz o café. Há aí toda uma concepção sobre o trabalho artístico, que é muito daninha, ao final, para a criação artística. Por isso, pareceu-me tão importante um movimento como o de vocês. “Para que vocês tenham programação nos teatros, necessitam de nós. Nós precisamos dos teatros e da infraestrutura”. Quem tem a infraestrutura para um teatro ou para fazer um filme? Em vez de basear-se em um novo modelo no qual possa entrar até mesmo a iniciativa privada, há principalmente que baseá-lo em um respeito ao trabalho artístico. Há uma coisa que tem se deteriorado rapidamente neste governo. Desde o início, houve um corte de 75% no gasto operacional do estado com o pretexto da pandemia. Mas nunca retornou. Ou seja, a pandemia terminou há dois anos e os museus continuam com um corte de 75% no orçamento. O orçamento total nunca foi recuperado. Quando dizemos que o orçamento da Secretaria de Cultura é de 14 bilhões de pesos, na realidade, é preciso subtrair 70%, mais 5% operacional: o recurso que está sendo usado em Chapultepec, o dinheiro que está sendo usado para pagar o Trem Maya, que é militar, o dinheiro do INAH. A Secretaria de Cultura é muito jovem, foi criada há dois sexênios. Antes havia o Conselho Nacional de Cultura. E o que se pensou foi que, quando fosse secretaria, iria melhorar muitíssimo o orçamento, sua capacidade de inclusão… Nunca aconteceu. Então, a Secretaria permanece como um corpo estranho acima do INAH, o Instituto Nacional de Antropologia e História, e o INBA, o Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura, e os outros órgãos descentralizados, que são IMCINE (Instituto Mexicano de Cinematografia), etc. Na prática, quem faz o trabalho são INBAL e INAH. Sempre foi assim.
Sharine: Onde está o Sistema de Criadores no orçamento?
María: Isso é importante. Com a transformação da Secretaria, duas coisas mudaram completamente. Uma é que o FONCA era o braço financeiro do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (CONACULTA). O INBA e o INAH não estavam abaixo do CONACULTA.
Sharine: Ah, não?
María: Não exatamente. Na prática, sim, porque o diretor, o presidente do CONACULTA atuava um pouco como secretário da cultura, mas não era. INBAL e INAH pertenciam à Secretaria de Educação Pública. Isso é importante porque a educação artística é uma das carreiras do INAH, por exemplo, antropologia, antologia, as carreiras que estão agrupadas na ENAH, a Escola Nacional de Antropologia e História. Todas, ao sair da SEP [Secretaria de Educação Pública], perderam o peso educativo. A Secretaria de Cultura não foi feita pensando que boa parte do trabalho de uma secretaria é a educação. A SEP fazia isso naturalmente, porque é a Secretaria de Educação Pública. Então, as escolas ficaram flutuando. Por um lado, foi isso que aconteceu. Por outro, o FONCA não passou a formar parte de nada. Quando foi extinto, o novo programa passou a se chamar algo como Apoios para a Criação e as Bolsas… Agora isso está dentro da Secretaria, mas dentro de uma secretaria de desenvolvimento…
Sharine: Não consegui encontrar os orçamentos de cada instituição.
María: Ninguém sabe bem. Quando a Secretaria de Cultura foi planejada, o que realmente era necessário e onde caberia tudo, foi uma coisa gigante. A Secretaria de Cultura nunca teve muito mais orçamento do que antes na função cultura. Era uma função cultura enorme. Quando houve mais dinheiro foi em 2013, mais ou menos, no México. Na função cultura, que incluía tudo o que era feito na SEP, o CONACULTA fazia muita coisa. Quando a SEP sai da jogada, tudo fica concentrado na Secretaria de Cultura, mas nunca foi muito mais. É uma das secretarias que tem menos orçamento. Ou seja, nunca alcançou os voos de uma grande secretaria de estado. Foi feito de modo muito desajeitado e não foi feita a Lei de Cultura. Estamos operando no ar. Não sei o que Nivón Bolán lhe disse…
Sharine: Disse-me que há uma lei de cultura e de direitos culturais, mas que é muito geral.
María: Ou seja, não houve o trato fino de colocar ordem. Então, muitas coisas ficaram flutuando e ninguém se encarregou de nada… Minha sensação é que os coletivos apareceram muito pela emergência da COVID-19. Apareceram e tiveram força. Depois fizeram uma tentativa, que teria sido maravilhoso, de um grande encontro de políticas culturais, que deve estar muito baseado em tentar fazer uma lei trabalhista, das condições de trabalho dos criadores.
Sharine: Será aqui?
María: Não vai mais acontecer. Seria entre os coletivos e a Secretaria de Cultura… Essa é uma coisa anedótica, mas que diz muito. Os coletivos estiveram negociando com a Secretaria de Cultura para fazer esse grande encontro e trazer pessoas. Havia um chat dos coletivos. Um dia, fizeram um Zoom e uma das pessoas da Secretaria de Cultura, por equívoco, compartilhou sua tela e viu-se que o chat da Secretaria de Cultura chamava-se “desativação de coletivos”. Foi um clique na tela e, então, começou toda uma coisa horrível porque, na realidade, viu-se que estavam há meses negociando algo que não iria acontecer. Os coletivos renunciaram a seguir trabalhando com a Secretaria de Cultura, tentaram seguir sozinhos, começaram a perder impulso e nada foi feito.
Sharine: Mas teria que ser o contrário…
María: Exatamente, mas eu percebo que as pessoas estão cansadas, empobrecidas. Ou seja, as pessoas estavam sem saber como sobreviver. Parece-me tão admirável o que aconteceu no Brasil e o que aconteceu em outros lugares. Aqui no México não foi possível. Os três coletivos continuam, mas já não se reúnem, reúnem-se às vezes, não sei muito bem o que discutem. Mas já não têm a força que tiveram durante a pandemia.
Sharine: O mesmo se passa no Brasil. Quando o governo Lula começou, os coletivos perderam um pouco a força, porque já estavam com o governo e a situação estava um pouco mais tranquila. Então, já não há a mobilização que houve na pandemia. Mas agora, por exemplo, como eu lhe disse, estão fazendo a Conferência Nacional de Cultura e há milhares de pessoas lá.
María: Claro, que bom.
Sharine: Penso que você já falou um pouco… Mas minha próxima pergunta seria um panorama de como as coisas funcionam no Brasil. Algumas políticas públicas funcionam em rede, como a política de saúde, por exemplo, em que o governo federal repassa o dinheiro para os estados e municípios, como ocorreu com a Lei Aldir Blanc. Mas a Lei Aldir Blanco não foi um exercício completo do que nós pensamos que pode ser o Sistema Nacional de Cultura. Para que seja o Sistema Nacional de Cultura, é necessário ter o plano, os planos de cultura em todas as cidades, em todos os municípios, os fundos e também os conselhos. São os três eixos, e isso não acontece. Algumas cidades não têm planos, outras não têm fundo e coisas assim. Mas com a Lei Aldir Blanc, houve 76% de adesão dos municípios, o que foi um número muito alto para nós. Com a Lei Paulo Gustavo, foram 98% e 97%, com a Política Nacional Aldir Blanc.
María: Claro, porque viram que funcionava e que era possível.
Sharine: Sim, mas ainda faltam os elementos do Sistema Nacional de Cultura. Estamos caminhando, não sei o que vai acontecer. Tudo pode mudar. Mas, neste momento, estamos caminhando para, de fato, ter um Sistema Nacional de Cultura.
María: Que maravilha.
Sharine: Eu vi que há coisas como essas no México, a cultura comunitária, que são também uma maneira de repasse para estados e municípios. Então, gostaria de saber um pouco como funciona a federalização no México.
María: Na realidade, funciona de modo parecido com o Brasil. O recurso vai baixando. Os estados deveriam ter uma combinação de orçamentos federais e locais, da mesma forma. O que tem ocorrido é que o federal praticamente desapareceu. Então, está nos estados o que se gasta em cultura, o que está sendo investido localmente. Mas o que nunca ficou claro, talvez ocorra o mesmo no Brasil, é um acompanhamento de quando funciona e quanto, o que funciona e o que não funciona. Ou seja, começam com um orçamento gigante. Isso é repartido em 32 estados, os 32 estados dão algo aos municípios e, na prática, o que acontece é que a cultura fica nas grandes cidades e não chega aos municípios. O que chega aos municípios é tão pouco que se gasta em outra coisa. Não há uma regra específica: “isso é somente para a cultura, não pode ser usado em nada mais e queremos ver resultados”. Quem quer ver resultados? Não há uma observação dos resultados. Como sabemos para onde vai o dinheiro, quem usa? Há uma parte que tem a ver também com o federalismo e, claro, a coisa de: se este é um estado panista [refere-se ao PAN, Partido de Ação Nacional], de direita, por exemplo, mas o município é de esquerda… Não podem se entender, não há trabalho em nenhum setor, nem em saúde nem em nada, praticamente. Não há trabalho conjunto observável, verificável: “isso está funcionando…”. Não, o dinheiro chega aos estados e cai a conta gotas nos municípios. E nada acontece e ninguém faz nada. Se, por sorte, o prefeito tem uma filha que gosta de piano, então, farão um concerto. Se não, não há nada. Não sei. A questão do federal, da concentração, da centralização dos orçamentos, que, como nunca, tem ocorrido neste governo, tornou-se uma coisa muito centralizada em todos os setores, saúde e os demais. É impossível que, em um país tão grande, como o Brasil, tão amplo, tão extenso… Agora, que são as eleições, serão eleitos vinte mil postos, porque são presidente, governadores e muitos municípios. Como se controla? Se é algo centralizado, é impossível. Então, os movimentos que vêm pedindo que haja maior autonomia dos governos locais são outro tipo… Porque, claro, este governo castiga os governos que não são MORENA [Movimento Regeneração Nacional], por exemplo, e, então, são os que menos recebem. Nivón Bolán, Eduardo Cruz Vázquez, todos eles podem lhe dizer isso, porque é o período em que os estados receberam menos dinheiro dos programas específicos para infraestrutura, por exemplo, o PAICE [Apoio à Infraestrutura Cultural dos Estados], alguns programas que são voltados aos estados. Esses fundos nunca tiveram menos dinheiro do que agora.
Sharine: Eu falei com um coletivo em Xalapa [Verazcruz] e me disseram o contrário, que estão melhores agora porque o dinheiro, por exemplo, para as turnês e os editais para os coletivos, para os grupos de teatro, vai diretamente do governo federal para os grupos, para os artistas. Antes ia para os estados e os estados não repassavam como os artistas queriam que fosse. Não sei o que você pensa sobre isso…
María: Esse é um caso específico, o da rota dos teatros independentes. Além disso, quem inventou foi uma pessoa de teatro, Antonio Zúñiga, que sabe muito bem como funciona. O programa tem coisas maravilhosas. É um programa parecido, digamos, ao da Mostra Nacional de Teatro, fazer algo a partir do centro, mas que abarca a todos os estados. O que acontece é que é somente um. Dão muito pouco dinheiro. Talvez tenha sido bom para esse coletivo, mas sei, por outros grupos, que acabam tendo que colocar mais dinheiro, que nunca é suficiente, porque com esse dinheiro precisam pagar os transportes, o transporte do cenário, porque não pagam a produção, somente obras prontas. Mas é preciso levar o cenário, os atores, não sei o que, não sei quanto, a comida, o hotel… e todo mundo acaba endividado. É muito pouco dinheiro. É muito boa ideia, mas é muito pouco dinheiro. Um… E dois: algumas das rotas são realmente perigosas.
Sharine: Também me disseram isso, que havia policiais com armas.
María: Há as rotas do norte, Tamaulipas… Há um grupo que ficou fechado em um teatro e não podia sair porque havia um tiroteio do lado de fora. São boas ideias, pequenos impulsos momentâneos que não são analisados a fundo. Não se diz: “bom, para que isso realmente aconteça, seria necessário ter segurança, planejar a ida das pessoas, fazer acordos com uma linha aérea…” Não sei, algo que seja muito mais, que abarque mais, que seja mais acabado, mais aperfeiçoado. E não simplesmente: “peguem vocês”. Minha observação é: é um projeto precioso, uma ideia preciosa, que acaba sendo muito difícil de ser realizada e que, outra vez, é insuficiente. Esse projeto é muito bom e não é necessariamente… “Claro que sempre que o governo federal entra em jogo é melhor”. Não! Para nada. Digo que, para certas coisas, esse tipo de programa funciona muito bem, como o Jovens Criadores, como era a Mostra Nacional de Teatro. E outros não funcionam, porque o estado centralizado não pode conhecer as necessidades de cada lugar que há. Também por isso os Pontos de Cultura …
Sharine: Podemos falar sobre isso porque era minha próxima pergunta.
María: Para mim é simplesmente uma repetição de uma antiquíssima maneira de fazer as coisas, a antiga maneira priista [refere-se ao PRI], que consiste em levar a cultura. Não é como os Pontos de Cultura: “o que há? O que as pessoas estão fazendo e como podemos apoiar as necessidades pontuais de cada estado, de cada município, de cada coletivo, de cada grupo, de cada artista?” Ao contrário, é: “como desenhamos um programa para levar às comunidades”, com uma discussão quase linguística, como “o que é comunidade” e com uma apropriação do termo comunitário por parte do estado, que me parece super problemática. Por que comunidades e quais comunidades? Como, quando, quem são? A cultura comunitária tinha muitos braços, ao final cortaram brutalmente o orçamento deles também. Começou tendo um orçamento gigante e acabou com nada. Mas acabou sendo oficinas para crianças. Já disse muitas vezes, não tenho nada contra. Que maravilha que algumas crianças, acho que são doze mil crianças… Supõem-se que são os números oficiais… Acredito que doze mil crianças tenham participado de alguma oficina, sendo que há trinta milhões de crianças. Ouvi sobre casos muito afortunados de professores das próprias comunidades que ministram oficinas e que funcionam muito bem, mas não têm continuidade. É uma atenção muito momentânea, muito temporal, a um grupo populacional específico. Parte meu coração pensar que há algumas dessas crianças que querem ser artistas, por exemplo, e, depois, onde estudam? Não podem estudar na universidade. Como inculcar o amor pela arte e, depois, não permitir que haja continuidade para a vida de cada uma dessas crianças? Isto uma vez na vida: “uma oficina de fotografia! Wow, fantástico!” E logo para. Cultura comunitária é o grande fracasso deste governo, uma coisa como a apropriação do comunitário, completamente mal-entendido, sem fazer uma pesquisa prévia. É quase impossível fazer se você pretende fazer centralizadamente. Este programa: “todo mundo vai pintar murais”. Por que murais se, na realidade, o que essa comunidade tem é um problema de violência? Não seria melhor uma oficina de performance? Mas tudo a partir do centro, como fazer? Precisaria de um exército de missões culturais, como tivemos com Vasconcelos, de missionários culturais que alfabetizavam as pessoas, mas que também faziam as escolas ao ar livre e as pessoas pintavam, etc. É um exército para si. Por outro lado, a coisa inteligentíssima, brilhante dos Pontos de Cultura é o contrário: “isso já está acontecendo, as pessoas já estão fazendo coisas e você é um observador, um acompanhante”. É totalmente outro papel, ao contrário. A cultura comunitária é um grande fracasso para mim, para o meu gosto, porque se equivoca profundamente sobre o modelo. Se for a Claudia Sheinbaum, que é muito provável, a próxima presidente, já disse que vai repetir o modelo. Isso é muito doloroso com a suposta esquerda… De pesquisa, de recursos humanos, de ver que, realmente, é o que poderia ser feito em um país singular como o México, que está atravessado pela violência, por infinitas relações do crime organizado. Qual é o grande plano de cultura nacional? Deveria ser completamente outro, que envolvesse as verdadeiras comunidades.
Sharine: Gostaria de voltar um pouco… Este programa de circulação de teatro, não há para as artes visuais, para as outras linguagens, somente para o teatro?
María: O EFICINE [Estímulo Fiscal a Projetos de Investimento na Produção e Distribuição Cinematográfica Nacional] foi o primeiro a existir. Acho que desde os anos 1990. Foi um grupo de produtores próximos ao governo que disse: “vamos nos unir porque é impossível, o cinema é caríssimo, devemos fazer cinema em conjunto, cinema mexicano”. Então, em alguma época, pensou-se que estava muito bem e funcionava bem, não? A iniciativa privada dava dinheiro diretamente e o estado dava a outra metade, ou algo assim. Com o tempo, foram fazendo, há pouco tempo, os outros EFIARTE. EFITEATRO foi o seguinte e, depois, EFIARTES VISUALES e os demais. O planejamento é absolutamente equivocado porque, por exemplo, sei que em artes visuais os artistas que pedem EFIARTE para fazer uma exposição precisam apresentar todos os requerimentos como se fossem um grande produtor cinematográfico e não um artista.
Sharine: Então as circulações de espetáculos…
María: As circulações surgiram porque foram pensadas por alguém da Cidade do México, que é Antonio Zúñiga, diretor de teatro. Foi uma forma de ajudar os espaços alternativos, os espaços independentes, as companhias, fazer com que chegasse algum dinheiro na pandemia. Foi uma ideia genial. Os teatros que têm espaços recebem as companhias e as companhias, também dos espaços, vão a outros teatros. É interessante dizer que, durante a pandemia, foram fechadas três das principais companhias de teatro. Foi fechado o Telón de Arena, foi fechado o Carretera 45, na Cidade do México, e mais uma companhia em Yucatán. Ou seja, três das principais companhias de teatro independentes fecharam porque não é suficiente que lhes paguem 10 mil pesos uma vez, um aluguel, um grupo visitante. Outra vez: “Que lindo, que bom exercício”. Mas muito individual, de um grupo de pessoas dentro do governo. Isso não o qualifica como política cultural. É improvisação e não resolve o problema de fundo, que é: precisamos apoiar os Pontos de Cultura que promovem esse serviço às comunidades e que é muito fácil apoiar. O que todos nós dizemos? O orçamento para a cultura, como você me diz, no México, é muito alto em um sentido. Para nós nunca é suficiente, mas é muito alto se for bem utilizado.
Sharine: Isso tem sentido porque, quando vamos aos museus… Tudo isso é dinheiro público. Eu trabalho no Ministério da Cultura no Brasil. Eu seio que não é possível ter isso no Brasil com nosso orçamento. Mas utilizamos de maneira diferente, com mais editais…
María: Quem paga a Bienal?
Sharine: Uma parte é o governo, mas também há patrocínio privado. É mais complexo. Não é somente dinheiro público.
María: Isso acontece aqui, é importante dizer. Os museus da Cidade do México parecem de primeiro mundo. Sei disso porque conheço todas as diretoras, que tiveram que se mobilizar para conseguir fundos privados de maneiras enlouquecidas porque, pelo corte de 75%, mais isso, mais isso, não haveria nada. Mas não há modo de fazer como nos Estados Unidos: “esta sala do museu é paga por fulano, é paga por não sei qual companhia”. Ou seja, vou fazer uma coisa aberta, pois isso está sendo pago pela iniciativa privada. Não é totalmente permitido. É apenas de forma indireta. Então, parece que o governo faz muito e há toda uma confusão sobre os papeis…
Sharine: É um pouco da minha próxima pergunta também, a relação entre o investimento público e privado. Eu trabalho com editais, mas, algumas vezes, parece-me que eles aprofundam a precariedade do trabalho porque os artistas trabalham por projeto. Então, precisam saltar de um edital a outro para ter o dinheiro, buscar a iniciativa privada, que, no Brasil, também é ausente, como aqui no México. Existe por meio da isenção fiscal, que é dinheiro público porque é imposto. Então, gostaria de falar um pouco sobre as relações trabalhistas.
María: Aqui é exatamente igual. O Sistema Nacional de Criadores é enganoso porque não é um sistema. Acho que poderia chegar a ser realmente um sistema, como é o dos cientistas. Sempre dizem que a pesquisa científica não pode ser feita às margens. Como fazem os laboratórios de pesquisa? A maioria faz parte da Universidade Nacional do México, a Universidade Nacional. Então, deve-se apoiar isso e os microscópios… A infraestrutura científica… O que tratamos de dizer é que a cultura também e que um poeta também precisam de continuidade. Não trabalhamos somente para um livro. Você pede uma bolsa e escreve um livro. Fantástico! E esse livro não é vendido porque não há livrarias, porque não há apoios e o livro seguinte já não é pago por ninguém. Então, a pessoa já tem que voltar a trabalhar em um restaurante e já não tem tempo para escrever poesia. Definitivamente, é uma forma de manter a precariedade e deste governo administrar uma paralisia. É dar dinheiro para parecer que acontecem muitas coisas e que há muito teatro e muitas coisas ocorrendo. Mas, na realidade, há uma paralisia. As infraestruturas estão subutilizadas, estão subutilizadas as possibilidades do que poderia ser feito com o que o estado mexicano tem. Nós sentimos, de todo modo, que a infraestrutura é ínfima porque os estados não têm nada. A Cidade do México, claro, é um paraíso. Mas é uma bolha. Você sai e há um teatro municipal que, na realidade, é usado para festas de 15 anos…
Sharine: Claro, é o que acontece no Brasil… Estamos tentando mudar, mas é o que acontece, com a diferença de que não está concentrado em Brasília, mas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
María: Eu acho que algo assim como um Sistema Nacional de Cultura seria urgente. Esse era um pouco o propósito do grande encontro dos coletivos, que não aconteceu. E um olhar para além dos seis anos. Não pode ser que tudo aqui dure seis anos e, quando muda o governo, tudo muda e tudo o que foi conquistado cai, vem outra pessoa e faz o contrário. É preciso resgatar, como acontece com saúde. Agora está passando por seu pior momento da história, o sistema de saúde, mas pelo menos saúde… Pois, claro, há uma continuidade porque são os hospitais, são as coisas, não sei o que. Ou seja, isso tem que funcionar. Aqui deve ser igual e não toda vez… Agora estamos todos aterrorizados porque, quando mudamos de sexênio, é o terror. Pode chegar alguém e dizer: “já não existe FONCA, já não existe isso”. Não há maneira de proteger o pouco que existe e crescer.
Sharine: Não é necessário passar pelo Congresso, pelo Senado, pela Câmara dos Deputados para extinguir o FONCA, por exemplo?
María: Sim. Mas aqui, o que acontece é que o governo tem maioria na Câmara, e isso era por maioria simples. A grande maioria das câmaras aqui é maioria simples. Ou seja, eles apenas votam e aprovam… O orçamento nem sequer é discutido. O presidente manda ao Congresso, à Câmara dos Deputados: “esse é o orçamento para o ano que vem, aqui cultura terá 14 bilhões”. Supõem-se que, dentro da Câmara de Deputados e do Senado, exista uma Comissão de Cultura que deveria revisar o orçamento e dizer: “estou mudando”. No setor cultural, pelo menos, nunca ninguém é contra. Dizem: “sim, já”. A cultura nunca é discutida verdadeiramente, é como se fosse o menos importante de tudo, suponho.
Sharine: Eu perguntei porque a Funarte, onde eu trabalho no Brasil, foi criada por uma lei. Por isso continuou existindo durante o governo de Bolsonaro. Era muito difícil dizer: “não queremos mais”. Teria que passar pela Câmara, teria que passar pelo Senado e haveria um desgaste político no país. Então, continuou existindo, mas sem orçamento.
María: Você me fez pensar que a extinção do FONCA e de vários fideicomissos foi decreto presidencial.
Sharine: Isso não pode ser feito no Brasil. Com o Ministério da Cultura, sim, mas não com as instituições que são criadas por lei.
María: Isso é interessante. O FONCA foi extinto, mas o Sistema Nacional de Criadores não, nem de criadores, nem de eméritos… Mas o Sistema Nacional tem uma lei também. Não pode desaparecer. O que se passou, na prática, foi que o fideicomisso permitia uma administração orçamentária fora dos prazos de todo o governo. O que está acontecendo agora é que, por exemplo, não pagaram janeiro. Então, houve um escândalo e pagaram janeiro em fevereiro. Depois voltaram a pagar fevereiro, algo assim, porque as pessoas se queixaram. Isso não acontecia com o FONCA. O recurso entrava no primeiro dia do mês. Claro, não puderam extinguir, mas também não atende como deveria.
Sharine: Para terminar, uma última pergunta: o que se passa com o público? Eu sei que, hoje, as artes estão na televisão ou na internet. Mas, no Brasil, os dados são de 2021, 61% das pessoas nunca foram a um espetáculo de dança ou de teatro, de artes cênicas. Aqui são 59%… São dados de 2010 porque não consegui encontrar outros mais recentes. Não sei se há… O acesso dos mexicanos ao museu é maior que no Brasil. Acho que é uma coisa importante. Por exemplo: temos, no Brasil, a Lei Rouanet, que é a lei de renúncia fiscal. Foi muito atacada pela sociedade civil durante o governo de Bolsonaro. As pessoas não sabem o que é a lei, mas dizem: “é para os artistas que não trabalham, que vivem do governo” e coisas assim. Eu penso que essa relação com o público, a formação de público é importante para que os artistas tenham as políticas culturais, as políticas públicas também. É a opinião pública que afeta também o governo. O que acontece no México?
María: Acho que é muito parecido com o Brasil. Quando ameaçaram extinguir o FONCA e, afinal, foi extinto, foi feita uma campanha, que era bonita, de artistas, alguns até famosos, nossos cineastas famosos, que trabalham nos Estados Unidos, ou escritores importantes, dizendo: “eu escrevi um romance porque tive o FONCA em 1992”, “eu fiz esse filme porque tive o FONCA e pude escrever o roteiro”, “eu fiz isso porque tive o FONCA”. Ou seja, como criar uma espécie de consistência para que o FONCA tenha… e acaba chegando a algo que é importante, que todos desfrutamos e que é parte de nossa identidade cultural, de quem somos. Parece-me que tudo isso é muito minoritário. Acho que esses números são piores… O México e o Brasil são seguramente iguais, nem sequer são dois Méxicos, é como se fossem dez Méxicos. Há um México urbano. Mas somos um país de 130 milhões de habitantes e eu acho que a grande maioria das pessoas nunca foi a um museu, não sabe nem que existe museu.
Sharine: Não… Como no Brasil.
María: Então, o que nunca se consegue é a geração de públicos. Vimos na pandemia, foi muito claro. Os museus rapidamente criaram plataformas virtuais e exposições para que as pessoas pudessem ver e acho que foram muito visitadas… Eu mesma… Eu publico um texto e alguém me diz na revista em que publico, Nexos: “seu texto foi um dos mais lidos”. “Quantas pessoas leram?” “Três mil pessoas”. Eu desmaio, parece um êxito como em um estádio de rock. Mas não é nada. Nem sequer é exato. Além disso, nem sequer são somente do México. Talvez sejam de fala hispânica. Como é virtual, pode ter sido lido em outros lugares. Nós, da cultura, ficamos muito contentes quando conseguimos isso. Mas os públicos de teatro e tudo, na realidade, são muito pequenos. Em parte, porque os teatros são muito pequenos e lotam com cinquenta pessoas e você fica muito feliz, mas acho que tudo isso é enganoso. Também estamos, na cultura e na gestão cultural, sempre atendendo a um universo que é específico e que, completamente, deixa de fora e ignora o grande país complicadíssimos, complexo, duro, difícil que é o México, que é o Brasil. No fim, chegaram a quantos pontos de cultura?
Sharine: Não me lembro, mas o número de cidades que aderiram agora à Lei Paulo Gustavo é muito maior que o número de Pontos de Cultura.
María: Gosto muito dos Pontos de Cultura, que não são somente os museus, os espaços tradicionais das artes, mas a sala de aulas de samba e a mulher que tem uma biblioteca em sua casa e abre ao público. Uma ideia de cultura que é ampla e que penso que é mais rica. No México, ainda estamos muito presos à ideia das artes. Ainda se chama Instituto Nacional de Belas Artes.
Sharine: Eu fiz uma pergunta para muitas pessoas e quase todas me responderam: “isso não existe no México”. No Brasil, claro que antes da pandemia isso já acontecia, mas, com a Lei Aldir Blanc, começamos a ver com mais clareza a alteridade cultural. Por exemplo, a arte que é feita nos espaços quilombolas, que são os espaços das pessoas que foram escravizadas no Brasil, a arte nos espaços indígenas… Mas também há um crescimento e uma disputa com os evangélicos, por exemplo, com a arte gospel, com a arte religiosa… Essa é uma questão muito importante agora no Brasil. Há as cotas não somente nas artes, mas também na universidade. Na USP, onde eu faço a pesquisa, agora 50% dos alunos de graduação são de escolas públicas e há cotas para pessoas negras, para pardos. Também para as pessoas indígenas… Isso está mudando um pouco a maneira como olhamos para as políticas culturais.
María: O contrário. O que quero dizer é que é o contrário. Ou seja, não temos e o que muitos estão dizendo é que este governo tem sido mais liberal que os governos neoliberais do passado recente. O que acontece quando você se desentende e, além disso, sem nenhum tipo de transição… Eu estou de acordo que isso deve ser discutido e que o modelo de financiamento completo por parte do estado já é inviável. Mas é preciso ter uma transição e uns estímulos, umas formas de apoiar de modo que isso aconteça. Não simplesmente 75% a menos e vamos ver o que acontece. Ou seja, não pode ser feito assim e não se pode ir de uma vez porque o que acontece é que, quando a iniciativa privada assume totalmente o controle da cultura, o que se passa é o contrário do que você está me contando, que é o que ocorre em artes visuais. O México se tornou um país, uma cidade, a Cidade do México, uma cidade que busca uma cidade americana, gringa. Você me entende? As pessoas da iniciativa privada têm entrado com muitíssimo dinheiro e o que se privilegia é uma arte comercial, mainstream, europeia, ocidentalizada, completamente desenraizada, ou seja, que não tem nada a ver com o que é o México. Completamente do mercado global de arte. Porque se você deixa tudo para a iniciativa privada…
Sharine: Claro, também no Brasil, com a Lei Rouanet, por exemplo. Mas isso tem mudado por causa das novas leis e questões sociais…
María: Mas, quando um governo de esquerda deixa… Deve-se perguntar por que. Está deixando que todos paguem o restante. É o que tem acontecido na saúde, por exemplo. Você vê os gráficos? As pessoas recebem agora esses apoios que sempre receberam… Mas este governo dá um pouco mais em certas áreas e este dinheiro está indo quase inteiramente para o pagamento da saúde privada porque os serviços de saúde decaíram. Seu apoio, na realidade, é usado para privatizar ainda mais a saúde e precarizar a saúde. Os grandes serviços, que o estado deveria prover, básicos em cultura e em tudo, simplesmente estão cada vez mais empobrecidos, prejudicados, sem manutenção. O que acontece? Que as pessoas frequentem a cultura mais comercial, da iniciativa privada, da televisão porque o estado deixa de fazer o papel que teve durante anos e o faz de um golpe, sem uma previsão e sem nenhuma discussão? Então, como fazemos para que algumas comunidades não fiquem ainda mais desprotegidas? Porque à iniciativa privada não interessa pagar por isso. Alguns de nós vamos atrás de vocês com admiração, dizendo “isso é o que se deve fazer, por favor, já”.
Sharine: Nem tudo funciona. A realidade é muito distinta do que planejamos. Mas há, sim, um caminho e há uma intenção, pelo menos neste governo Lula, de mudar um pouco as coisas. Não sabemos o que vai acontecer nas próximas eleições.
María: A questão agora é saber o quanto consolidamos as instituições que foram sendo construídas na chamada transição, dentro do velho PRI, ditatorial, para uma nova maneira mais democrática. Mas não houve como amarrar as leis de forma que isso não pudesse ser destruído. Isso não foi feito. Então, fica tudo assim…
Sharine: É muito mais fácil destruir tudo, mas construir é muito difícil, leva anos…
María: Exatamente.
Sharine: Era isso. Obrigada!
María: Eu que agradeço, Sharine.