Canclini na Cátedra

Entrevista com Mishelle Muñoz. Realizada presencialmente, em Tlalpan, Cidade do México (México), no dia 07 de março de 2024

Sharine: Obrigada pela entrevista. Com que linguagens vocês trabalham?

Mishelle: De todo tipo. Nós não temos um enfoque somente em teatro, somente em dança… Nós começamos a rede… Um dos objetivos é a vinculação entre disciplinas, porque algo que acontece muito no México e, bom, acho que em muitos lugares, é que se agrupam por disciplina. Ou seja, os de teatro se juntam com os de teatro, os de música com os de música, os de dança com os de dança. Na realidade, mais do que o disciplinar, nos interessa essa vinculação que possa haver entre todos. Isso é o que mais tem nos interessado. Por isso, todo o nosso enfoque de trabalho tem a ver, em geral, com a cultura, com as artes.

Sharine: Que interessante. Vocês não têm recursos públicos?

Mishelle: Diferentemente de outros países… Obviamente, no México há fundos, há várias estruturas de financiamento. Mas a pesquisa independente praticamente não existe. Ou seja, cada um faz com seus próprios recursos. De fato, acho que é muito complicado encontrar fundos ou áreas específicas para qualquer tipo de pesquisa artística. Certamente, conversando com outros acadêmicos, acadêmicas, lhe contarão como é a situação em cada área. Às vezes, sim, há, por exemplo, pesquisa em artes cênicas no Instituto Nacional de Bellas Artes e há uma área específica para isso. Mas, nacionalmente, penso que não há uma política tão clara de pesquisa artística, o que deixa a todos… Digo, não fazemos somente pesquisa. Começamos fazendo difusão, produção de eventos, e muitas outras coisas. Mas pesquisa é muito estranho, porque quando tentamos nos inscrever em editais, nos dizem: “mas qual o produto artístico? O que você vai fazer? Canções? Obra?” E a resposta é “não”, pois queremos fazer um texto, queremos arrecadar informação ou queremos fazer um mapa das instituições e do público, quantas pessoas… “É um projeto digital ou impresso?” Então, no México, se você não faz produção artística, não é considerado pesquisa…

Sharine: Podemos voltar um pouco. Poderia falar sobre sua trajetória pessoal e profissional e, também, sobre o que fazem para que eu compreenda melhor?

Mishelle: Estudei administração na Faculdade de Contabilidade e Administração. Uns anos depois, fiz mestrado na North Management na King’s College, em Londres. Então, minha perspectiva era justamente estudar política cultural com um olhar muito internacional sobre o que acontece no mundo. Acho que, no México, acontecem muitas coisas. Há tanta coisa no México que ficamos no México. Às vezes é muito difícil ter um olhar mais global. Eu trabalhei um pouco na universidade, na UNAM [Universidade Nacional Autônoma do México], logo que terminei o mestrado. Eu já participava do Pasaporte Cultural, já estava fazendo algumas coisas há vários anos. Mas, retornando do mestrado, aconteceu algo muito particular: eu regressei e, pois, a esquerda havia ganhado a presidência do México. Ou seja, eu regressei justamente em 2018 e haviam ganhado várias disputas. Foi todo esse fenômeno de Andrés Manuel López Obrador. Uma moça que é deputada aqui de Tlalpan me convidou para trabalhar com ela. Eu mandei uma mensagem nas redes sociais e ela me disse: “ah, sim, vamos conversar”. Passei uns anos a assessorando no Congresso da cidade. Então, digamos que, sim, estive vinculada à política pública, à legislação. Há um ano já estou em tempo integral na universidade. Agora estou dando aulas. Dou aulas de finanças, de empreendimento, de política cultural na Faculdade de Artes da UNAM. Então, agora sim, estou mais na área acadêmica. Na verdade, já estamos há quase oito anos trabalhando no Pasaporte Cultural. É uma cooperativa, constituída formalmente apenas em 2019, e somos oito pessoas. Nasceu, na realidade, em 2015, juntando vários companheiros que estavam terminando a licenciatura. Vários deles haviam estudado artes visuais. Então, surgiu a ideia: “por que não nos juntarmos?”. Em um primeiro momento, queriam abrir seus ateliês de desenho e oficinas de artes visuais. Depois, se deram conta de que havia muitos outros tipos de espaços, que havia teatro… Aqui mesmo, a uma quadra, fica o TACO [Talleres de Arte Contemporáneo], que faz artes gráficas. Souberam que havia muitos tipos de espaços, mas que realmente não estavam vinculados. Não há um catálogo onde você possa ver tudo o que acontece na cidade. Há informação, mas não está organizada. Em 2015 surgiu a ideia de fazer o Pasaporte Cultural para ter um catálogo conjunto, que era impresso e tinha as atividades de todos. Era financiado com o que cada espaço podia aportar. Eram feitos festivais, eram feitos eventos, eram feitos, por exemplo, circuitos nos bairros para que as pessoas conhecessem os espaços, a história do lugar. Faziam muitas coisas. Em 2019, me ocorreu e lhes disse: “Ouçam, já podemos fazer uma cartografia mais ampla, não?”. Nós, na Cidade do México, já havíamos trabalhado com mais ou menos 45 espaços culturais. Mas nos chamava muita a atenção ou nos interessava muito poder identificar quais eram os espaços ou quais se assumiam como espaços culturais. Na verdade, em 2019, desenhamos um questionário. Há uma metodologia. Dissemos: “vamos lançá-lo em redes sociais e ver o que acontece”. A verdade é que não esperávamos. Ou seja, dissemos: “qual alcance pode ter algo em rede?”. Além disso, nada de fundos e nada de dinheiro. No primeiro ano, foram registrados quase 600 espaços em todo o país. Em 2019, decidimos lançar essa cartografia digital e foi uma mudança muito forte para nós porque o projeto, até aquele momento, era baseado na conexão presencial. Não gostávamos de fazer nada digital. Sim, fazíamos várias coisas, obviamente utilizávamos redes e coisas assim. Mas nós nos baseávamos na conexão presencial. Em 2019, dissemos: “vamos lançá-lo”. Vimos que havia centenas de espaços no país. O primeiro mapeamento foi complicado. Passamos meses no computador, revisando todo o arquivo, fazendo essa cartografia digital. Assim, ano após ano, fomos lançando uma chamada. A pandemia foi bastante complicada. Foi o segundo ano em que fizemos o mapeamento, em que lançamos o questionário e acrescentamos perguntas sobre a pandemia: “Como estavam funcionando os espaços?”. Aí tivemos muita informação. Até agora, há quem nos diga: “vocês são os únicos que têm uma radiografia do antes, durante e depois”. Até mesmo as instituições trataram mais de reagir. Nós já tínhamos o mapeamento de 2019. A UNAM, acho que em 2020 ou em 2021, lançou uma pesquisa de consumo cultural. Ou seja, começaram a mobilizar muitas pesquisas sobre a situação laboral e a situação dos espaços. Mas ninguém tinha o antes, ninguém tinha feito, pois não era uma situação de emergência, mas somente para saber o que estava acontecendo. No México, passamos dez anos sem atualizar o Sistema de Informação Cultural, o SIC, onde está a infraestrutura. Está lá, é uma referência, claro que consultamos, é útil. Mas não está atualizado e, obviamente, no SIC não estão os espaços independentes. Não há uma definição nacional ou federal sólida. Na pandemia e, depois, pela emergência… De fato, fizemos uma entrevista com eles, no Centro Cultural del Bosque [Chapultepec], que coordenaram um edital para teatros. Eles lançaram logo um edital para ajudar as companhias e dar dinheiro e coisas assim. Eles queriam também a base de dados. Dissemos: “não podemos dar porque são dados privados”. Também é muito trabalho. Nós dissemos: “é muito trabalho”. Porque queriam somente teatros e dissemos: “nós mapeamos quem se assume como espaço cultural independente, não necessariamente teatro, livraria ou música, gastronomia, outras coisas.” Até agora tem sido justamente o tema do mapeamento que tem modificado as perguntas. Para nós é muito importante a confiança que as pessoas têm no projeto. Em muitos casos, preferem dar as informações para nós e não para o estado. Na pandemia, muitos disseram: “nós não vamos entrar em nenhuma plataforma oficial porque não confiamos no governo”. Então, como construir essa confiança ao longo dos anos? Também é complicado, não? Como manter esses dados assim?

Sharine: São 600 espaços na Cidade do México ou em todo o país?

Mishelle: Em todo o país. Atualmente, temos quase mil registrados, já são quase mil espaços.

Sharine: Como trabalham com esses espaços? É uma cooperativa no sentido jurídico? Dão apoio jurídico aos espaços?

Mishelle: Bom, na verdade, é como uma cooperativa, pois funcionamos de modo… Somos oito pessoas, trabalhamos com projetos e dividimos o trabalho. Hoje estamos pensando em como continuar o mapeamento, porque nós nunca cobramos nada por esse trabalho e já são quatro ou cinco anos. Também dá trabalho dimensionar, valorizar esse trabalho. A plataforma está aí, é digital, pode ser consultada. Não sabemos muito bem se lançamos uma pesquisa, por exemplo, para conhecer como as pessoas a utilizam. Chegaram muitas respostas, na verdade. Mas estamos nos questionando como continuar. Porque sem fundos e somente com nosso trabalho, ao menos o projeto de mapeamento, de pesquisa, está complicado de manter. Todas as demais atividades se sustentavam um pouco por meio de venda de ingressos. Se fazíamos uma exposição, se fazíamos um festival, em tudo, mais ou menos, tínhamos patrocínios ou tínhamos uma fonte de recurso. Mas o mapeamento e a pesquisa não têm fundos públicos e, além disso, não cobramos nada dos espaços.

Sharine: O que fazem? Colocam o mapeamento no site?

Mishelle: Sim, desde 2019, o mapeamento é público, aberto e gratuito. Ou seja, está em uma página da internet e todos podem consultar. Obviamente, não tem dados privados. Ou seja, não tem os dados das pessoas que dirigem o espaço, mas podem consultar suas redes sociais, sua descrição. Todos os dados assim estão disponíveis.

Sharine: Vocês têm um espaço cultural também?

Mishelle: Não, nós não temos. O escritório fica muito perto daqui. Mas não temos espaço cultural. Temos assessorado vários espaços. Realizávamos as atividades justamente como uma rede, em vários desses espaços.

Sharine: Então, fazem somente assessoria?

Mishelle: Exatamente.

Sharine: É uma assessoria para que os espaços se inscrevam nos editais ou para que?

Mishelle: Não. Normalmente, são assessorias para sua estrutura fiscal ou sua estrutura contábil. A verdade é que muitas coisas também são de política pública. Por exemplo, se a prefeitura quer fechar um espaço, então conectamos pessoas que possam ajudar, mas tudo é muito solidário. Não há nada muito estruturado.

Sharine: Bom, podemos entrar um pouco no tema… Eu tenho gráficos aqui que mostram o orçamento da função cultura do governo federal brasileiro. O orçamento vinha caindo desde 2014 e começou a subir de novo depois da Lei Aldir Blanc. Esta imagem é sobre a mobilização social pela legislação, realizada pelo YouTube.

Mishelle: Eu me lembro que foi bastante movimentado. De fato, quando estavam nas conversas, aqui estávamos em uma discussão sobre a Lei de Espaços Culturais Independentes. Eu me lembro de que convidaram justamente a deputada que estava aqui. Acho que esse nível de mobilização, no México, seria muito complicado porque há muitas décadas há uma atomização dos movimentos sociais. Tivemos muitas décadas de mobilização e euforia, que se concretizaram, digamos, em 2018. Sinto que muitos movimentos apoiaram a chegada de Andrés Manuel López Obrador. Mas, no tema da cultura, acho que estamos muito desarticulados. Sim, há redes, sim, há pessoas fazendo coisas, sim, há estados da república onda há redes locais, como Xalapa [Veracruz]. Lá todo mundo se conhece e são super solidários. Lá há um ecossistema muito específico. Mas há estados onde ninguém fala com ninguém, ou seja, é sempre assim. Está muito desarticulado, eu acho, o tema dos espaços. Não há uma organização desse tipo, nem sequer o orçamento seria algo que nos mobilizaria.

Sharine: O que os artistas, os movimentos pensam da política cultural do governo atual?

Mishelle: Não sei… Eu sinto que há muitas comunidades. Há os que estão muito descontentes com o governo porque ele chegou com uma narrativa contra a classe média, como se dissesse: “as bolsas para irem à França acabaram, as bolsas para irem a tal lugar acabaram”. Mas eu diria que há outras comunidades que estão muito na base deste governo, as comunidades indígenas, as comunidades afromexicanas. Com a descentralização, os apoios não ficam na Cidade do México. Então, acho que depende. Em outros estados, talvez tenha havido um apoio forte, direto. Aqui na cidade, muitos diriam que não estão contentes porque o dinheiro começou a sair e já não se concentra aqui. Acho que algo que incomodou muito foi que não houve fundos de emergência durante a pandemia. Isso, sim, é algo que foi muito exigido, pelo tema do trabalho artístico e para os espaços. Acho que depende também… O cinema vai melhor, sempre. Então, há mais fundos para o cinema agora. Eu acho que depende do setor.

Sharine: O que você pensa da federalização da cultura aqui no México? Este era um fato importante na Lei Aldir Blanc, o repasse do governo federal para os estados, os municípios. Penso que é um pouco diferente do que acontece aqui.

Mishelle: Sim, é diferente porque, embora estejamos federados, há certas coisas no México que estão muito centralizadas. Não soltam esse poder. Há outros aspectos a que os municípios e os governadores podem se dedicar e gerar política pública. No tema da cultura, sinto que realmente não é um eixo, obviamente, estratégico nem prioritário. Supõe-se que há uma mesa de coordenação entre todas as secretarias de cultura estaduais. Há estados da República que não têm uma secretaria de cultura, que têm somente um instituto ou que dependem de educação ou que têm um instituto de esporte, de turismo, de tudo, e lá está cultura. Eu acho complicado, principalmente porque há uma desconfiança muito grande entre níveis de governo e a estrutura partidária. O que acontece é que aqui se vota separadamente. Às vezes, o governador é de um partido, mas o município é de outro. Isso não está alinhado, pois, obviamente, um partido não vai dar dinheiro ao partido contrário. Então, seria muito complicado, não? Os fundos estaduais e municipais para a cultura são muito específicos. Usualmente, são somente para infraestrutura ou já estão carimbados: “pode usar este dinheiro para este edital para povos indígenas”. Então, realmente não têm muita margem. De fato, desde 2018, foram cortados muitos fundos para a Cidade do México porque disseram: “a Cidade do México já tem seu orçamento, agora que seja o governo estadual a destinar recursos para a cultura”. Mas o governo federal já não vai destinar recursos para a cidade. Sinto que seria algo complicado pensar que pudesse acontecer. Nem mesmo acredito que os cidadãos pediriam isso porque não há tanta confiança. O que problema é que a ideia dos fundos públicos para a cultura está muito centralizada. Até mesmo os artistas, se você diz: “Conhecem o FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes]?”. Às vezes conhecem o fundo máximo, mas não conhecem o fundo de sua alcadía. O governo aqui do território também tem fundos. Por exemplo, aqui em frente está o governo desta alcadía, um das 16 alcadías. Tem fundos para a cultura.

Sharine: E fazem editais?

Mishelle: Fazem editais e também têm fundos. Também os municípios. São três níveis de governo. Têm dinheiro, na realidade, mas normalmente toda a atenção é voltada para a federação.

Sharine: Por alcadía, você quer dizer, por exemplo, Coyoacán…

Mishelle: Coyoacán, de fato, tem dinheiro para a cultura. Mas não é tão transparente. Ou seja, não sabemos para onde vai. A rubrica da cultura pode ser desde “comprei flores para dar às mães” até festivais. A cultura, às vezes, é uma capa muito pouco transparentes, até mesmo, talvez, para a corrupção. Mas as alcaldías na Cidade do México têm até mais dinheiro do que a própria Secretaria de Cultura para fazer política cultural.

Sharine: Fazem também editais? Os artistas podem enviar os projetos?

Mishelle: Fazem oficinas e, também, têm infraestrutura. Isso elas têm.

Sharine: O que você pensa das mudanças na Secretaria de Cultura, no FONCA, de tudo isso que aconteceu?

Mishelle: Eu sinto que algumas mudanças eram, sim, necessárias. Havia muitas coisas. Em todo o país, o pedido era que tudo tinha que mudar, ou seja, tudo tinha que ser revisto. O que acontece? O presidente, assim como uma pessoa limpa sua bolsa, esvaziou tudo. Disse: “pois, para limpar, tenho que tirar tudo ou encerrar. Vou revisar como estão as coisas”. Sinto que algumas coisas, de fato, não foram bem-feitas. Ou seja, foram feitas com muito pouco tato. Por exemplo, o FONCA causou muita comoção porque nunca foi uma proposta de campanha que iriam transformar o fundo, mudar ou que iriam extingui-lo e foi uma das primeiras coisas que fizeram, sem consultar a comunidade. No México, não há canais tão institucionais de governança da cultura. Eu diria que temos, nas leis, algumas coisas, mas que funcionem para ativar, não. Acho que esse é um dos principais problemas. Ou seja, para além das mudanças, é como as pessoas podem ou não participar, dizer: “isso me interessa, isso não”.

Sharine: Não há conselhos de cultura?

Mishelle: Por exemplo, supõe-se que cada alcadía deva ter um conselho de cultura, que seja justamente com artistas locais. Mas eu diria que, das 16, talvez três tenham um conselho de cultura. E, nessas três, tiram uma foto e pronto. Ou seja, ninguém nunca sabe como são tomadas essas decisões. Há muito pouca confiança e muito pouca governança pública. O problema disso é que não há espaços de discussão entre os próprios independentes. Às vezes, o governo diz: “bom, vamos ver, vamos fazer mesas de trabalho, mas coloquem-se de acordo”. Pois ninguém está de acordo porque não há mecanismos para se organizarem em rede. As redes que existem são bem pequenas. Aqui na cidade há a RECIO [Red de Espacios Independientes Organizados]. São mais de dez espaços. São redes muito pequenas porque não há… Acho que não é culpa somente dos agentes ou dos artistas, mas também de décadas de mobilizações que eram apagadas com violência. Acho que tem sido muito complicado gerar espaços de diálogo e de participação.

Sharine: Como vivem os espaços independentes? Dos editais?

Mishelle: Eu sinto que os espaços independentes do México são independentes. Desde o primeiro mapeamento, perguntamos qual era uma das fontes de recurso que consideravam mais importante. A maioria disse que são os cursos e oficinas, ou seja, são espaços de formação. Outros disseram que era a bilheteria de seus eventos. E outros disseram que tinham uma cafeteria ou vendiam cerveja ou outros alimentos, outras coisas assim. Mas eu me lembro de que, no primeiro mapeamento, somente 5% disseram que as bolsas eram uma fonte de recursos importantes para eles. Ou seja, realmente os espaços independentes estão fora do radar. Estão muito fora da política pública e fora dos fundos.

Sharine: Entendo. Quando fui a Xalapa, me disseram que têm sim o apoio, que utilizam as bolsas, utilizam os editais…

Mishelle: Todos se inscrevem em bolsas. Todo mundo vai lhe dizer porque todos concorrem a bolsas. Mas essa bolsa é só um pouquinho de tudo o que necessitam. Todos nos inscrevemos. Eu me escrevo em artes e me inscrevo na alcadía. Os que têm mais experiência inscrevem-se em todos os fundos. Em um mesmo ano, inscrevem-se em sua alcadía, no governo e na federação. Mas quando você pergunta o quanto isso sustenta o espaço, pois fica em torno de 5%. Muitos espaços dizem: “esse dinheiro que me deram não é suficiente nem para o aluguel”. Ou muitos espaços dizem: “com isso não pagamos nem os salários”. No México, as bolsas, normalmente, não deixam que você utilize mais de 30% para pagar os salários. Então, todo mundo tem que se mover daqui e dali. Ou seja, todos se inscrevem, mas não é uma porcentagem considerável para sobreviver.

Sharine: O que você pensa da cultura comunitária deste governo?

Mishelle: É como uma mudança de narrativa, eu penso, muito grande: passar do apoio às belas artes, dos melhores artistas, ao comunitário. Soa muito bonito. Em geral, dizem: “que bom que todas as pessoas possam ter acesso, nessa coisa de garantias”. Mas também acho que têm ocorrido muitos problemas no modo como se concebe a cultura comunitária. Vou lhe dar um exemplo que me parece muito claro. No Brasil, disseram: “cultura comunitária é, por exemplo, os Pontos de Cultura Viva porque temos que identificar onde as pessoas já estão organizadas, onde há coisas que já estão acontecendo”. O México disse: “vamos apoiar a cultura comunitária. Como vamos fazer? Em vez de identificar o que já existe, apoiar os espaços que já estão aí, que estão trabalhando, possivelmente há muito tempo, vamos fazer tudo do zero, vamos contratar professores que vão às comunidades, que ensinem música, que ensinem teatro”. Em alguns casos, vincularam-se com algumas redes ou agentes, mas está tudo desarticulado. Ou seja, se você perguntar a um espaço cultural independente: “alguém lhe perguntou algo sobre cultura comunitária?” Possivelmente são lhe dizer: “Estou aqui há vinte anos e não me perguntaram. Abriram um espaço aqui ao lado que agora dá aulas gratuitas e que, além disso, está acabando com meu espaço porque eu tenho que cobrar as aulas”. Em alguns processos, entendo que há coisas que devem ser financiadas completamente, porque não podem se sustentar de outra forma. É como a saúde, em que se deve investir dinheiro. Mas, sim, creio que sua aplicação tem sido problemática. Como pode ser cultura comunitária se vai contratar para fazer tudo do zero? Isso me surpreendeu muito e conversamos com a Secretaria de Cultura, que nos contratou na pandemia. Dissemos: “por que não mapearam antes o que já existe?” Nós mapeamos os espaços, mas há muitas coisas que não têm um espaço físico, como festivais, coletivos. Há muitas coisas que acontecem de maneira itinerante ou espontânea. “E por que não identificaram isso?”. Além disso, têm um sistema que não é atualizado há dez anos. Sua infraestrutura não está atualizada e cada um tem dados diferentes. Ou seja, não há, nacionalmente, uma política pública com conceitos muito claros. Se você diz ao INEGI que é um museu, pois um museu, para o INEGI, é uma coisa, para a Secretaria de Cultura, é outra. Para outra secretaria, é outra. Para os governos estaduais… Cada um tem definições distintas. Não existe, por exemplo, um mapa oficial, nacional, da infraestrutura cultural. Não existe porque realmente não podemos ter. Não fizeram esse levantamento, há muitos anos que não fazem esse estudo. Sinto que os pontos de vista são muito distintos. Aqui na cidade também investiram muito dinheiro. Foi um dos eixos da chefe de governo que agora vai competir pela presidência [refere-se a Claudia Sheinbaum]. Foi dado muito dinheiro para a infraestrutura, dinheiro para os editais. Essa ideia de cultura comunitária, de ir a todas essas comunidades onde não há espaços… A primeira coisa que eu lhes dizia era: “mas onde vocês dizem que não há espaços? De onde tiraram essa informação?” “Se não há uma estatística oficial, eu gostaria de saber como dizem que não há espaços”. Então, nossa luta tem sido um pouco dar visibilidade a tudo isso que já ocorre no território. Infelizmente, vemos como não há orçamento para a pesquisa, nem sequer como processo na política pública. Ou seja, eles dizem: “Já planejei, vamos fazer”. Se quiser fazer, então assina um convênio com as universidades. Ou seja, dá um tempo ou vai fazendo paralelamente, mas pesquisa. Tudo tem sido como: “façamos, façamos, façamos, façamos”. Agora mesmo, se você perguntar a alguém: “onde há um estudo sobre o impacto da cultura comunitária nestes seis anos?”

Sharine: Não há…

Mishelle: Por isso, eu não poderia dizer com certeza minha opinião, porque não tenho dados, não sei a quantas pessoas os recursos chegaram, não sei a que estados, não sei que programas, não sei quanto gastaram. Escutei e sei mais ou menos o que fizeram, mas daí a que tenha dados sobre como fizeram… A verdade é que não tenho…

Sharine: Como é o acesso do público aos espaços independentes? Há público, as pessoas frequentam?

Mishelle: Eu sinto que é bastante complicado. Esse tema dos públicos, digamos, é uma área de pesquisa que é praticamente desconhecida. Ou seja, há quem faça estudos sobre públicos, por exemplo, Ana Rosas Mantecón, que estuda cinema. E há os companheiros de Voy al Teatro, que, mais ou menos, fazem estudos de públicos de espaços independentes. Eu diria que a grande maioria dos espaços que consegue ter um público específico passa anos, mais de cinco, mais de sete anos, trabalhando com esse público muito específico. Mas a grande maioria está se convertendo em um mercado em que, de repente, chega Luis Miguel e todos se endividam para ver Luis Miguel, e preferem isso a pagar ingresso de algo independente. Ou os espaços independentes estão competindo contra o governo, que oferece suas atividades gratuitamente. Então, os independentes realmente estão em um meio muito complicado. Por si já estão lutando por públicos, têm que cobrar, têm que cobrar um pouco mais que outros tipos de teatro. Além disso, a prefeitura não deixa vender café ou cerveja… Então, de onde? Agora, nós estamos na análise de quantos espaços fecharam durante a pandemia, entre 2021 e 2022. Dos quase mil espaço, fecharam 300. É bastante, é uma porcentagem muito alta do mapeamento. Muitos disseram que não conseguiam pagar o aluguel ou que “o governo não apoiou nem com a difusão”. Muito do que os espaços independentes pedem, por exemplo, é aparecer, que sejam feitos clipes ou vídeos e que apareçam no metrô, que apareçam no Metrobús, que apareçam nos pontos de ônibus. É como se dissessem: “não me dê nada”. Seria uma estratégia um pouco similar à que fez Buenos Aires com seus teatros, que é toda uma política pública… Aqui os teatros disseram: “não me dê um peso, eu não quero editais. Mas, pelo menos, apoie-me com difusão”. O governo não quis fazer isso.

Sharine: Entendo. Penso que estamos terminando. Por que as políticas públicas são importantes para as artes?

Mishelle: Eu pensaria mais além de ser importante ou não, se há recursos ou se há orçamentos. Eu diria que, pelo menos no caso do México, ainda temos política pública e legislação que restringem. Ou seja, além de não darem dinheiro, não permitem funcionar. É muito complicado de suportar. Muitos espaços, em muitos tipos de disciplinas, no teatro, no cinema, o que pedem nem sequer é dinheiro. Não pedem editais. O que pedem é que os trâmites sejam ágeis, que sejam claros, que sejam transparentes, que a prefeitura lhes responda, que haja um telefone de alguém que responda, que haja comunicação, que haja governança. De repente um funcionário público tem uma ideia e não pergunta a ninguém… Então, eu sinto que a política pública é importante nesses momentos para não restringir, ou seja, para que possa acontecer, até mesmo a própria liberdade artística, a própria criatividade, e para que possa haver espaços de diálogo. No México, além disso, em um contexto superviolento, é muito complicado que ainda, nas artes, persistam essas violências porque não nos colocamos de acordo. Tudo é conflito, mas não há espaço para gerir esse conflito. Não é que o conflito seja ruim porque há espaços… “Bom, não estou de acordo com a música que você coloca porque eu não acho que isso seja bom para as danças, não sei o que”. Mas não há espaço onde possamos discutir isso. Então, tudo é violência e conflito. E nem sequer falemos de outros tipos de agentes, fora das artes e da cultura, pois há grupos de pais de família que dizem: “eu não quero que haja rock em meu bairro, não quero que as crianças estejam nas ruas, patinando”. Há muita tensão entre os grupos sociais. E nos falta muita gestão desse diálogo para que as artes sejam possíveis porque, neste momento, há muitas coisas que não estão sendo possíveis. No espaço público nem é bom falar. E isso é todo um tema.

Sharine: Por que você diz que não é possível? Porque há a censura?

Mishelle: Por exemplo, na Cidade do México não existe uma permissão para fazer teatro na via pública. Então, se você começa a dançar ou algo assim… Aconteceu em Cuauhtémoc, com uma prefeita, pois chegou a polícia, os fazendeiros, levaram seu equipamento, foi uma loucura. E nem sequer havia cobrança de ingresso. Eram grupos de vizinhos, de pessoas da terceira idade, que se puseram a dançar e a polícia chegou dando golpes. Nem sequer esse tipo de coisas tão simples, como dançar no parque mais próximo de casa, é possível. Isso é muito grave porque não tem a ver somente com se há ou não há dinheiro. Não há institucionalidade para pedir uma permissão, para nos colocarmos de acordo. Eu estou de acordo, por exemplo, que os vizinhos de Coyoacán já estejam fartos da música, de que haja muitas festas ou, em Garibaldi, que cheguem os mariachis e não possam dormir. Estou de acordo que haja tensões. Mas não temos muitos espaços para mediar e o que tem acontecido é que mandam a polícia. Os artistas ainda mais vulneráveis são os que não têm nem sequer um espaço, nem uma rede, nem um coletivo e trabalham nas ruas, no espaço público. Não têm nenhum tipo de proteção jurídica nem de nenhum tipo. Então, está se tornando muito complicado.

Sharine: O que você pensa das mudanças que podem vir com as eleições?

Mishelle: Eu, como muitas mulheres, quero que, por fim, as mulheres tomem o poder. No México, nunca havia existido um governo de esquerda. Esta foi a primeira experiência que, mais ou menos, tivemos, com muitas contradições, com suas problemáticas, sendo um país gigante, com muita violência, com muito conflito. Mesmo assim, na situação em que estávamos, creio que não nos saiu tão mal. Ao menos, há uma esperança em dizer “chega”. Ou seja, as mulheres têm que vir colocar ordem em tudo isso, porque são outras sensibilidades. Agora, ambas as candidatas têm falado do sistema de cuidados [refere-se a Xóchitl Gálvez e Claudia Sheinbaum]. Fala-se de outras coisas e, em geral, acho que há estilos distintos de governar. As mulheres têm, sim, outras perspectivas e temos outras ferramentas talvez, outras lutas muito específicas. Acho que a disputa será interessante, já de entrada, com as propostas. Se chegar uma mulher cientista, por exemplo, me parece que há quase todas as barreiras que poderia haver… Ser cientista, mãe, mulher, etc…

Sharine: A cientista é do partido atual?

Mishelle: Para a presidência, sim, é do MORENA [refere-se a Claudia Sheinbaum]. E, aqui na cidade, vai concorrer Clara Brugada, que é economista. Pois acho que está interessante. Acho que pode haver boas possibilidades. Eu sou da opinião de que nem toda responsabilidade é do governo. Podemos chegar ao melhor governante, mas vai continuar tudo igual porque, abaixo, não estamos de acordo e, infelizmente, vejo isso o tempo todo. Eu lhe disse que dou aulas, estou em contato com coletivos, com redes e lhes digo: “ouçam, vai chegar Clara Brugada. Vocês têm três pontos em que estejam de acordo, que lhe pediriam?”. Não, pois ninguém se dispôs a conversar, ou seja, não temos espaços de discussão, de organização. Essa organização é muito difícil. Por isso, a lei que fizeram parece uma loucura. Em que contexto poderíamos chegar a algo assim para nos colocarmos de acordo e avançar, avançar e avançar? Aqui, o que mais me preocupa… Vejo, de fato, muito boas candidatas, vejo bons perfis. O que não vejo é que estejamos mudando nossa mentalidade no próprio setor. Seguimos com a ideia de que quem chegar deve me dizer como vai fazer. Então, a partir de cima vão nos dizer justamente o que é a cultura comunitária. Não estou vendo algo ao contrário, alguém que diga: “por que, em vez de esperar que nos digam isso, não propomos nós mesmo que isso é o que acreditamos que deva ser a política comunitária?” Em alguns estados, isso aconteceu. Em Jalisco, impulsionaram justamente os Pontos de Cultura Viva, os Vales de Cultura. Ou seja, há, sim, movimentos isolados que vão impulsionando as coisas, mas em nível muito regional. Algo de alcance nacional ainda vejo como muito complicado.

Sharine: Muito obrigada!

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