Canclini na Cátedra

Entrevista com Orlando Elorza. Realizada presencialmente, na Cineteca Nacional, Cidade do México (México), no dia 07 de março de 2024

Orlando: Agora estou trabalhando com uma socióloga da UNAM [Universidade Nacional Autônoma Metropolitana], que é a Dra. Lucía Álvarez. A investigação tinha um pouco a ver com a informalidade do trabalho, com a parte cultural, artística, dos trabalhadores da cultura. Era o que estava abordando. Ao mesmo tempo, estava trabalhando para uma senadora, Susana Harp. Também estive colaborando com ela para analisar um pouco o trabalho em nível institucional dentro da cultura. O que me interessa ao conversar com você é conhecer como se deu essa organização de artistas, esse movimento social, cultural, para gerar a Lei Aldir Blanc. Quando fui à apresentação do livro, de que você participou [Lançamento do livro Emergencias Culturales, Gedisa Editorial, realizado na Feria Internacional del Libro del Palacio de Minería em março de 2024], realmente me surpreendi com o modo como conseguiram, nesse contexto tão desfavorável, tanto pela saúde, pela pandemia, como no contexto político, porque estavam em um governo de direita. Então, até parece paradoxal que tenha surgido esse apoio. Uma das coisas que os artistas e pessoas envolvidas com o movimento me diziam era que faltava organização. Eles tentaram intensamente… muitos, sobretudo gente que trabalhava para o Governo da Cidade do México, que trabalhava em diferentes projetos culturais do governo da Cidade do México, cujos pagamentos estavam atrasados. Chegou um momento em que um grupo de artistas se organizou e impediu a passagem ao Palácio Nacional. Isso foi, creio, em 2021 ou 2020. Eu conversei com um desses jovens, um escritor que fez parte do movimento #NoVivimosDelAplauso. Ele me disse que, ao final, cada um foi para seu lado. Acredito que, pela interdisciplinariedade do artista, teatro, música, artes visuais, cada um tem suas próprias necessidades. Por isso, é muito difícil reuni-los em uma mesma direção. De fato, quando eu conversei com diferentes trabalhadores da cultura que se dedicavam a diferentes disciplinas, era muito difícil reuni-los e entendê-los como um mesmo fenômeno, porque os de cinema tinham conflitos muito particulares, os de teatro tinham conflitos muito particulares e os de artes visuais, literatura… Nesse sentido, eu tinha essa dúvida, também para entender como se poderia, talvez, seguir um certo exemplo do que aconteceu no Brasil. Poderia começar falando qual a sua experiência?

Sharine: É exatamente o que estou fazendo aqui no México, buscando compreender como são os movimentos sociais e, também, as políticas culturais. Me interessava conhecer os movimentos sociais e compreender como se relacionam com as políticas culturais, com o governo, com as instituições. No Brasil acontece exatamente a mesma coisa. Há vários movimentos sociais, vários movimentos culturais, mas que não interagem entre si. Essa interação aconteceu com a Lei Aldir Blanc. Por isso, pensamos: “é uma coisa completamente nova”. É interessante o que está acontecendo no Brasil. De fato, havia movimentos voltados ao teatro, à dança… e cada um queria um edital diferente e uma lei para suas linguagens. Mas, com a Lei Aldir Blanc, os movimentos se uniram contra o governo… Mais ou menos contra, porque também havia, nos movimentos, pessoas de direita. Não era somente esquerda porque, se fosse, a lei não seria aprovada no Senado, na Câmara. Mas os artistas estavam sendo um pouco atacados. Não os artistas em si, mas as políticas culturais. Muitos diziam: “os artistas não trabalham, vivem do dinheiro das leis”. Isso não é verdade, claro. As leis são importantes, mas também há leis para o agronegócio, por exemplo, e para outras coisas, como há para as artes, a educação, a saúde. Mas havia um desentendimento entre alguns artistas e o governo.

Orlando: Houve algum tipo de líder, algum tipo de coletivo que foi o que mais exerceu?

Sharine: Não. Foi impressionante porque não havia líderes nos movimentos. Era, de fato, um movimento coletivo. Mas havia, sim, uma experiência dos Pontos de Cultura, uma experiência de comunicação muito importante. Não sei se você conhece os Pontos de Cultura, a Política Cultura Viva…

Orlando: Ah, sim. Exatamente.

Sharine: Foi criada nos anos 2000 no Brasil. Ainda existe, não com tanta força como antes, mas existe. As pessoas que participavam desse movimento tinham uma experiência de comunicação, de trabalhar com as redes sociais, com a rádio comunitária, por exemplo. Então, houve um movimento de comunicação muito importante por parte dessas pessoas, que eram, ou que ainda são, dos Pontos de Cultura e tinham essa experiência.

Orlando: Eram professores dos Pontos de Cultura ou simplesmente voluntários que estavam nesses Pontos?

Sharine: Eu entendi sua pergunta porque também fazia essa confusão. Aqui no México, a Cultura Comunitária são oficinas nas comunidades, mas, no Brasil, não. É completamente diferente. No Brasil, são espaços culturais que já existiam, que recebem um selo do Governo Federal e podem se inscrever nos editais para receber um recurso e continuar fazendo o que já faziam.

Orlando: Pelo que entendo, não é necessário ser um artista, certo? Ou seja, você faz parte de uma comunidade, recebe um orçamento e, a partir disso, gera um projeto cultural ou algo assim, não é verdade?

Sharine: Não há, de fato, a figura do artista como é tradicional, mas sim da cultura comunitária. Então, você pode ser um artista, de fato, um artista de teatro, por exemplo, ou uma pessoa dos espaços quilombolas, da cultura negra. Há muitas possibilidades, não somente as artes tradicionais, mas outros tipos de práticas culturais, como a poesia popular, por exemplo, o teatro popular, a dança popular, coisas assim, o grafite…

Orlando: Muitos dos artistas ou dos gestores culturais com quem conversei sentem que abandonaram o artista tradicional, o artista da cidade, os apoios para eles e que grande parte do orçamento foi direcionado para as comunidades. Então, a perspectiva de algumas pessoas que entrevistei era essa: “estão nos deixando de lado” porque a perspectiva do governo tem a ver mais com esta: “vamos dar cultura aos menos favorecidos”. Não aconteceu algo similar no Brasil?

Sharine: Sim, um pouco. Havia um pouco essa discussão: “não há políticas para as artes, somente para a cultura comunitária”. Mas acho que não era uma questão tão forte no Brasil porque foi um período de crescimento. A cultura tinha um orçamento, de fato, maior do que já havia tido na história brasileira. Tentei fazer esse estudo, mas não consegui porque tivemos várias mudanças de moeda no Brasil. Então, não sei como comparar o orçamento dos anos 1970 ou 1980 com o orçamento dos anos 2000. Talvez nos anos 1970 ou 1980 o orçamento fosse alto também. Mas não nos anos recentes.

Orlando: Você está na USP?

Sharine: Sim, na USP.

Orlando: Em Filosofia e Letras?

Sharine: Não, de fato, não é uma faculdade. É um instituto de pesquisa.

Orlando: Eu fiz um intercâmbio em Filosofia e Letras.

Sharine: Que interessante.

Orlando: Me encantou.

Sharine: Tínhamos pouco orçamento. Quando começou o governo Lula, começou a aumentar e, depois, caiu novamente. Mas estávamos nessa situação de crescimento.

Orlando: Este foi o período com Gilberto Gil?

Sharine: Sim, com Gilberto Gil, até 2008.

Orlando: Gilberto Gil esteve somente por dois anos?

Sharine: Não, desde 2003. De 2003 até 2008.

Orlando: Com ele começa o Cultura Viva, não?

Sharine: Sim, com ele.

Orlando: Depois vem alguém mais… Mas nota-se uma diferença. Em quanto está, mais ou menos, o orçamento para a cultura no Brasil? No México, deve estar mais ou menos com 1 bilhão de dólares, algo como 15 bilhões de pesos.

Sharine: Sim. Neste gráfico, a linha mais clara é do México e esta é do Brasil.

Orlando: Estamos, sim, com mais ou menos 1 bilhão de dólares, que são como 15 ou 16 bilhões de pesos. Vocês estão com 800 milhões de dólares a partir de Bolsonaro. Ou seja, foi muito reduzido. Na Lei Aldir Blanc, quanto foi o orçamento?

Sharine: 500 milhões de dólares.

Orlando: Há algo que me chama a atenção. Perguntando a algumas pessoas que conheci em São Paulo, alguns haviam se beneficiado, mas não tinham tanta ideia da lei. Ou seja, você acha que faltou um pouco de difusão no próprio Brasil sobre algo tão transcendente em nível cultural? Eu diria, até em nível global.

Sharine: Sim, claro. Houve muita mobilização social. De fato, houve uma mobilização que foi impressionante.

Orlando: Em São Paulo?

Sharine: No Brasil. Havia reuniões por Zoom com mil pessoas, por exemplo. Mas acho que, de fato, alguns artistas não são politizados. Então, escutavam sobre a lei e participavam dos editais. Mas não sabiam como aconteceu. De qualquer forma, chegou a uma quantidade de artistas que antes não tinham acesso às políticas culturais.

Orlando: Era, mais ou menos, por exemplo, como em países como Alemanha e França? Há alguns apoios econômicos para artistas, mas você tem que demonstrar tais experiências, tem que realizar tantos eventos culturais… Exigiam algo assim para ter acesso à Lei Aldir Blanc?

Sharine: Sim, isso acontece no Brasil. É uma das críticas: é necessário comprovar, é necessário ter um pouco de experiência com as políticas, com a comprovação dos gastos e tudo isso…

Orlando: Mas não eram tão exigentes… porque tenho entendido… Por exemplo, nesses países do Norte, sim, são muito exigentes, no sentido de que muito poucas pessoas conseguem ter tal número de eventos, concertos, exposições… Nesse caso, não era tão complicado…

Sharine: Não tanto. Mas há alguns editais que são, sim… O que acontece no Brasil é que os modelos dos projetos são um pouco complicados. É necessário ter um cronograma, uma planilha de custos. E muitos artistas não sabem como fazer isso. Mas, o que aconteceu com a Lei Aldir Blanc é que foi descentralizada. Então, o recurso chegava aos estados e aos municípios. Houve muito pouca regulamentação por parte do Governo Federal.

Orlando: Houve programas específicos para esta lei?

Sharine: Não. Havia linhas gerais. Mas não uma regulamentação do Governo Federal. Era um governo de direita e fizeram a regulamentação em poucos dias. Não havia nada muito específico. Então, o que aconteceu? Cada estado e cada município fez de uma maneira diferente. Temos mais de 5 mil municípios no Brasil. Cada um recebeu o dinheiro e aplicou de uma forma um pouco diferente.

Orlando: Estes 500 milhões de dólares foram repartidos pelos estados e municípios?

Sharine: Em tudo: nos estados e nos municípios.

Orlando: Mas não davam a um estado e o estado decidia como repartir?

Sharine: Não. 50% para os estados e 50% para os municípios.

Orlando: Que interessante. E você conseguiu pesquisar sobre as políticas comunitárias que foram realizadas nos últimos anos aqui no México, para comparar com as políticas federais do Brasil?

Sharine: Sim, mas é o que eu disse: as políticas comunitárias aqui são muito diferentes das do Brasil. O que acontece? Aqui há oficinas e as pessoas que vão às comunidades para levar a cultura. No Brasil, não é isso. Na cultura comunitária, são as pessoas da própria comunidade que recebem os recursos para continuar o que já estão fazendo.

Orlando: Eu lhe dizia isso e conversava também com outra pessoa do Brasil, que agora é aluna do Eduardo Nivón Bolán. Para mim, a discussão é interessante porque eu tinha essa perspectiva, que é real. De fato, Eduardo e outros analistas da cultura haviam comentado sobre essas políticas comunitárias, sobre esse assistencialismo, esse paternalismo, essa falta, digamos, de entender as necessidades locais. Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de conversar com oficineiros de uma comunidade em Yucatán. Eram dois: um trabalhador comunitário e um artista. O trabalhador comunitário servia como mediador entre as pessoas da comunidade (alguns falam a língua maia). O artista era aquele que tem essa formação acadêmica, que vai levar a cabo toda a estrutura das atividades. E um pouco do que eu entendia é que, sim, há ausência de uma consciência do artista sobre como trabalhar em comunidade. Realmente há um desentendimento. O artista vem com essa ideia que ensinam na Universidade, de galerias, de teatros, de salas de concerto. Mas, na hora de aterrizar nesse tipo de projetos, há um grande desconcerto. Ao mesmo tempo, e sem muita contradição, talvez houvesse uma perspectiva distinta daquela dos analistas de cultura: a felicidade, por parte das crianças da comunidade, de ter esse tipo de possibilidades. E é verdade. Há lugares tão abandonados quanto às políticas culturais e muitas outras coisas, ainda mais essenciais, que esse tipo de programa se torna muito atrativo.

Sharine: Sim, claro.

Orlando: Apesar de não haver uma verdadeira consciência local, há um resultado muito favorável. Isso ajuda a entender um pouco a questão do acesso à arte. Talvez a comunidade em si não esteja pedindo uma aula de pintura. No entanto, será muito favorecida e isso já tem muitas questões positivas. Uma das coisas é que, realmente, é um programa muito pequeno. Creio que atendia somente a duzentos e poucos municípios. Estamos falando, não sei, de 2500 ou algo assim. Por exemplo, no caso de Yucatán, não há mais de dez Semilleros Creativos, dos quais três estão na capital do estado, em Mérida, ou da zona periférica de Mérida. Então, realmente, muito poucas comunidades rurais têm essa possibilidade. Para mim, esse programa é interessante. É muito controverso por tudo o que tem gerado este governo de esquerda, que tem buscado outras abordagens e, ao mesmo tempo, não, porque o orçamento… Há um documento da Câmara dos Deputados muito considerável quanto à política comunitária. O ideal é o que foi feito no Brasil. Mas isso, como princípio, não é nada desfavorável.

Sharine: No Brasil há as duas situações. A maioria das cidades do Brasil não tem uma secretaria de cultura. Tem uma secretaria de cultura, educação, esporte e turismo, enfim, tudo junto. Foi um dos grandes problemas na Lei Aldir Blanc porque não tinham pessoal para receber o dinheiro, para fazer os editais e coisas assim. Não me lembro agora, mas entre 30% e 40% das cidades têm um centro cultural ou um teatro. A maioria não tem espaços culturais. Então, esse é um problema no Brasil também. Por exemplo, em São Paulo, temos os dois programas. Há os CEUS [Centros Educacionais Unificados]. São centros culturais em que há, sim, as oficinas, há as artes tradicionais. Lá, há esse modelo das políticas mais tradicionais, de levar as artes, levar o teatro para as comunidades das periferias. Mas a lógica dos Pontos de Cultura foi completamente outra: não levar a cultura, mas aproveitar a cultura que já existe. Há um exemplo que, para mim, é muito importante, que está no livro [Emergências Culturais, Edusp, 2023]. Chama-se Nós do Morro.

Orlando: Onde está?

Sharine: No Rio de Janeiro. É um grupo de teatro que se chama Nós do Morro e que é um Centro Cultural também. Não há somente o teatro, há também o cinema, o audiovisual. Está em uma comunidade muito emblemática do Rio de Janeiro, que se chama Morro do Vidigal.

Orlando: Está nas periferias, é uma favela?

Sharine: É um grupo de teatro que foi formado por um ator [Guti Fraga]. Ele conta, na entrevista que eu fiz. Acho que nasceu em Brasília, na capital. Não sei se foi em Brasília, mas foi na região central do Brasil, e foi para o Rio de Janeiro. Era de uma família muito pobre. Foi estudar teatro. Depois, foi trabalhar na Rede Globo, que é uma emissora de televisão importante no Brasil.

Orlando: Eu conheço.

Sharine: Ele viajou para os Estados Unidos e viu os pequenos teatros que há lá, não somente as grandes versões da Broadway, e pensou: “eu vou viver nesta favela e vou criar um grupo de teatro”. Então, criou lá esse grupo, que é o Nós do Morro.

Orlando: É “Nós do Morro” como “nuestro“?

Sharine: Não. “Nós” como “nosotros” do “morro”, porque “morro” é um sinônimo para “favela” também. “Nós” pode ser também “nó”. Então, há um duplo significado: “nós” como “nosotros” e como “nudo“.

Orlando: “¿Nudo del Morro?”

Sharine: Sim.

Orlando: Que interessante. Vou pesquisar sobre eles.

Sharine: São um dos primeiros Pontos de Cultura no Brasil, são certificados como Ponto de Cultura. Então, eles fazem um teatro da comunidade. Já foram convidados para ir à Inglaterra, apresentar Shakespeare, por exemplo. São internacionais, de alguma maneira. Mas, além dessas produções internacionais, fazem o teatro que fala da comunidade, com atores da comunidade. Há, por exemplo, uma pessoa que trabalha fazendo limpeza em casas de classe média, mas é, também, atriz nesse grupo. São as pessoas da comunidade, que cresceram aprendendo o teatro, a trabalhar com a comunicação, a fazer cinema e, agora, são também diretoras e têm sua própria produção. É um grupo criado na comunidade, não são pessoas de fora da comunidade que vão ensinar.

Orlando: Agora, enquanto você falava isso, eu pensava. Há alguns anos, eu fiz um trabalho sobre o patrimônio imaterial em povos urbanos. São zonas rurais. Mas, ao mesmo tempo, fazem parte da Cidade do México. Então, são muito periféricas, estão muito longe da cidade. Essa comunidade em que eu ia chama-se San Andrés Mixquic. Está, mais ou menos, a duas horas e meia daqui, já com o metrô. Antes eram três horas, talvez. De fato, o Governo da Cidade do México, não me lembro exatamente o programa, deu um recurso a essa comunidade. Também decidiram utilizá-lo para construir um teatro comunitário. A questão é que uma das pessoas, digamos, esse interlocutor, esse ator chave era muito inteligente, muito culto, havia estudado história na UNAM. Era uma pessoa com muita iniciativa nesse sentido, na questão do patrimônio. Ele geria esse teatro. Então, havia muitas atividades desse tipo, algumas artísticas, de iniciação artística. A questão é que, depois, entrou outro grupo para administrar o teatro, que também tinha boas intenções. Eu conhecia. No entanto, esse outro grupo não tinha, talvez, essa consciência artística e, por isso, concordo com o que você está dizendo… Ao final de contas, não sei qual a sua opinião… Como equilibrar a decisão da comunidade, mas dar a ela também essa possibilidade de sofisticação da arte? Não sei se no Nós do Morro eles realizam práticas certamente sofisticadas de teatro…

Sharine: Sim, claro. Tanto que foram convidados a ir à Inglaterra.

Orlando: Para que fossem convidados à Inglaterra é porque têm certas capacidades artísticas interessantes. Então, como conseguem esse equilíbrio entra a arte acadêmica tradicional e a necessidade? Não sei como essa comunidade conseguiu. O que você pensa a respeito?

Sharine: Não sei. Penso que são experiências distintas. Eu falei sobre esse grupo, mas há outros. Em São Paulo, há um grupo de que gosto muito, que se chama Coletivo Negro. Também é formado por pessoas que vêm das comunidades, mas que estiveram na universidade. Não tenho certeza, mas acho que um dos diretores estudou na USP [Universidade de São Paulo]. Ele nasceu na periferia. Então, há esse trânsito entre a linguagem tradicional e a linguagem das periferias, como o hip-hop, o grafite. Eu não vejo muitos grafites aqui na Cidade do México…

Orlando: Não é como em São Paulo. Há uma cultura muito mais forte de grafite lá.

Sharine: Falamos de toda uma cultura hip-hop. Não somente a música, mas também o grafite, o teatro, a linguagem corporal, a maneira de se vestir. Há tudo isso. Mas estou falando das grandes cidades. Quando vamos para o interior do Brasil, é distinto. Há mais artesanato… O que também aconteceu com a Lei Aldir Blanc foi que os prefeitos contratavam shows de artistas já conhecidos para as pequenas cidades. Isso ocorreu um pouco.

Orlando: Nem tudo foi perfeito, ou seja, também houve esse recurso muito comercial, não? Essa é a questão: o comercial, o artístico… Tampouco temos essa ideia de impor. Você tem que saber quem é Beethoven e quem é Miró ou Tchaikovsky. Mas, ao mesmo tempo, creio ser mais favorável que ofereçam o artista pop, da moda, das emissoras de televisão, da Globo, Televisa. É necessário esse equilíbrio, não? Nesse sentido, acredito que o artista independente jovem tem aí um papel muito importante. Aqui no México, na Cidade do México, há um acesso cultural muito interessante. Por um lado, dizem que a cultura está muito centralizada. A parte central e a parte do sul são basicamente onde tudo se desenvolve e, nas partes periféricas, quase não há teatros, se é que chega a haver um. Mas, ao mesmo tempo, há políticas culturais como: aos domingos, ninguém paga a entrada aos museus do INBAL [Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura]. Então, é possível ver exposições de artistas internacionais e pessoas de todo o tipo vão ver. Há grandes filas para entrar no Bellas Artes, em San Ildefonso, etc. Também há muitos jovens artistas que, para ter acesso a esses espaços, é muito complicado.

Sharine: As pessoas das periferias vão aos museus?

Orlando: Estou intuindo um pouco. Não sei se das periferias como tal. Acredito que muito não… Não sei se você já foi ao centro histórico no domingo. É um espaço totalmente popular. Pessoas de muitas áreas da cidade, não sei especificamente de onde, seria interessante saber, veem como seu passeio familiar. Caminham um pouco pelas lojas, podem entrar em um museu, têm esse tipo de acesso. E são pessoas de todo tipo. Não é como quando vai ao MUAC [Museu Universitário de Arte Contemporânea] em uma quarta-feira, onde, talvez, haja acadêmicos ou artistas que vão a esse tipo de espaço. Nesse caso, você vê todo tipo de perfis.

Sharine: Que bom. Penso que o acesso ao museu aqui no México é maior do que no Brasil. Tenho um gráfico também. Ele mostra os que não têm acesso, não os que têm.

Orlando: Em que sentido? Acesso econômico?

Sharine: Há pessoas que nunca foram ao museu. 68% dos brasileiros nunca foram ao museu, mas, no México, somente 45%.

Orlando: Esse dado é muito interessante.

Sharine: Não está atualizado porque não consegui dados mais recentes do México. Mas os do Brasil estão atualizados. Os dados são do CONACULTA [Conselho Nacional para a Cultura e as Artes].

Orlando: Agora mesmo estava pensando… É um bilhão de dólares no México e, no Brasil, está em mais ou menos 600, 800 milhões. Mas, ao mesmo tempo, vocês têm a possibilidade do SESC [Serviço Social do Comércio], que tem um orçamento cultural bastante amplo. Acho que, no Brasil, o orçamento é mais alto…

Sharine: Sim, esses dados se referem somente ao orçamento federal. Não consegui comparar todo o orçamento porque, no Brasil, o orçamento municipal e estadual é maior que o federal para a cultura.

Orlando: Então, nesse sentido, já se equilibra bastante, não?

Sharine: Sim, eu só comparei a função cultura dos dois países porque eram os dados equivalentes. Mas não consegui comparar o total porque não tinha todos os dados do México nem todos os dados do Brasil. Mas o SESC é uma outra situação. Não entra neste orçamento.

Orlando: Entendo. Mas, ao mesmo tempo, vemos como, em grandes linhas sobre acesso cultural, dá muitas possibilidades às comunidades. Claro, como tudo, está concentrado, pelo menos em São Paulo. Está concentrado em lugares muito específicos, não? E, também, acontece que apenas alguns setores entram. Alguns talvez não se sintam convidados a acessar.

Sharine: Por isso perguntei sobre o acesso… O SESC é nacional, mas funciona bem, especificamente, em São Paulo. Se vamos a outros lugares, é diferente. Funciona bem porque havia um diretor, que morreu no final do ano passado, que se chamava Danilo Miranda. Ele ficou à frente do SESC São Paulo por cinquenta anos e tinha uma visão muito distinta das artes, da cultura. Então, conseguiu fazer o que hoje conhecemos como SESC São Paulo. Mas é diferente se vamos ao Rio de Janeiro, a Minas Gerais, é outra relação. O SESC trabalha com dinheiro público porque trabalha com impostos. Mas é uma instituição privada.

Orlando: Ao final, minha experiência foi ver como existe essa boa possibilidade tanto para o público quanto para artistas independentes terem esse tipo de apoio. Acho que, nas políticas culturais, isso é muito favorável. Eu queria que existisse algo assim no México.

Sharine: Este é um problema no Brasil. Vou voltar um pouco. Fui coordenadora da Funarte [Fundação Nacional de Artes] em São Paulo. Não sei se você conhece. É uma instituição do Ministério da Cultura que trabalha com as artes.

Orlando: Da prefeitura?

Sharine: Não. Do Ministério, do Governo Federal. Eu sou servidora pública no Brasil, além de fazer esta pesquisa. Então, fui coordenadora da Funarte SP de 2021 a 2023. Só saí porque recebi a bolsa para a pesquisa. Fizemos um projeto com as periferias e me convidaram para jantar em uma das favelas de São Paulo. Fui e falei com alguns artistas e com as pessoas que vivem lá. Me disseram: “não vamos aos grandes museus, aos grandes teatros porque pensamos que não é para nós. Mesmo que seja gratuito, não entramos porque pensamos que não é um ambiente para nós”. Então, há sim uma barreira nos grandes espaços culturais do Brasil. Sobre os editais, não sei… Quando vejo os editais do FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes], que agora é chamado Sistema Creación, eu também penso: “poderia haver algumas coisas parecidas no Brasil”. Nós não temos isso, temos editais que são curtos, para realizar um projeto. Não são bolsas de três anos, como existe aqui. Os artistas, no Brasil, precisam saltar de um edital a outro para realizar os projetos culturais.

Orlando: O Jóvenes Creadores é um dos editais. Também há outro, nos estados, que se chama PECDA [Programa de Estímulo à Criação e ao Desenvolvimento Artístico]. O PECDA é, de fato, mais acessível. Mas o PECDA também é um apoio muito mais reduzido. Deve ser, mais ou menos, algo em torno de 10 mil pesos mensais. Mas a concorrência não é tão forte. O FONCA está muito competitivo. Meu tio é músico e foi jurado do Jóvenes Creadores. Ele me dizia que são muitíssimos, não sei quantos, postulantes. Já de entrada há um formato… os requisitos… É meio complicado. Essa barreira de cumprir todos os critérios para enviar seus documentos e montar um projeto já é um filtro importante.

Sharine: Sim, como no Brasil.

Orlando: Já quando você está dentro e analisa do ponto de vista dos jurados… Meu tio me dizia, por exemplo: “há vinte pessoas que estão todas no mesmo nível e tenho que escolher três. É muito complicado, não?”

Sharine: A concorrência é muito grande no Brasil também.

Orlando: Ele estava vendo um pouco também a questão da concentração e da centralização nesse tipo de bolsa, porque quase tudo fica na Cidade do México. Há estados que quase não participam. Então, ele estava planejando esse tipo de coisas. O PECDA é dos estados. Você faz um projeto artístico, cultural e, paralelamente, tem que fazer uma atividade para a comunidade.

Sharine: Todos os estados têm esse requisito?

Orlando: Eu não quero mentir, suponho… Eu conheço pessoas de Baja California, de Yucatán que obtiveram a bolsa. Em Veracruz, sei que também há. Mas não quero mentir. Melhor você analisar esse dado porque eu não pesquisei. Sei somente por amigos, parentes ou artistas que conheço e que fizeram parte.

Sharine: São dez mil pesos por mês? Quanto é em dólares?

Orlando: Seria algo em torno de 400 dólares, mais ou menos.

Sharine: É um bom dinheiro. No Brasil, é um salário.

Orlando: Aqui também é uma solução. Por exemplo, no Semilleros Creativos, eu perguntava a um jovem se podia viver com isso. Ele dizia: “se você vem do outro lado, não. Tem que viver na comunidade e, dessa maneira, pode subsistir”. São apoios interessantes. Mas, ao final de contas, precisa ter outra atividade. Já com Jóvenes Creadores, o recurso é maior.

Sharine: Eu já fiz editais no Brasil, na Funarte, com este valor para que os artistas fizessem quatro ou cinco apresentações. Era um valor único para todas as pessoas do grupo. Então, para nós, se for um valor mensal, para um artista, é um valor interessante, principalmente se puder realizar outras atividades…

Orlando: O que sei é que todas as pessoas que obtiveram a bolsa de uns anos para cá tiveram que fazer algum tipo de oficina em uma comunidade… Deve haver uma retribuição social. Não tenho certeza se no FONCA, Jóvenes Creadores, elas têm que fazer isso.

Sharine: Algumas pessoas me falaram sobre isso. O que você encontrou na comparação entre a região da Luz, em São Paulo e… Não me lembro o bairro da Cidade do México…

Orlando: No início eu trabalhei a questão dos coletivos culturais na Colônia Guerrero. A Colônia Guerrero está logo ao lado da parte histórica [na região central da Cidade do México]. Também é histórica, é um bairro antigo que tem até origens pré-hispânicas. Mas digamos que toda esta parte turística está no parque La Alameda, onde está o Bellas Artes. Cruzando uma avenida, começa o bairro. Neste bairro também é muito interessante a estigmatização que existe. Chama a minha atenção o fato de que, talvez, existam pessoas que vivem em regiões mais perigosas e periféricas, que são assaltadas quando precisam tomar um ônibus. Quando eu dizia que ia à Colônia Guerrero sempre respondiam algo assim: “de verdade? Lá está muito perigoso!” Já há um imaginário histórico de: “não se meta aí, aí assaltam”. Também existe essa ideia pelo fato de estar ao lado da zona turística histórica. Então, há uma barreira imaginária sobre onde podemos ou não ir. Por isso, me interessava, já de entrada, a relação das pessoas desse bairro com a área turística. Houve muito investimento no centro nos últimos vinte anos. Mudou muito. Havia muitos vendedores ambulantes. Também aumentou muito a segurança, começaram a instalar câmeras. Dessa maneira, também começou a mudar um pouco a configuração social do centro da Cidade do México. No entanto, a Colônia Guerrero ainda manteve suas dinâmicas próprias. E, depois, já entrando no bairro, comecei a entender que havia muitos coletivos culturais e que eles mesmos levavam a cabo suas próprias práticas. Era algo como: “o que vocês fazem?” E, ao mesmo tempo: “como percebem as práticas tradicionais, institucionais, artísticas que estão em frente?”. Bom, há coisas muito interessantes. Estão muito enraizados. Há muitas gerações vivendo ali e, então, há uma certa localidade. É um bairro muito grande, ou seja, há muita gente que não tem essa identidade, essas raízes. Estamos falando de, mais ou menos, 40 mil pessoas vivendo ali. Mas há outras coisas que geram essa vida comunitária na questão urbana. É estranho porque cada pessoa segue seus interesses. São Paulo me interessava porque, normalmente, as pessoas vão mais ao Rio de Janeiro.  As pessoas que vão ao Brasil chegam ao aeroporto de São Paulo e vão para o Rio de Janeiro ou para a Bahia… É uma cidade tão grande que eu percebia que, com certeza, seria culturalmente muito interessante na região urbana. Encontrei um texto de Heitor Frúgoli Junior, que é um professor da USP, antropólogo. Ele fazia essa análise também sobre uma zona histórica com muitos museus, mas com muitas populações vulneráveis, que, por sua vez, eram muito estigmatizadas. Então, já me dava uma base conceitual. Há muitas semelhanças.

Sharine: É muito perto da Funarte São Paulo. Trabalho lá.

Orlando: É a parte do Ministério da Cultura de São Paulo? Está perto da Sala São Paulo, não?

Sharine: Não. A Sala São Paulo é do estado. Eu trabalho no Ministério da Cultura do Governo Federal. São dois níveis diferentes.

Orlando: No edifício em frente? Há uma passarela e você entra na Sala São Paulo. Do outro lado está o Ministério da Cultura. Não é isso?

Sharine: Não, não.

Orlando: Onde você trabalha?

Sharine: Onde eu trabalho é o Ministério da Cultura.

Orlando: Mas está em qual parte do centro?

Sharine: Em Santa Cecília. Mas é muito perto.

Orlando: Eu me encantei com Santa Cecília. Vivi em Santa Ifigênia. Foi muito bom. Era praticamente na Luz. Depois também vivi em Campos Elíseos. Ali era muito perto de Santa Cecília. É um lugar muito bonito, muito boêmio. O bairro da Luz tem coletivos culturais superinteressantes, ou seja, coletivos como Cia Mugunzá, Pessoal do Faroeste. Também tem o Clube do Choro, que fica na Rua General Osório. Todos esses grupos, a sua maneira, fazem dinâmicas culturais, tradicionais, contemporâneas, artísticas e, de uma ou de outra forma, interagem com a comunidade. Em meu trabalho também procurava entender como essas práticas artísticas funcionam como uma ferramenta antropológica para entender de outra maneira o contexto em que se vive. Há semelhanças nesse sentido e, também, grandes diferenças. No caso de São Paulo, por exemplo, nenhum artista era do bairro. Todos eram de fora. No caso da Colônia Gerrero, todos eram de dentro do bairro. A partir disso, é gerado outro tipo de imaginários, de perspectivas. Mas os dois envolvem a comunidade a sua maneira. Essa era uma análise. A outra questão que também planejei foi um diálogo entre diferentes artistas, tanto paulistanos como chilangos da Gerrero.  Qual é o papel da arte social?

Sharine: O que diziam?

Orlando: Obviamente, sempre é necessária uma consciência política de acordo com sua perspectiva. Ou seja, se estão localizados nessas áreas é porque a arte tem que ter acesso a outras populações. Então, havia pessoas que trabalhavam com a população trans, em um albergue, havia pessoas da Guerrero que trabalhavam fora do bairro, mas com essa consciência política, social, pelo mesmo entorno em que vivem, em que nasceram. Trabalhavam com prisioneiros, com pessoas em prisões e faziam teatro lá. É um coletivo que se chama Arte sem Fronteiras, é um artista muito brilhante. É também dramaturgo e realizou uma obra de teatro com pessoas privadas de liberdade. As pessoas foram levadas ao Centro Cultural Helênico, que é um teatro importante aqui na Cidade do México. Também foram levados a Los Pinos, onde se apresentaram. Los Pinos, não sei se você sabe, era a residência presidencial. A partir deste governo de esquerda, foi transformado em um centro cultural. Então, tem significados interessantes. O Bairro da Luz é uma região, evidentemente, mais vulnerável, no sentido de todo o consumo de crack e de todas as pessoas em situação de rua. Isso também dava outro tipo de dinâmicas. Há pessoas muito acessíveis, muito interessantes, com uma perspectiva política, social muito legal. Realmente, para mim foi uma boa experiência. Eu não tinha ideia deles. Sabia que, no bairro, estão a Pinacoteca, a Sala São Paulo, que são espaços incríveis. Eu me lembro que conversei com uma pessoa que, penso, trabalhava com serviços educativos na Sala São Paulo. Era um jovem. Não era uma autoridade. Lembro de escutar ao longe um ensaio. Estavam tocando a Nona Sinfonia de Beethoven. Era uma coisa impressionante, assombrosa e saía de todo o contexto. Acho que, agora, isso mudou um pouco porque, naquele momento, na Cleveland, havia muitas pessoas em condição de rua e consumidores de crack. Esse contraste entre a Cleveland e o interior da Sala São Paulo era fortíssimo. 

Sharine: Sim, ainda é.

Orlando: Mas acho que já tiraram muitas pessoas de lá, não? Eu entendi isso. Algumas pessoas me disseram. Essa rua estava completamente tomada.

Sharine: O que aconteceu foi que a polícia dispersou as pessoas. Mas elas ainda estão lá, somente em lugares distintos das ruas. A situação permanece a mesma.

Orlando: Além disso, muitos desses teatros também funcionaram, durante a pandemia, como espaços de apoio para os Médicos sem Fronteiras, também como bancos de alimentos. São pessoas muito comprometidas, muito interessantes. Chama-se Paulo Farias.

Sharine: Sim, eu o conheço.

Orlando: É uma pessoa muito inteligente. É um personagem. Lucas, Verônica, da Mugunzá, não sei se também os conhece.

Sharine: Sim, claro. Conheço pessoalmente todos eles.

Orlando: São pessoas lindas. Nesse sentido, são interessantes as particularidades e o modo como a arte entra nessas regiões. Você se dá conta da necessidade da arte em qualquer contexto, quando a arte deixa de ser um privilégio de poucos. Mas, também, como deixa de ter uma funcionalidade e, às vezes, como se assume como “ok, isso não é o primordial”. As pessoas têm que se preocupar com questões de saúde, de alimentação. Por que decidir? Ainda que os direitos culturais não sejam uma questão de sobrevivência, os demais não têm direito? Somente alguns? Neste sentido, obviamente, há uma perspectiva, voltando à sua pergunta, muito similar quanto ao papel da arte. Ou seja, tanto as pessoas daqui quanto as de lá compreendem, senão não estariam localizadas nessas áreas onde devem atender outras populações na questão artística. No entanto, cada um, a partir de seu próprio imaginário, de sua própria biografia, de suas próprias condições, respondia de uma maneira. Havia uma discussão que eu estabelecia: “você é uma pessoa nativa, uma pessoa do bairro? É uma pessoa mais cosmopolita?”. Então, as pessoas de São Paulo se definiam mais como uma mescla de tudo, ou seja, uma mescla das diferentes partes do Brasil… Culturas japonesa, italiana, que são muito fortes lá. Por sua vez, na Colônia Guerrero, as pessoas diziam: “eu sou daqui”. Ou seja, “o restante da cidade é, sim, uma parte de mim, mas o que realmente me define tem a ver com uma questão bairrista”. O tema identitário também tinha uma particularidade interessante no momento de discuti-lo.

Sharine: Na Colônia Guerrero também há pessoas em situação de rua?

Orlando: É difícil comparar. Eu quebrei a cabeça tentando compreender a configuração urbana de São Paulo. Como vocês chamam? Subprefeituras?

Sharine: Sim, subprefeituras.

Orlando: Então, isso pertence a esta subprefeitura e isso pertence à Sé. Isso pertence aos Campos Elíseos, não sei. Mas, mais ou menos, pude ver certas estatísticas de quantas pessoas havia em situação de rua nas zonas centrais de São Paulo. Comparando, percebemos, evidentemente, que não é o mesmo. Aqui não há tantas.

Sharine: Eu percebi quando caminhei pelo centro da Cidade do México. Não há pessoas em situação de rua.

Orlando: Há uma região em que há muitas. É um teatro que foi muito importante, creio que da metade do século ao final do século XX. Chama-se Teatro Blanquita. Agora está abandonado. Lá há uma quantidade considerável de pessoas em situação de rua. Mas também vivi na Colônia Guerrero e é uma região mais familiar. Não é uma área tão comercial como, talvez, seja a região da Luz. Aqui isso não existe tanto. Há mais vizinhança, edifícios, familias. Então, a percepção é diferente. Em ambas as regiões, o crime organizado está infiltrado. Há carteis. Eles não têm especificamente o controle da região, mas sabemos que há. O mesmo ocorre na região da Luz. Sabemos. Nos contam. Apesar de não ser evidente, sabe-se que há esse tipo de coisas. Mas, felizmente, nunca aconteceu nada em nenhum dos dois lugares.

Sharine: Comigo também não. Eu trabalho na Funarte há quinze anos. Nunca aconteceu nada comigo lá. Mas há, sim, roubos de celulares e coisas assim, que acontecem em qualquer centro urbano.

Orlando: No próprio centro há tanta gente, tanto movimento, que isso também dá certa segurança.

Sharine: Como vivem os artistas de Guerrero? Eles têm apoio?

Orlando: Eles têm outros trabalhos. Conseguem bolsas, por exemplo. São apoios, sobretudo os do governo da Cidade do México, que são quase simbólicos. São somente para pagar o material. Não dá para subsistir. São cerca de 12 mil pesos para um ano. Nada.

Sharine: É pouco.

Orlando: Não serve para sua alimentação… Serve, talvez, para a mobilidade e o material. Então, eles precisam de outras atividades, têm que vender coisas, têm outros trabalhos. Há um centro comunitário, em Colônia Guerrero, que se chama Comunidad Nueva. Mas as pessoas não vivem disso. Esse é um trabalho simplesmente pela Comunidade. Cada pessoa tem um trabalho totalmente voluntário. Este programa, Cultura en Barrio, ou algo assim, da Cidade do México… Você podia solicitar um apoio e o estado investia em um projeto comunitário no bairro.

Sharine: Por meio de editais?

Orlando: São editais para políticas comunitárias nos diferentes bairros da Cidade do México. Por exemplo, há lá um centro comunitário interessante porque, antes, era um posto policial. A população do bairro se apropriou desse espaço e, agora, levam a cabo atividades culturais. Ao final de contas, o que também acontece é que são gerados certos conflitos. Um grupo quer ter o controle desse espaço e o outro… As pessoas se informam pelas redes sociais, acessam o Facebook, discutem e acontece esse tipo de coisas. Apesar de não serem grandes conflitos, porque não há tanto orçamento, sempre geram, dentro da própria comunidade, conflitos internos. Não sei como estão agora Mugunzá e Pessoal do Faroeste. Mas algo que me chamava muito a atenção era essa capacidade de gerir, não entrar em conflitos e ter a mesma missão, o mesmo objetivo. Mantiveram-se. Uma das coisas que acontece muito nos coletivos é que vão se dissolvendo. Cada um tem seus interesses, a necessidade de subsistência e esse tipo de coisas, não?

Sharine: O Pessoal do Faroeste está fechado. Já não existe mais [Paulo Faria, fundador do teatro, faleceu em setembro de 2024, alguns meses após a realização desta conversa]. É triste, mas não existe. Mas a Mugunzá está lá, seguindo.

Orlando: Sim, acho que o Paulo foi a Belém, de onde ele é. Vejo suas fotos no Facebook.

Sharine: Não sei exatamente o que aconteceu, se foi falta de recursos ou algum problema pessoal…

Orlando: Normalmente é isso que acontece. Sempre há uma iniciativa, muito entusiasmo. Mas, no final, sempre acontece esse tipo de situação.

Sharine: Sim, mas eles viveram ali por muitos anos. A Mugunzá segue funcionando e, agora, há uma rede dos espaços culturais da região da Luz e que estão por perto. Às vezes, funciona bem, outras nem tanto. Nós, da Funarte, também participamos. É difícil porque, de fato, são espaços distintos. Não sei como está agora porque estou de licença da Funarte, somente fazendo a pesquisa. Mas tínhamos justamente o objetivo de conviver com a comunidade, com as pessoas que vivem nas ruas, com os vizinhos. Penso que é justamente por essas questões, que são comuns no Brasil, na região, que os coletivos não se dissolvem com tanta facilidade. Penso que existe uma questão social e uma questão política que são muito mais fortes. Mas há conflitos, como há em todos os lugares.

Orlando: Sim, há uma mesma causa. Também há outro coletivo que é interessante, Craco Resiste.

Sharine: Trabalhamos com ele na Funarte também. Não com o coletivo em si, mas com algumas pessoas que participavam dele.

Orlando: E tinham o projeto Birico.

Sharine: Há uma pessoa que agora está trabalhando na Funarte, em um projeto coletivo. Lá também há uma galeria. Então, há esse intercâmbio entre as instituições do centro de São Paulo. Há, sim, conflitos. As pessoas saem de um coletivo e vão para outros. Há essas mudanças. Mas os problemas sociais continuam. Então as pessoas seguem trabalhando em outros projetos. Há mudanças de pessoas também, mas seguimos.

Orlando: Chama minha atenção todo esse movimento. Acho que, na Colônia Guerrero é um pouco mais difícil encontrar coletivos locais. Não há. Há artistas que fazem diferentes tipos de tarefas comunitárias dentro e fora da Colônia Guerrero. Nesse sentido, sei diferenciar, também por todas essas populações vulneráveis que existem. Ou seja, a Colônia Guerrero é uma região de uma classe média baixa, uma classe trabalhadora com muito estigma, onde também há pobreza, violência. Mas você não vê trinta pessoas fumando crack. Isso, obviamente, gera outro tipo de dinâmica.

Sharine: Há uma coisa que não tem muito a ver com nossa conversa, mas eu gostaria de ter sua opinião porque é uma questão importante agora no Brasil: a questão das identificações, a identidade negra, por exemplo, a identidade indígena. Antes já havia. Mas, depois da Lei Aldir Blanc, há mais cotas para pessoas negras, cotas para pessoas indígenas… Penso que isso está transformando um pouco a linguagem artística. Por exemplo, no ano passado, tivemos a Bienal de São Paulo. Havia muitas obras de pessoas indígenas, das comunidades negras e, também, muitas de caráter político, decolonial… Como isso vem se passando no México?

Orlando: Nos editais, agora para o pós-doutorado, uma das categorias é “mulheres indígenas”. Então, digamos que não está muito focado isso, não tanto quanto no Brasil. Por exemplo, chamou muito minha atenção quando fiz meu cartão para ter acesso ao serviço de saúde no Brasil e me perguntaram: “o que você é? Negro, branco, preto, pardo?” Eu não sabia o que era. Disse isso e não houve problemas. Mas esse tipo de coisas não acontece tanto no México. Essas distinções étnicas, raciais, falando institucionalmente, não chegam a ser uma grande diferença nas políticas públicas. Há um enfoque indigenista importante. Agora você está me perguntando isso e me fez pensar em uma dramaturga que entrevistei: “no projeto do FONCA”, ela disse, “no final das contas, também é preciso saber vender”. Então, o planejamento do projeto tinha a ver com questões indigenistas e isso é outra forma de favorecê-lo. Não é que ela esteja se aproveitando. Quer dizer, há uma consciência. Tampouco é uma pessoa rica, mas não é indígena. No entanto, o enfoque, a pesquisa que estava levando a cabo e essa obra teatral tinham a ver com questões indígenas. Afinal de contas, vai favorecê-la porque as políticas públicas entendem muito esse tipo de execução. Mas as cotas, como tal, apesar de haver algumas coisas… Por exemplo, a parte da cultura afrodescendente mexicana, os afromexicanos, é algo que está ganhando visibilidade. Há pouco tempo, Susana Harp fez uma legislação a favor. É uma senadora. Acho que foi uma das que levou adiante a iniciativa para a população afrodescendente mexicana. Talvez existam essas questões indigenistas. Há diferentes programas, programas para artesãos, políticas culturais já antigas para fomentar as artes tradicionais indígenas no México. Talvez estivessem muito separados de projetos como o FONCA, mais voltados para a arte contemporânea. Nesse sentido, creio que há uma diferenciação, interessante e clara, entre o que existe no Brasil e no México, porque, aqui, esse tipo de cotas e apoio não está tão integrado.

Sharine: No Brasil, agora, há um movimento muito forte que se chama “arte indígena contemporânea”. Claro que há motivos de arte tradicional indígena. Mas eles estão na Bienal, estão no MASP, na Avenida Paulista. São questões relacionadas à identidade.

Orlando: No final das contas, é um recurso institucional para dividir. Há recursos destinados para esses grupos.

Sharine: Às vezes, não há um edital específico para os indígenas ou para os negros, mas, nos editais, há uma pontuação mais alta para pessoas que têm projetos relacionados aos indígenas… Ou há uma porcentagem para indígenas, uma porcentagem para negros…. São distintas as estratégias do que chamamos de ações afirmativas no Brasil.

Orlando: Na verdade, não tenho tanta clareza de quais são os tipos de apoio. Até onde entendo, não é tão marcado como no Brasil. Suponho que há, sim, mas não conheço em profundidade. Também penso sobre a questão de definir-se se não for parte de uma comunidade… Definir-se como indígena é um pouco complicado, não? Talvez tenha origens indígenas, mas não fale uma língua indígena, seja uma pessoa da cidade e não vá assumir essa identidade tão fortemente. As populações rurais, como a de que eu falava, pessoas de San Andrés Mixquic, reconhecem sim um passado indígena, mas não se definem como indígenas. Talvez nos estados você possa encontrar com um pouco mais de força. Na cidade existe, mas… Havia, por exemplo, um coletivo otomí na Colônia Roma. Dentro de todo esse contexto da Colônia Roma, de gentrificação, eles exerciam, geriam um espaço de resistência. Esses movimentos podem acontecer. Mas acho que, sim, há uma diferença interessante.

Sharine: No Brasil, tem crescido o número de pessoas que dizem que são indígenas, que dizem que são pretas, que são pardas.

Orlando: Penso que aqui também está sendo gerada uma consciência, não? Ou seja, antes também havia uma negação, tanto da afrodescendência quanto da descendência indígena. Agora já não há. Aqui sempre houve muita discriminação. E sempre se buscou essa mestiçagem, deixar isso de lado e formar um mexicano: você é um mexicano a mais. Saindo um pouco do tema, mas que me parece interessante, é como dizem: “bem, no México vemos puros mestiços”. Eu, em algum momento, já há vários anos, trabalhei como garçom em um restaurante e, então, via os funcionários da cozinha, que pareciam uns mexicanos. Depois, fui conversando com eles e eram indígenas, falavam língua indígena, ou eram imigrantes. Fui conhecendo com essa profundidade, que passamos por alto porque, tampouco, é algo que seja tão aberto. Não é como dizem: “sou alemão” ou “sou japonês”. Essas pessoas eram otomís, me parece, mas não diziam tão abertamente. Gerando certa confiança, abriam-se e diziam: “eu falo língua indígena. Eu venho de tal comunidade”. Mas era necessário todo um processo de confiança.

Sharine: É um pouco diferente do que está acontecendo agora no Brasil.

Orlando: Aqui, a questão da identidade também é interessante porque é uma cidade tão grande que está acostumada a receber pessoas de todos os lugares. Por exemplo, eu vivi aqui e em diferentes províncias, como Yucatán, Oaxaca, Chiapas, Baja California. Nas províncias, sempre perguntam: “de onde você é?”. Na Cidade do México não há essa conversa no início, somente muito depois.

Sharine: O mesmo acontece em São Paulo. Mas há, sim, esse crescimento das pessoas que se identificam como pretas, pardas, indígenas ou com outras… Não gosto da palavra “minorias”…

Orlando: Obviamente, é algo muito mais complexo, mas eu dizia a uma jovem de São Paulo, que algo que me chamava a atenção nos cafés populares, nos bares populares era que o café era servido com açúcar. Principalmente no centro. Esse era um costume mais do Nordeste. Nessas regiões populares de migração do Nordeste, como ocorreu muito em São Paulo, continuaram reproduzindo esse tipo de práticas.

Sharine: Sim, há muitas pessoas do Nordeste que vivem lá. Elas construíram São Paulo, de fato.

Orlando: Essa questão do café já com açúcar, que servem a você, é muito particular. No primeiro momento, você se surpreende. Não espera. São essas dinâmicas escondidas que surgem nas cidades. Tenho muita vontade de voltar a São Paulo. Eu vivi muito bem lá. Me levou justamente a pandemia, quanto já estava terminando minha estadia. Estive nove meses em São Paulo. Ia ficar dez meses. Mas, no último mês, tive que regressar porque a pandemia começou. Bom, no final das contas, pude aproveitar.

Sharine: Que bom que você foi antes da pandemia.

Orlando: Foi justíssimo. Senão, nada aconteceria, eu não teria me alimentado. Então me sinto afortunado. Mas logo chegou a pandemia e eu ainda não entendia nada. De fato, já havia começado quando fui à casa de Lucas e Verônica para me despedir. Não usávamos máscaras. Ainda não entendíamos bem como funcionaria. Mas já estava tudo fechado. Foi um processo muito estranho.

Sharine: Sim, foi estranho para nós. Não sei o que aconteceu aqui. Mas, para nós, também havia uma disputa política sobre as vacinas e as máscaras.

Orlando: Para mim, também, o centro acabou sendo muito impactante porque, antes, eu via pessoas de todo tipo e, de repente, só via pessoas em situação de rua e consumidores de crack. Mas essas pessoas eram ainda mais impactantes porque só víamos essa população. Então, esse mês em que estive na pandemia em São Paulo foi bastante caótico e complexo. Muito obrigada pela conversa. Eu estava, agora, com este grupo, com esses movimentos, quando soube de seu livro, quando soube da lei. Para mim foi muito atrativo e ainda tenho vontade de conhecer com mais profundidade. Creio que é um exemplo a seguir, para além das diferentes circunstâncias que ocorreram para favorecer os artistas nessas condições. Realmente, é um caso muito legal.

Sharine: Para nós também foi uma experiência única, que não ocorreu no Brasil em épocas anteriores. Penso que foram os movimentos populares, a pressão da sociedade civil, a articulação em rede, principalmente porque já havia essa experiência de comunicação dos Pontos de Cultura, mas também havia outros movimentos. Como eu disse, os movimentos de dança, teatro, tudo isso, e a emergência… Porque, de fato, se os artistas não fizessem nada, não haveria ações na pandemia por parte do Governo Federal. Penso que foi uma experiência muito rica no Brasil.

 

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