Canclini na Cátedra

Entrevista realizada com Seu Elias Pires, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 06 de março de 2021.

[Sharine] Minha pesquisa é voltada para a Lei Aldir Blanc, para a articulação em rede pela construção dessa lei e, também, sobre a utilização pelos artistas. Estou conversando com várias pessoas, de diferentes setores, com os gestores que criaram a lei, com os artistas, com o pessoal das comunidades que, de alguma forma, contribuiu também. Para começar, acho que seria bom ouvirmos histórias sobre seu modo de vida, sua cultura.

[Elias] Meu nome é Elias Pires da Rocha. Sou aqui do Quilombo Santa Rosa dos Pretos, Itapecuru-Mirim, Maranhão. Hoje estou como presidente de uma instituição que temos aqui, a União das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, de Itapecuru. Sua sigla é UNIQUITA. Nós temos 71 comunidades quilombolas no Itapecuru. É um público muito grande de negros e negras. Nossa cultura aqui é muito forte, ainda mais aqui no quilombo. O Quilombo Santa Rosa dos Pretos tem um tambor de Crioula muito forte, muito forte mesmo, e muito bom. Temos também a matriz africana, a Mina, que aqui também é muito forte. Eu sou abatazeiro há 32 anos em uma casa de santo daqui, da Nossa Senhora dos Navegantes. Tenho essa mesma idade tocando tambor de Crioula. Toco tambor de Crioula, toco tambor grande, toco meião, xequerê. Às vezes canto, quando não há um cantor profissional. Ajudo ainda nos versos de Crioula. Além do tambor de Crioula e do tambor de Mina, nós temos a cultura do Bumba Meu Boi. Está um pouco parada. É uma cultura muito cara, o Bumba Meu Boi. Temos também a Dança do Coco. Temos um festejo tradicional de 250 anos, o festejo do Divino Espírito Santo. É uma festa cultural muito boa. É uma de nossas tradições aqui. Além do tambor da festa do divino, temos outras diversidades culturais. Quem afirma nossa resistência são a matriz africana e o tambor de Crioula. Usamos o tambor de Crioula até em nossas manifestações. Já tivemos problemas com a rodovia federal, e colocamos tambor de Crioula. Na estrada de ferro Carajás, também estivemos lá com tambor de Crioula. Essa é nossa arma de resistência e de força. É o nosso tambor de Crioula. É uma das maiores culturas que nós temos, além da religião de matriz africana. Essa é muito forte também, muito boa. Temos várias diversidades culturais. A comunidade aqui é muito rica nessa parte.

Temos uma situação muito difícil com a resistência. Nós resistimos em muitas coisas. Temos o impacto de eletricidade. Temos três ferrovias que passam aqui. A Carajás está duplicada e temos a Transnordestina, que é mais uma ferrovia que passa dentro do território. Temos a BR 135, que hoje querem duplicar. Isso vai diminuindo o espaço do nosso território. Estamos nessa resistência aqui, para ver como diminuímos esses impactos. Mas, diante disso, somos uma comunidade muito feliz. Somos muito felizes mesmo. Temos mais de mil famílias no território quilombola. Só em Santa Rosa, temos mais de mil famílias. É um território composto por 20 quilombos. Temos 16 quilombos com casas e outros quatro são só localidades onde as pessoas já moraram, onde nossos antepassados moraram. Nós os temos como uma comunidade. Seu nome ainda consta como comunidade. Independentemente disso, somos muito felizes! Muito felizes mesmo!

[Sharine] Que bom! Acho que o senhor poderia falar um pouquinho mais sobre essas festas populares, sobre essas linguagens que o senhor citou. E, também, sobre essa resistência para a ferrovia, para a BR. Como vocês trabalharam?

[Elias] Nossos antepassados usavam o tambor de Crioula porque nossos negros não tinham como ir à festa. A festa era dos brancos, dos barões, nessa época. Como não podiam ir para a festa, nossos negros se retiravam para o meio da mata e iam brincar lá, e tocar o tambor de Crioula. Tocavam o tambor de Crioula e, lá, lançavam os versos do nosso povo, versando, articulando o que iriam fazer no decorrer da vida. Falavam isso em versos porque não poderiam falar diretamente para que a conversa não chegasse aos brancos. O que acontecia? No meio dos próprios negros, havia o capitão do mato, aquele que sempre queria “babar” o barão, para ver se se dava bem, e acabava levando a conversa. Se falassem em versos, ele não levaria. As articulações, aqui, eram nas festas do tambor de Crioula e nos versos. Eles versavam o que iriam fazer no outro dia, o que iriam fazer na semana, o que iriam fazer no mês e durante o ano. Às vezes, o negro não tocava todo dia. O tambor de Crioula nós adotamos como nossa resistência. Quando estamos sugados de energia, quando queremos energia, tocamos aqui. A mulherada dança, a mulherada pula. Nós dançamos. É feliz mesmo! Tem essa questão da resistência, do nosso tambor de Crioula. Nós aderimos à matriz africana como à nossa religião, em que se faz o culto afro para buscar também as energias dos orixás, para que nos fortaleçam diante de toda perseguição, desses impactos, dessas situações que estão aí. Ela também é uma de nossas resistências e nos ajuda muito a resolver certas coisas. Vamos buscar força e luz lá. A espiritualidade, nós vamos buscar lá, na Mina. É uma matriz africana. Nós nos sentimos com muita força, graças a Deus. Deus nos dá essa resistência. Esses impactos vêm causando muitas situações. Os leões têm um laser que acaba construindo um câncer nas pessoas. Nós temos cinco leões aqui dentro. Eles falam que jogam o laser para cima.

[Sharine] O que é leão?

[Elias] Leão é uma linha de transmissão de energia. São cinco aqui dentro do território. Então, dizem que as linhas de transmissão estão jogando laser para cima, que é seu raio de transmissão. Mas ninguém nos garante isso. Ora pode estar para cima, ora pode estar para baixo, ora pode estar diretamente em nós. Nosso povo tem morrido muito de câncer. Essa doença malvada, essa doença maldita. Então, temos cinco leões aqui dentro. A estrada de ferro Carajás, que se estende também aqui dentro, tem matado muita gente, muitas pessoas da gente, muitos parentes, o gado, o cavalo… Mais atrás, houve uma situação em que crianças perdiam a aula. Quando o transporte ia atravessar, o trem estava parado bem no meio da estrada de ferro, que cortava a estrada onde o ônibus passaria com essa criança. Já aconteceu, aqui no Maranhão, de criança descer do ônibus, passar embaixo do trem e ele acabar matando. O trem acabava matando as pessoas. Esse foi um impacto. Nós tivemos uma liderança do território Monte Belo, Dona Aldenora, que morreu na estrada de ferro porque teve uma queda de infarto em sua casa. Ela caiu, seus filhos a colocaram no carro para levá-la ao hospital. Quando chegaram, o trem estava parado na estrada. Não tiveram como passar. A causa de sua morte foi não ter o socorro na hora certa. Ela acabou falecendo. Esses impactos causados pela estrada de ferro e pela BR 135 nos prejudicam muito.

A estrada de ferro prejudica os igarapés. Esses igarapés, do período do inverno até meados do verão, sustentavam as famílias daqui com peixe. O peixe vinha do campo, vinha pertinho de casa. Todo mundo descia ao igarapé, pescava de puçá, pescava de “esgotando”. Nós tapamos o “pução” e acabamos cercando o peixe para alimentação. A estrada de ferro entupiu. Nós passamos, mais ou menos, oito anos com uma barreira na estrada de ferro que o peixe não podia subir, de jeito nenhum. Só chegava até lá. Era muito alto para o peixe subir para a cabeceira do igarapé. Então esses igarapés acabaram se enfraquecendo. Hoje não temos mais essa sustentação do igarapé na comunidade. Porque, “de primeiro”, todo mundo aqui trabalhava na lavoura, na roça. Tinha o arroz, tinha a farinha, mas o igarapé dava o peixe. Hoje não temos isso. Hoje as terras, além de estarem fracas, não dão mais a colheita da forma como davam aos antepassados. Hoje não dá mais porque a terra está fraca.

Os territórios estão tomados pelos latifundiários, pelas fazendas dos latifundiários. Só para você ver, temos nosso território aqui. Temos um decreto de titulação desde 2015 e, até hoje, nunca foi titulada. Hoje essa luta tem 66 anos, essa luta de nossos antepassados. Dos mais velhos, que lutavam, temos o meu pai, Sr. Benedito, temos o Libaneo Pires, que é o pai da Anacleta, uma pessoa muito guerreira. Ainda temos os dois na luta de anos, nesses 66 anos de luta. Hoje eles já não vão muito às discussões. O Libaneo vai mais. Mas meu pai sofreu um coágulo e ficou um pouco afastado dessas discussões. Faz uns 10 anos que ele operou desse coágulo, mas não pode falar muito, participar de muita coisa, porque isso cansa, ainda mais no cérebro. O Libaneo ainda vai conosco, mas hoje tem problema na visão. A vista atrapalha. Temos que guiá-lo até chegar à sala de reunião e colocá-lo sentado na cadeira. Lá, sim, ele resolve, ele fala. Está lúcido. Ele diz que cegou da vista, mas não cegou da mente. Então, essa é a resistência que nós temos.

[Sharine] Estão surgindo novas lideranças, então?

[Elias] Sim. Aí ficou uma filha de Libaneo, a Anacleta. E eu fiquei como filho do Benedito, na luta. De onde eles pararam nós pegamos a luta e hoje estamos mais à frente, eu e ela à frente do território quilombola e do município, nessa luta, nesse enfrentamento. Estamos os dois, mas temos outros companheiros. A Anacleta tem os filhos que ajudam. Temos o Joelson, a Rose Clea, o Josi. Temos alguns filhos da Anacleta conosco nesse grupo. Nós temos outras lideranças. Elas são fortes, mas não exercem a luta como a gente. Temos lideranças que às vezes vão, vão, vão… E, lá na frente, largam, param, dão um tempo, vão cuidar das coisas para lá e depois voltam de novo. Eu e a Anacleta, não. Nós somos todo dia. Ontem mesmo tivemos duas reuniões, uma com a CONAQ nacional [Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas] e outra com o INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] daqui do Maranhão. Foram a respeito dos territórios de Itapecuru.

Esses impactos dentro de nossa comunidade nos atrapalham muito, nos atrapalham demais. Hoje você vê que a própria juventude está toda desequilibrada. Nós nos preocupamos muito com a juventude. Temos muitos jovens com experiência, estudando outras coisas. Agora, temos uma cambada de jovens que não quer saber de nada. No terceiro ano do ensino médio, ele não vai se especializar, não vai para a faculdade, não vai para nada. É nesse campo que estão entrando. Isso atrapalha muito o território, a comunidade. Se os jovens seguissem, pelo menos, para se formar, para se organizar, seria uma coisa boa porque você acabaria contando com eles. Daqui a pouco, você teria advogado, você teria tudo, teria médico, teria enfermeira para cuidar do nosso povo, para cuidar da gente. Essa é uma luta. Vamos conseguir trazer os jovens para o movimento. Enquanto estamos nessa fase, fica meio difícil. Mas uma hora o jovem virá para a luta, uma hora ele vai entender que precisa da terra, que precisa do espaço, precisa da escola, do posto médico, precisa de tudo. Ele precisará estar na luta para defender.

Perdemos agora um companheiro, o Justo Evangelista. Era uma das melhores lideranças que tínhamos no município, o Seu Justo. Ele passou 14 anos com um câncer de próstata. Essa doença acabou comendo a carne dele toda, acabou com o homem. Agora, ele faleceu. Na segunda-feira, será a visita de cova. Então, nós perdemos essa liderança. Para nós foi uma perda muito grande. Antes de morrer, ele chamou a mim e a Anacleta em sua casa, fez alguns pedidos: “não desvanecer da luta, cuidar do nosso povo, cuidar da comunidade”. Porque são poucas pessoas que fazem isso. É pouca gente. No quilombo, no movimento, não temos recursos. Se fosse uma coisa que pagasse salário e alguns benefícios, não sobraria vaga. O movimento tem vaga para muita gente, mas as pessoas não querem. Não querem perder tempo, defendendo seu território, defendendo a vida das pessoas. Defender a vida das pessoas é uma das coisas mais importantes, porque “sem vida, ninguém ‘veve’; se não tiver saúde, ninguém ‘veve’”. Se tiver vida e saúde, está tudo bem, o resto arrumamos. Não adianta você ter “teres”, ter dinheiro, ter tudo e não ter saúde, não ter vida. Não adianta.

Estamos vendo se recebemos uma fazenda aqui do território. O INCRA deve pagar e nos entregar. É uma felicidade! Faremos até uma festa lá, nesse dia da comemoração. Para nós, é um sonho, é o começo de um sonho realizado começar a receber nosso território. Acho que, quando estivermos com nosso território na mão, descansaremos de uma luta. Porque a terra já está conquistada, vamos lutar por políticas públicas, por outras coisas. Já teremos a titulação da terra. Essa luta já alivia, já descansa. Vamos brigar por outras coisas, por moradia, pela infraestrutura da comunidade e outras coisas mais.

[Sharine] Como vocês vivem aí? Qual a economia? Vocês trabalham na terra ou saem para trabalhar na cidade?

[Elias] A economia aqui hoje está mais no aposento e no bolsa família. O emprego aqui está muito difícil. Na comunidade, temos um posto de saúde que hoje está em construção, não está terminado. Temos uma escola grande, estadual. Lá funcionam escola municipal e do estado. Temos um CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] quilombola. Este CRAS está desativado. Então, quanto à economia daqui, ao financiamento, tínhamos um povo que trabalhava no CRAS, tínhamos outro povo, algumas pessoas que trabalhavam na escola, mas poucas, e, também, que trabalhavam na unidade de saúde, que cuidavam de nossa saúde. Mas é muito pouco, porque temos mais ou menos três mil pessoas em nosso território. De três a quatro famílias têm essa economia. O restante está no aposento. São nossos idosos aposentados e outros que estão no bolsa família. O bolsa-família não está dando para nada. Nós temos muita gente com bolsa família suspenso. Temos pessoas que não recebem, que estão fora do cadastro. Há uma série de coisas.

Está todo mundo aguardando esse auxílio emergencial. Nós já temos pessoas passando necessidade. Nesse tempo da pandemia, pela UNIQUITA, pela Associação da Comunidade e por uma Associação Florestal de Jovens, que temos aqui na comunidade, conseguimos mais ou menos duas mil cestas-básicas. Mas foi pouco porque a pandemia não parou. Agora que a pandemia se agravou mesmo. No Itapecuru, estamos em um elevado dela, muito alto. Até o prefeito está com COVID-19. Rezamos para que ele melhore, que ele fique bom. A vida das pessoas é importante. A esposa dele também está com COVID-19. Estamos rezando para que melhore logo também, para que fique boa. É o importante. Mas sobre a economia daqui, temos alguns jovens que viajam para trabalhar em Minas, em São Paulo, no Pará. Mas, nessa crise, há poucas pessoas fora daqui. Todo mundo está na comunidade. Temos alguns que também trabalham em São Luís, na capital do Maranhão. Às vezes, eles vêm aos finais de semana, vêm de 15 em 15 dias para cá. Alguns têm algum pedacinho de roça. Estão trabalhando na roça. Temos sete famílias com projeto de piscicultura, que trabalham, estão criando os peixes e agora estão tirando para vendê-los também. A economia financeira aqui é muito pouca, é muito fraca. Não dá para o sustento das famílias. Nós nos sustentamos mesmo porque temos um Deus, que nos dá essa resistência para seguirmos na vida. Não está muito fácil não.

[Sharine] Conte um pouco sobre sua religião, Seu Elias. 

[Elias] Minha religião é a Matriz Africana. Eu toco tambor de Mina há 32 anos. Toco tambor de Mina na Tenda Nossa Senhora dos Navegantes. Eu entrei lá com 14 anos para acompanhar. Lá, quando começamos, havia apenas uns tamborzinhos pequenininhos. Não tinham meio metro. Havia dois tambores. Um compadre meu, que era abatazeiro guia, o Compadre Sebastião, que já faleceu, me convidou. A mestra da casa pediu a papai para que eu aprendesse a tocar e ficasse na tenda. Papai cedeu. Meu pai Sebastião foi me ensinar a tocar o tambor de Mina. Eu tinha 14 anos. Desde os 14 anos, estou até hoje. O Sebastião faleceu em 2008 e eu fiquei como guia dessa casa, dessa tenda. Sou o abatazeiro guia da tenda Nossa Senhora dos Navegantes. Isso eu exerço com muita fé, com muita vontade. Nunca deixei de tocar em uma festa, por diversão, pelo jogo, pela rua, não. Trato com o maior respeito minha obrigação na casa de Santo. O maior respeito mesmo. Também tem uma coisa de que eu gosto: tocar o tambor. Eu gosto de fazer o tambor falar. Quando o tambor fala, ele nos diz alguma coisa. Ele fala com a gente. De lá para cá, são 32 anos. Ajudo minha mãe de santo aqui, a mãe Severina. Nós já tivemos até 16 abatazeiros nesta casa. Hoje somos mais ou menos 10. Eu sou o chefe, como se diz, como é tratado aqui, do grupo de abatazeiros. Faço isso com muito amor, com muito carinho, e tenho grande respeito pela religião de matriz africana. Conversamos com nossos guias, ouvimos conselhos de nossos guias. Para nós, é muito bom. Trazemos o tambor de Crioula também como uma devoção.

Aqui festejamos o São Benedito da Casa do Forno. São Benedito foi o nosso cozinheiro nas senzalas dos antepassados. Quando os homens do Dito cozinhavam, levavam comida para os barões, os ricos, e eles não queriam dar aos pobres. São Benedito enrolava a comida; o pessoal perguntava o que era aquilo e ele dizia que era o rango do Flor, que ele tinha na mão. Então, ele acabava dando comida para aqueles que estavam com muita fome, necessitados. Ele se santificou e temos São Benedito como o Santo de nossa devoção, como Santo Preto, como Santo de nós pretos. Nós o festejamos aqui na comunidade. Ele vive bem aqui, na igreja dele, na cidade de Santa Rita, em uma comunidade quilombola também, na Mata dos Pires. A imagem de São Benedito vive lá. Quando vamos fazer festa, vamos buscá-lo lá. Nós o recebemos com a procissão, nós o levamos em procissão até o tambor de Crioula, onde está o tambor de Crioula. Lá, quando fazemos a promessa com ele, temos um boi ou um porco para matar, para fazer a comida para o pessoal. Só fazemos esse ritual depois que ele chega. Só matamos o boi ou o porco depois que a imagem de São Benedito chega à comunidade. A gente o “salva” com as três marchas de tambores na sua chegada. Vamos lá para matar o boi ou o porco. Lá tornamos a fazer outra “salva”. “Salva” o espaço de novo, entrega o boi. Tem uma “galera” que vai e mata. Nós não tocamos o tambor de Crioula só por diversão. Além de ser uma cultura para nós, temos um grande respeito pelo tambor de Crioula, nós o temos como uma religião, que é emendada na Mina, a Natureza Africana. Temos o tambor de Crioula dentro da matriz africana. Nós o consideramos porque há pessoas que não conseguem ver o tambor de Crioula ser tocado. Elas dançam e acabam se pajelando [risos]. Às vezes o pajé acaba descendo no tambor de Crioula. Então, nós o temos como parte de Matriz Africana. O tambor de Crioula é muito forte. É um ritual muito bom, muito bonito. Temos um vídeo. Acho que você encontra no YouTube: “Os guardiões de Santa Rosa”. Essa foi uma promessa que eu paguei também aqui em casa em 2015. Paguei a promessa em 29 de junho. Está dentro de um filme esse tambor. Você vai achar lá. Vai ver direitinho como é o ritual daqui. Além de ser nossa resistência, de nos fortalecer como uma resistência, temos o tambor de Crioula como uma devoção, com nosso santo preto, São Benedito.

[Sharine] Eu não estou em São Paulo agora, estou em Minas Gerais, na casa da minha mãe. A paróquia do bairro onde estou também é de São Benedito.

[Elias] Olha! É legal!

[Sharine] E a população mais jovem daí se interessa? Participam dessas festas? Como essa tradição é passada aos mais jovens?

[Elias] Eu tenho um netinho aqui. Com um ano, por onde ele passava, passava batendo nas cadeiras, nas coisas, batendo o tambor de Mina. Nós fizemos um tamborzinho de Crioula para ele. Até o tambor grande ele já tocava. Ia arrastando pela casa e tocando. Essa tradição vem passando para os mais jovens. Nós nem nos preocupamos muito aqui. Temos mais de cinco pessoas que tocam o tambor grande. Temos mais de 50 pessoas que tocam quereré, que tocam meião, que tocam matraca. Essa cultura vem passando para nossos jovens. Quando você vê, o jovem chega, senta no tambor, toca o tambor sem ninguém ensinar, sem ninguém ter mostrado para ele. Vem naturalmente dele. Graças a Deus! Muitas comunidades daqui já perderam essa tradição, mas a nossa não. A nossa não perde, de jeito nenhum. Temos mais de 70 mulheres que dançam o tambor de Crioula. Às vezes, só temos que levar cinco, seis, dez ou vinte. Ficamos com dificuldades aqui. Como fazer isso? Como levar esse povo para a representação. Todo mundo quer ir. Às vezes, há pessoas que se aborrecem, que se zangam, acham que estamos excluindo. Não estamos excluindo, não estamos tirando ninguém. O problema é que não dá para todo mundo ir. Não cabe no ônibus. Mas graças a Deus! As crianças, tanto masculinas, quanto femininas, estão no tambor de Crioula. Vem passando mesmo. Na Matriz Africana, aqueles que têm que receber seus guias, caem no salão e estarão dentro da Mina também. É muito fácil termos essa tradição nos jovens. É muito fácil.

[Sharine] Que bom! E não há outras religiões entrando agora?

[Elias] Temos o Catolicismo também muito forte aqui na comunidade, como temos algumas pessoas evangélicas. Quem quer seguir um Deus segue de qualquer maneira. O importante é que não vá para droga, não vá para criminalidade, que não vá para outras vidas. Se for para servir a um Deus, pode servir de qualquer forma, de qualquer maneira. Pode buscar o Deus porque nem todos vão chegar à salvação só por um caminho. Sabemos que só existe um caminho para lá. Mas vocês têm que buscar o seu. Cada um tem que buscar o de si e seguir. Aquele caminho que você acha que é melhor, em que você acha que vai chegar até Deus, você vai buscar e você caminha. Nós não vamos mandar que Ele venha só para um de nós. Pode ser que nós estejamos errados, não é? Pode ser que eles estejam certos. Ou estejam errados e nós estejamos certos. Então, cada um segue e faz a vontade de Deus da melhor maneira. Temos aqui a Mina, que é uma religião, o Catolicismo… Temos as religiões aqui dentro. Tem aquele que não tem religião nenhuma. Temos tudo isso. Temos também um povo que não tem religião nenhuma. Está solto aí no mundo. Também não nos preocupamos muito com eles porque cada um segue o Deus da melhor forma que possa e que queira. Sabemos disso. Uma religião forte aqui também é a Católica, o Catolicismo. Temos um Festejo do Divino Espírito Santo, que tem 250 anos, aqui dentro da comunidade. Quem recebeu a coroa do Divino Espírito Santo aqui foram as escravas. Uma escrava que temos com o nome de Rafaela Pires era a dona do Santo. A religião do Catolicismo também é muito forte aqui. Nossos festejos são muito longos e tradicionais mesmo na comunidade. Temos outras festas: Nossa Senhora Sant’Ana, Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição. O tradicional mesmo é o Divino Espírito Santo. Tem o levantamento do mastro, tem a missa.

[Sharine] Conte a história para a gente, a da escrava e a do Divino Espírito Santo…

[Elias] O ritual do Divino Espírito Santo é com o Imperador e a Imperatriz, os dois para fazermos a coroação. É com as caixeiras. Também temos umas 30 caixeiras aqui. Temos meninas novas que já tocam caixa, cantam, a caixa do Divino Espírito Santo. Graças a Deus! Também não temos dificuldade para fazer o festejo na comunidade. Temos um grupo. Elas saem, andam o Maranhão todo para representar caixa em outros municípios. Nos outros lugares, não há. São poucos que têm, a não ser Alcântara e Itapecuru. Temos alguns municípios que têm, mas muito poucos. Então, nossas caixeiras saem. Temos muitas caixeiras que fazem o ritual aqui, nossa festa. Ela começa com o levantamento do mastro. Às vezes, fazemos o levantamento na sexta-feira, que é véspera da festa. Ou, então, fazemos faltando oito dias para a festa. Dentro desses oito dias, temos as novenas, a ladainha de reza. Quando fazemos só de sexta para sábado, na sexta-feira, levantamos o mastro e, no sábado, é a festa. No domingo encerra. No terminar da festa dançante, de sábado para domingo, derrubamos o mastro, no domingo, até meio-dia, para fazer o fechamento. Quando a festa é de oito dias, de novena, passamos os oito dias rezando na igreja do Divino Espírito Santo. Em oito dias, tem a festa. Tem a missa antes. Os padres estão celebrando mais na sexta-feira, para que não seja no dia da festa. Eles dizem que, no dia da festa, ninguém quer ouvir a missa direito. Eles ficam só na radiola para ir dançar… Então, trouxeram a missa para sexta-feira. Depois que termina a missa, tem o batizado, temos nossos compadres, nossas comadres, os afilhados. Essa tradição nunca se perdeu aqui. Ainda mais esse festejo dos 250 anos, que é o festejo tradicional, às vezes dá trinta, quarenta, cinquenta batizados por ano aqui. Muito mesmo. É um ritual que nunca foi perdido aqui. Essa parte de fazermos o batizado de nossos filhos e termos nossos compadres, com as comadres. Depois que termina a missa, tem a mesa com o padre. Fazemos uma mesa de alimentação. É um ritual da comunidade também. Nunca perdemos. Um padre daqui não sai com fome. Muita gente gosta de ir para a mesa do padre, porque diz que lá tem tudo. Muitas pessoas acabam almoçando também com o padre. Almoçam com ele porque lá é para onde vai tudo [risos]. Graças a Deus nunca perdemos isso.

Uma das preocupações agora, estive até conversando com papai, é que temos um festejo do Divino Espírito Santo que fazemos desde 2000. Fazemos há 21 anos. Nesses dois anos, não houve por causa da pandemia. Não houve em nenhum lugar daqui. Os festejos tradicionais pararam. Na comunidade, estamos discutindo para ver como recomeçar essa questão, quando tudo isso passar, quando essa pandemia passar, como vamos recomeçar os festejos. As coisas dispararam de uma tal maneira, essa parte de alimentação, essa parte de custo, tudo disparou de uma tal maneira, que foi além do que conseguimos ter, foi além do orçamento das comunidades, dos municípios, de tudo. Todo mundo está no nível do estoque. Depois de tudo isso, todo mundo tem que fazer um planejamento para a vida. Não sabemos como vamos viver daqui para frente. Não só as comunidades tradicionais, mas todo o povo do Brasil. Temos que pensar como adaptar os jovens novamente nas escolas, nas aulas. Está todo mundo sem ocupar banco de aula, todo mundo nessa coisa. Vai ser um pouco difícil reabilitar as pessoas naquilo que pararam há um ano e meio, há dois anos. Não sabemos quando vai parar essa pandemia. Esperamos que pare logo depois da vacina, que ela vá embora, que saia do povo. É uma das coisas com que nos preocupamos. Não sabemos o que tem mais nessa pandemia, se a vacina vai dar mesmo certo. Pedimos a Deus que dê. Mas não há nada que já nos garanta que a vacina vá dar certo. Não temos nada que nos garanta. Estamos preocupados sobre como vamos voltar a fazer os nossos festejos, para não perdermos. Se não recomeçarmos, depois da pandemia, podemos perder as tradições. Isso é uma de nossas preocupações na comunidade quilombola. É uma de nossas preocupações: como voltamos, damos continuidade aos nossos festejos. Estamos pedindo aos nossos santos, padroeiros da comunidade, que nos mostrem o caminho: depois dessa pandemia, para que lado seguimos, que rumo vamos seguir. Não queremos perder nossas tradições, de jeito nenhum. Eu sei que o povo aqui está doido para brincar o tambor de Crioula, mas não podemos. Está todo mundo ansioso para brincar o tambor de Crioula, mas não podemos de jeito nenhum. Temos o festejo de Santo Antônio, de Nossa Senhora Sant’Ana, de Nossa Senhora da Conceição… Está tudo suspenso por esse motivo. 

[Sharine] Vocês conseguiram acesso a alguma lei emergencial para ajudar no período da pandemia? Teve a Lei Aldir Blanc, vocês chegaram a participar ou não?

[Elias] Nós conseguimos. Aqui no Maranhão, vários municípios conseguiram alcançar os valores maiores da Lei Aldir Blanc. Nós, aqui em Itapecuru, conseguimos para a Casa de Santo da Matriz Africana, para os festejos. Só uma das nossas casas, aqui do Município, alcançou R$ 5 mil no Edital. As outras ficaram todas na faixa de R$ 4.203,00. Nós temos um grupo de capoeira aqui, Os Mandingueiros do Amanhã, e conseguimos buscar também esse valor, mas só esse valor de R$ 4.203,00. Só uma casa conseguiu R$ 5.203,00. Outros não conseguiram. O Edital tinha uma restrição muito dura para alcançarmos, buscarmos esse recurso. Ele foi muito difícil para as pessoas. Ainda bem que lutamos aqui com o prefeito da gestão passada e conseguimos criar uma Secretaria de Igualdade Racial. A UNIQUITA começou a discutir com ele essa questão e, graças a Deus, ele criou para nós, em 2019. De 7 a 10 de janeiro conseguimos discutir com ele, foi criada a secretaria e, a partir de 1º de janeiro, ele empossou nossa secretária, que é quilombola também, a Eliane Quilombola. Lá, havia ela e havia mais um assessor, o João Batista, que é pai de Santo. O pai João Batista fazia parte da nossa secretaria e estávamos ajudando também, com a UNIQUITA. Nós conseguimos trazer nosso povo, conseguimos fazer alguns cadastros para nosso povo. Isso em pouco tempo porque, quando o edital chegou, ficou suspenso por muitos dias porque o município, as pessoas não sabiam se adequar a ele, não sabiam trabalhar com ele. Foram buscar informação… Nós pensamos que não havia saído o edital do Município. Em poucos dias, tinha que abrir conta, tinha que fazer o cadastro, tinha que não sei o que, não sei o que… Foi uma burocracia. O Banco do Brasil não abria conta, tinha que abrir na lan house. A lan house não fazia… A internet caía, o sistema não estava funcionando. Foi uma loucura! E com a pandemia! Ainda tinha essa! A pandemia! Você não podia estar em espaços com aglomeração. Então, o Banco do Brasil tinha dia para atender e tinha hora. Às vezes passava da hora e as pessoas não conseguiam. Alguns grupos aqui não conseguiram nem esses 4 mil reais, e não conseguiram até hoje. Terminou a gestão e o dinheiro voltou para o Governo do Estado.

Até agora estamos sem saber o que será de novo para esses grupos. Os terreiros daqui, as mães de santo, os pais de santo, vivem de seus cultos. Às vezes fazem algum trabalho para a pessoa e acabam sustentando a casa, comprando luz, o defumador, os incensos da casa. Essas coisas foram suspensas porque os pais de santo não podem receber ninguém. Não podem receber pessoa nenhuma na casa. Estamos preocupados com nossas casas de santo, pensando como vão sobreviver, como vai ser daqui para frente. Em abril temos que fazer a prestação de contas desse pequeno recurso, dessas casas que conseguiram. Achamos que teve muita burocracia porque nosso povo não tem esse grande conhecimento. Nosso povo não está na tecnologia. Essa tecnologia surgiu há pouco tempo. Nem todo mundo está na tecnologia, nessas coisas. Eu, por exemplo, tenho um celular. Eu uso WhatsApp até onde dá. Nas outras coisas eu não entro, eu não sei. Minha menina às vezes desenrola aqui algumas coisas, mas coisa difícil não dá para mim [risos]. Tirar uma foto e enviar é o de menos, fazer um áudio também. Mas não estou habituado para outras coisas, não temos cabeça para outras coisas. Isso está mais para a juventude. Nossos pais de Santo acabaram. Você precisa ter internet, você tem acesso à internet, você tem um celular para ter acesso aos editais. Então foi muito difícil, muito difícil mesmo.

[Sharine] Que pena… Mas o pouco recurso que entrou conseguiu ajudar pelo menos por um período…

[Elias] Conseguiu ajudar, graças a Deus! Alguns conseguiram ampliaram alguma coisinha na casa, outros compraram imagens, compraram as luzes, compraram incenso. Graças a Deus, deu para ajudar. Um pouco, mas, mesmo assim, deu para ajudar.

[Sharine] Quando não havia ainda a pandemia, antes dessa situação, como vocês se relacionavam com as instituições culturais? Não sei se na sua cidade há uma secretaria de cultura… Como funciona isso?

[Elias] A Secretaria de Cultura do Estado trabalha com alguns grupos da Matriz Africana. Mas não trabalha no Maranhão. Nós temos um município a 110, 117 quilômetros, mais ou menos, da Capital. Nossa comunidade fica a 86 quilômetros da capital maranhense. Nossas casas de santo não têm recurso nenhum da Secretaria de Estado. Essa ajuda é mais na área urbana, dentro da capital mesmo. As casas de santo do restante vivem com suas próprias forças. Temos pessoas, pais de santos, cujas casas eram feitas de taipa de madeira, taquara de barro, e hoje eles não têm mais condições de fazer. A casa estirou, a casa caiu. Não há essa ajuda do Estado, pelo menos para construção das casas. Eu acho que uma responsabilidade que o Estado poderia assumir é ajudar a construir as casas de santos das pessoas. Tínhamos, nas gestões passadas, no festejo do Divino, três festas na comunidade, que recebiam uma ajuda de custo. Há uns 6 ou 7 anos, não há mais essa ajuda de custo, que era para os festejos, para a missa. Acho que a Secretaria de Cultura do Estado tem que abranger todo o estado.

Nós temos um bloco afro, aqui no Itapecuru, que é muito bom. Nosso bloco só em um ano conseguiu receber 5 mil reais do Estado. De lá para cá, não recebeu nada. Chega a época do carnaval, fazemos o projeto e mandamos para os apoiadores, que são quem mais ajuda. O prefeito da gestão passada, graças a Deus, nos ajudou muito a colocar o bloco na rua. Senão, não colocaríamos. Esse bloco precisa de, mais ou menos, dez ônibus, para trazer o pessoal das comunidades. Em dois dias de carnaval, dá mais ou menos dez ônibus. A gestão passada nos ajudou muito. Nos outros anos saímos sem ajuda da Secretaria de Estado. É um negócio muito difícil. É isso que acaba enfraquecendo a cultura. Se o Estado tomasse sua responsabilidade em ajudar esses grupos, o Município, abaixo do Estado, também tivesse a responsabilidade de ajudar esses grupos pela Secretaria de Cultura, acho que tudo funcionaria muito bem. Eu acho que o Estado poderia ter um registro de todas as casas afro do Maranhão. Fazer o planejamento para saber até onde poderia ajudar, com o que poderia ajudar. Eu creio que o Município também deveria ter isso. A Secretaria de Cultura, no Município, também deveria ter um levantamento de todas as tendas de culto afro, de todos os grupos, para colocar no planejamento, para ajudar com recursos. Se nós fôssemos o governo, se nós fôssemos o prefeito, seria outra coisa… Iriamos beneficiar o nosso povo.

Existe uma coisa que atrapalha: a política. Quando a política passa, há pessoas que têm aquilo com elas: “não votou em mim, não é do meu grupo, pronto, acabou-se”. O que se sabe: o prefeito que ganhar, o vereador é vereador de todo mundo. É vereador do município. É prefeito do município, da população que reside no município. Então, muitas coisas têm que ser desmanchadas após a eleição. Nós só vamos ter o Brasil, o Maranhão, os municípios realmente com a aplicação das políticas se nós formos os gestores, com o pensamento diferente. Enquanto tivermos o povo da elite dirigindo, para nossas coisas, só vem a minoria. Só vem aquilo que ninguém quer. Somos um grupo visto por eles como aquele que só recebe aquilo que ninguém quer. Veja, se o edital da Aldir Blanc fosse coisa de milhões, nós não alcançaríamos. Mas como são quatro mil reais, três mil reais, quem vai se importar com isso? Nós vamos buscar, sabe por quê? Porque é pouco, mas serve para nós. O povo fala que não há mais escravidão, que não há racismo, não há discriminação. Quem disse? O racismo está estampado, a discriminação está estampada. Eles usam a estrutura do município, a prefeitura para ter esse racismo, para impedir nossa entrada na discussão, que a gente vá discutir a política do nosso povo. Isso tem que acabar. Tudo isso acaba nos atrapalhando em nossas culturas, acaba atrapalhando em todas as coisas. Chega o mês de junho, que é o tempo do São João, e eles não levam nosso tambor de Crioula para o arraial. A Secretaria de Cultura poderia ajudar com um pequeno financiamento que seja, pelo menos para comprarmos as roupas das dançantes, para comprarmos os couros para cobrir os tambores. Se a própria gestão municipal incentivar que a gente crie, que a gente vá representar, então, todos os grupos vão se organizando para todos os anos. É uma das coisas que nos preocupa muito, nos preocupa demais. Ainda mais com o Estado, que é a parte maior. Eu acho que a Secretaria de Cultura deveria ver todos os grupos e ajudar. Ajudar os blocos no tempo de blocos afro, ajudar os grupos a chegar ao arraial no tempo de São João. Acho que tudo seria de fortalecimento.

Nós ainda residimos neste país porque viemos de um continente, da África, que é muito forte. Os negros são muito fortes. Os índios são muito fortes. Se fosse outro tipo de pessoa, outro tipo de gente, não estaria mais neste país. Não estaria mais de jeito nenhum. Nós passamos por muitas situações. Às vezes, quando acham algo errado, o que fazem? “Será que foi um preto que fez?” Quer dizer que é só preto que faz coisas erradas? Eu creio que não. Se os pretos fizessem coisa errada, não teríamos as capitais feitas, com aqueles palácios, aquelas casas… Quem construiu foram nossos antepassados. Foi quem nos antecedeu que construiu e, até hoje, não caíram. As casas, os casarões que foram feitos por nossos negros, até hoje estão prontas nas capitais, nos centros das capitais. Então, precisamos ter outro tipo de visão do nosso povo, que vá para a frente das prefeituras, para frente dos governos.

O fardo de arroz aqui já chegou a R$210,00. A pessoa vai receber R$250 e vai trazer um fardo de arroz e um bujão de gás. Ele vai comer o que? A carne está R$35… O frango está R$14… Excessivamente as outras coisas… A farinha a gente tem que dar um jeito… Muitas pessoas têm a mandioca na roça e fazem a farinha. Mas as outras coisas, não. Como a pessoa vai passar o mês todinho com R$250 para almoçar, para jantar, para o remédio? Também há as que recebem só o Bolsa Família ou só o auxílio e são hipertensas. Têm o remédio para pressão, têm a medicação. Há pessoas com deficiência. Almoçam, jantam e tratam da saúde com esse recurso. Como? É uma situação difícil. O que nosso povo está passando, o que estamos passando e ainda vamos passar é muito difícil. Na cesta básica que nós entregamos, há material de limpeza. Algumas famílias estão economizando o material de limpeza. Mas, quando está acabando, ficam perguntando: “quando vem outra cesta?” Nós não sabemos. Nós ainda não temos uma articulação. Entrei em contato com Brasília para perguntar sobre a cesta básica quilombola, que recebíamos duas vezes por ano. Como nosso povo vai viver? O que vai crescer muito é o índice de contaminação. O povo vai querer trabalhar, vai querer ir para a rua, ver se consegue alguma coisa. Não terá como ficar dentro de casa. Vai morrer de fome. Se não morrer com a pandemia, morre de fome. Há famílias aqui em que o mínimo de filhos são dois. O resto tem três, quatro, cinco, dez filhos. Nós temos famílias muito grandes. Temos famílias que passam 30 dias com um fardo de arroz. Há famílias que consomem três fardos de arroz. Então, estamos nessa situação muito difícil.

[Sharine] Eu fico muito triste com essa situação toda. Mas tomara que passe logo, que o vírus vá embora e que a gente consiga resolver todas as questões políticas. O senhor quer falar mais alguma coisa sobre a cultura, sobre as festas?

[Elias] Estamos vendo se a pandemia passa para podermos levar a cultura para outras comunidades quilombolas que perderam seu ritmo cultural. Queremos incentivar, trabalhar para que isso não morra, para que isso não acabe lá nas comunidades. Estamos fazendo algumas articulações para levar essa cultura de volta às comunidades, para que as comunidades se vejam nela como uma resistência. São várias lideranças. Lutamos por essas comunidades. São comunidades em que o acesso não é bom. Há comunidades que ficam 44 quilômetros longe da sede. Você gasta três ou quatro horas de viagem para chegar lá de carro. A estrada não “compete”, há muitas pontes. Se o povo adoece lá, para trazer ao hospital, chega mais doente ainda. Às vezes não há como fazer um socorro. A distância é muito longa. Às vezes, a mulher está gestante, tem a criança no hospital, e não vem de carro, vem de moto. Às vezes, a comunidade não tem um carro e não dá para chamar um carro. Então, vem de moto. Essa situação pela qual nosso povo passa em nosso município. Acreditamos que tudo isso vai passar, que vamos ser felizes um dia. Cremos nisso porque temos um Deus, temos nossos guias de luz, temos nossas forças. Então, cremos que isso vai passar e, quando passar, não queremos nem nos lembrar. De jeito nenhum. Esperamos que nossa cultura não morra, de jeito nenhum, que continue nos fortalecendo, carregando nossas energias, que nosso tambor de Crioula, nosso tambor de Mina, nossas danças continuem carregando nossas energias para que a gente permaneça viva e forte. Eu quero que um dia você venha ao Maranhão, conhecer a cultura dos pretos.

[Sharine] Com certeza! Para terminarmos, então, o senhor poderia falar um versinho do tambor de Crioula. O que acha?

[Elias] [risos] Olha, temos várias músicas. Mas há uma música que nossos antepassados cantavam para rimar o verso. Às vezes, o patrão ia lá ou mandava o capitão do mato. Eles cantavam a música, dizendo assim: [cantando] “eu botei cachorro nele, eu botei cachorro nele, ontem à noite lá em casa, eu botei cachorro nele…”. Aí dançavam: [cantando] “Mariquinha morreu ontem, ontem mesmo se enterrou, na cova de Mariquina, nasceu um pé de flor”. “Eu botei cachorro nele, eu botei cachorro nele, ontem à noite lá em casa, eu botei cachorro nele”.

[Sharine] Que bonito!

[Elias] Nós temos outras músicas… Temos uma assim. Quando estamos tocando e o “meiãozinho” já está bêbado, está cansado, cantamos: [cantando] “no meião, no meião, no meião, vai sentar outro no meião. Aê, aê, vai sentar outro no meião… Olololô, lô, lô, rapaz, se eu soubesse que tu vinhas, mas eu tinha te esperado, com minha casa varrida, meu cabelo penteado. No meião, vai sentar outro no meião. Alê, lê, lê. No meião, vai sentar outro no meião…”

Temos várias músicas! É muito bom! Eu fiz também um samba no carnaval, em 2019. Nosso território usava o nome de Santa Rosa do Barão. O Barão deixou no testamento que tinha duas léguas de terra: uma que beirava o rio, que ele deixava com a América e seu filho – o Barão tinha um filho com uma escrava, a América, mas ele não dizia que era dele. Ele disse: “vou doar essa légua para a América e seu filho”. Ele não queria dizer que era dele. “E a légua do fundo, eu deixo para meus pretos, que me serviram como escravos”. Nossa comunidade, nós descendemos de sete famílias, de sete escravizados. Ele disse que deixava a légua do fundo para “meus pretos, que me serviram como escravos”. Achando por bem isso e por nossos antepassados, defendemos Santa Rosa dos Pretos. Não defendemos o nome do Barão. Nós queremos esquecer o nome desse barão. Mas ainda há algumas pessoas dentro do território que não sabem disso. Temos os “afoitos” e os “contra”. É igual a jogo de futebol. Uns jogam para ganhar. Os outros também jogam para ganhar. Temos esse povo que ainda defende nosso barão. Nós dividimos nossos blocos e criamos muita música também com algumas coisas do nosso território. Aí me veio à cabeça um samba assim: [cantando] “escuta o samba que eu trouxe para você, que ele eu trouxe foi da escravidão, o meu quilombo Santa Rosa dos Pretos, ele nunca foi Santa Rosa do Barão, ele nunca foi Santa Rosa do Barão…”

[Sharine] Obrigada, Sr. Elias! Foi muito legal conversar com o senhor.

Realização

  Parceria