Canclini na Cátedra

Entrevista realizada com João Batista Pereira, por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 09 de março de 2021.

[Sharine] Minha pesquisa é sobre a Lei a Lei Blanc. Estou colhendo histórias de pessoas que participaram da lei de alguma forma. Para começarmos, o senhor poderia falar sobre sua trajetória, sobre o lugar onde mora, sobre sua cultura.

[João Batista] Meu nome é João Batista Souza Pereira. Eu moro no Quilombo Santa Joana, no Território Santa Maria dos Pretos. Hoje também sou coordenador de uma entidade que temos aqui, a UNIQUITA [União das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Itapecuru-Mirim]. O presidente é o Elias Pires. Sou coordenador de matriz africana dessa entidade. Também sou responsável pelo Terreiro de Mina aqui no meu quilombo, no meu território. Sou vidente da UTUCAB [União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil], no município. Minha trajetória é de Matriz Africana. Nossos antepassados, que vieram da África, já vieram com seu legado. Que legado é esse que hoje tem muita história? Enfrentamos o racismo, enfrentamos todo o tipo de intolerância religiosa, mas estamos indo. Anteriormente, quando se falava em matriz africana, era um “causo” para a sociedade. Também agradecemos os pesquisadores das universidades que estão nos chamando, conversando conosco. Isso é muito bom para nós porque nosso trabalho será divulgado dentro e fora das universidades. O trabalho de matriz africana, com nossos encantados, com nosso culto afro-brasileiro, foi a resistência para nosso povo. Se não fosse isso, não existiríamos hoje. Do jeito que massacraram nossos antepassados, trazidos da África para fazer o Brasil, se não tivéssemos nosso culto e não acreditássemos em nosso povo, no nosso encantado e em outros, estaríamos piores. Mas graças a Deus nós cultuamos e não vamos parar. Temos um pouco de dificuldade hoje porque as outras religiões estão invadindo nossos quilombos para tentar denegrir a imagem da nossa cultura. Mas não vamos deixar. “Cada qual no seu cada qual”. Cada qual leva sua religião da maneira como pode. Nós não aperreamos ninguém. Em nosso culto, tocamos nossos tambores de Mina, nossa caixa do Divino, nosso Coco. Nós cultuamos nossas danças, nosso batuque, porque acreditamos no que estamos fazendo. Quem quiser ir para outra religião, não vamos proibir. Mas que também respeitem nossa religião. Hoje temos um projeto de capoeira do nosso quilombo, com o Criança Esperança. Tudo isso, com a Capoeira, o Tambor de Mina, o Tambor de Crioula, o Toque de Caixa. O nosso batuque é a fortaleza de liberdade para todo o nosso povo, passando de geração para geração. Hoje estamos aqui como uma resistência porque enfrentamos vários obstáculos em nossos quilombos, de pessoas que querem tomá-lo. Mas, graças a Deus, nosso objetivo aqui é nos fortalecer. 

[Sharine] O senhor poderia falar um pouco sobre esses projetos, do encantado, da capoeira, do tambor de mina, o que acha?

[João Batista] Para nós, é sobre o culto de nossos encantados, onde temos uma casa maior, para cultuarmos. Eu tenho uma casinha pequena, mas não é suficiente. Somos muito “povo”, muitas mulheres. Dentro dessa casa, onde cultuamos, também temos uma equipe de parteiras. Lá, anteriormente, não tínhamos médicos. Os médicos erámos nós mesmos, os pais de santo com as filhas de santo, as parteiras. Esse costume ainda não acabou na comunidade. Com a resistência de nossos encantados, esse costume não vai acabar porque também estamos ensinando nossos jovens. Temos uma escola, um suporte bem grande. Hoje, temos a capoeira. Para ficar no projeto, tem que estar na escola. Com tudo isso, nós conseguimos uma escola, bem grande, que vai do jardim ao ensino médio. Também estou correndo para ver se conseguimos um curso profissionalizante para esses alunos, para que esses quilombolas não saiam da comunidade para ir para a cidade, para entrar em área de risco. Quando vão para a cidade, quando saem do quilombo e vão para a cidade, vão aprender outras ciosas, que não são viáveis. Quando voltam, é um prejuízo para nós. Graças a Deus, eles obedecem a nossos encantados, obedecem a nossos toques, nossos tambores, obedecem também ao mestre de capoeira, obedecem ao toque do tambor de crioula. Esse é nosso foco. É uma coisa muito interessante porque não podemos deixar que isso acabe. Nossos encantados são peças fundamentais para nós, que explicam muita coisa, que ensinam muita coisa. Então, isso é viável para nós. Ainda estamos mantendo esse povo dentro do quilombo por causa do respeito.

Eu já nasci dentro da matriz africana. Meu nascimento foi com quatro parteiros, um parteiro homem e três mulheres. Eu já vim complicado, já vim com a sina. Isso é muito importante para minha vida. Não posso mudar para outras religiões. Tenho que cultuar meu culto. Já nasci com ele. Meu povo mais velho, meus parteiros mais velhos, antes de morrer (todos morreram aos 97 anos) me entregaram a responsabilidade: “você é isso, você não vai trocar isso por outra religião que possa aparecer aí”. “Cultue seus encantados, seus mestres, respeite os mais velhos, respeite seu trabalho porque seu trabalho vai dar garantia para muito povo, não só o povo do quilombo como outro povo que vai chegar. Você precisa explicar para esse outro povo o que é tambor de mina, o que são os encantados, o que é trabalhar com a mata, com esses encantados”. Graças a Deus, hoje, nosso trabalho já deu um bocado. Nosso trabalho avançou muito e vai avançar, com a experiência de vocês, da Universidade, que agora estão me chamando para conversarmos um pouco, para entender o que é isso. Muitas pessoas que estão dentro da faculdade acham que trabalhar com o encantado é trabalhar com o Satanás. Isso vem na cabeça de outras religiões. Não, é um culto que veio da África. Aderimos no Brasil porque nossos antepassados já vieram cantando e tocando. Só que era proibido naquela época. Hoje já estamos melhores. A perseguição ainda está aqui, mas é menor. Dá para enfrentar com nossas orações, com nossos guias, dá para enfrentar esses obstáculos.

[Sharine] Quem são os encantados, Seu João?

[João Batista] Eu trabalho com um dos meus mestres, o Tapinambá, que é Mata. Tem o Velho Légua, que é Mata também. São vários, que incorporamos e trabalhamos com esse povo. Eu já vim, de nascença, cultuando. Abrimos a sessão em nossas casas e atuamos. Os espíritos de luz atuam na gente. Realmente, a maioria dos remédios, das garrafadas, saem muito da minha casa para tratar nosso povo. Quem trata nosso povo somos nós mesmos. Agora que estamos indo ao médico, nos consultamos com a outra medicina. Também estamos receitando nossa medicina.

[Sharine] Como funciona a comunidade? Quais festas fazem aí? Como é a economia?

[João Batista] Hoje as casas de culto são um pouco difíceis para nós. Nossas casas são cheias de gente. Recebemos muita gente em nossas casas. Nosso gasto é muito grande. Ganhamos pouco e o que ganhamos é para mantermos a casa. Chega muita gente, dá muita despesa. Estamos recolhendo o quanto temos para ver se melhoramos. No gasto da casa, quando chegam as pessoas, trabalhamos com muita comida, trabalhamos com bebida, com dormitório. Quer dizer que não desperdiçamos ninguém. Quem chega a nossa casa, come, dorme. Sentamos para conversar, abrimos o culto para dar conselho, para ver o que está acontecendo com a família. É um trabalho árduo mesmo, com o que conseguimos deter esse povo e aquietar nossa sociedade. Se cada uma das outras religiões fizesse dessa forma, não estaríamos, no Brasil, com o povo dessa forma. Às vezes, há mães que abandonam os filhos, pais que abandonam as famílias, e vão bater nessas casas de culto. Para nós, as portas estão abertas para atender, para conversar, para aquietar. Isso acontece muito em nossas casas. Não vamos deixar o povo abandonado. Temos que aderir esse povo. Graças a Deus, está tudo certo.

[Sharine] Vocês têm algum financiamento para fazer isso?

[João Batista] Não temos nenhum tipo de ajuda. A única ajuda que temos é fazer nossos remédios e vender, porque ainda não temos o rótulo. Estamos estudando para isso, para vender no mercado. Nosso custo é de fazer um benzimento, de fazer umas garrafadas, para custear a casa. Hoje o material é muito caro. Mas vamos levando dentro do possível, o que fazemos na casa: as garrafadas, os benzimentos. Alguém dá uma oferta e nós mantemos a casa. Hoje, os governos municipal, estadual e federal falam muito em cultura, mas quando chegam à cultura da religião de matriz africana, investem em outras coisas, mas esquecem de um povo que veio da África para fazer o Brasil. Eles podiam investir na cultura. Agora, na pandemia, que saiu o projeto da Lei Aldir Blanc, aqui no município. Foi uma burocracia doida com esse edital. Mas conseguimos um pouco de dinheiro para ajeitar algumas coisas. Não foi o suficiente porque o recurso foi muito pouco. Mas estamos levando.

[Sharine] Como o senhor ficou sabendo da Lei Aldir Blanc? O senhor também ajudou a formular a Lei ou foi só no momento da inscrição?

[João Batista] Saiu um edital. O pessoal do culto concorreu a esse edital, para angariar esse recurso porque ficamos parados e estamos parados na pandemia. Não estamos cultuando, não estamos fazendo obrigação nenhuma. Estamos parados porque respeitamos o decreto do município e do estado. Paralisamos para não corrermos o risco de contaminar. Nós estamos nos cuidando, mas a pessoa que vem de fora para nossas casas pode vir contaminada e temos que respeitar o decreto.  O município e o estado respeitam o que veio do Governo Federal. O estado jogou para o município. O município nos chamou. Nessa época, eu era assessor de uma secretaria de igualdade racial no município. O Secretário da Cultura nos chamou para compor esse edital. Nós fizemos. Algumas pessoas que estavam paralisadas fizeram e adquirimos um pouco de dinheiro.

[Sharine] Então, de alguma forma, vocês conseguiram fomentar sua cultura, as casas de santos, as capoeiras, o tambor de mina também.

[João Batista] Isso. Mas queríamos que a Lei Aldir Blanc fosse mais divulgada porque ficamos muito isolados por muito tempo. Já era para estarmos bem melhor, com condições em nossas casas. Lá atrás nós recebemos alguns pesquisadores, que vieram à comunidade, e que viram que é uma tradição mesmo do culto afro-brasileiro, tanto no Brasil quanto fora. Está mais valorizado. Era muito desvalorizado. O racismo é terrível. Até hoje enfrentamos cada coisa em nosso município que temos vontade de desistir, mas nossos caboclos não nos deixam desistir. Temos que enfrentar mesmo. Estamos enfrentando.

[Sharine] Como é a relação de vocês com as instituições culturais da cidade? Não sei se vocês têm uma secretaria de cultura, museus, teatros. Como funciona?

[João Batista] Quando saímos de uma política para outra política é complicado. Tínhamos dificuldade com um gestor municipal, da outra gestão, mas ele aderiu. Nós tivemos uma conversa com ele e ele criou uma secretaria de igualdade racial, por meio da entidade que nós temos, a UNIQUITA. Quando o outro prefeito ganhou, aqui está sendo uma burocracia louca. Aqui nós temos 71 comunidades negras no município. É bem grande o número de negros. O culto afro é muito grande. Há muitos terreiros. Já era desassistido, agora está pior… Eu sou vidente da UTUCAB e estamos correndo para atualizar essa entidade, a União dos Terreiros do município. É uma burocracia louca. Não sabemos onde vamos parar. Nós estamos levando. Não podemos desistir. Não podemos desistir da luta. Vamos vencer.

[Sharine] E os mais jovens se interessam por essa cultura? O senhor disse que há uma escola…

[João Batista] Sim, é o que estou dizendo. De meus festejos religiosos participam todos os jovens. Eu faço minha caminhada com os jovens. Eu respeito os jovens e os jovens me respeitam. A maioria é de sobrinhos, afilhados e netos. Todo mundo da comunidade me respeita como pai. Se não for como pai, como padrinho. É uma coisa que não deixo acabar. Já vem de geração em geração. Hoje, na comunidade, tenho um grande respeito pela juventude. Eles me respeitam. Não faço coisas para que eles me desrespeitem. Isso é um trabalho árduo que temos que ter. Rezo com eles, converso com eles. Na hora do toque do tambor, está todo mundo junto. Eu estou querendo um recurso para fazer umas oficinas de tambor para tocar nos festejos, para terminarem de aprender a tocar tambor. Também temos oficina de capoeira. Já sabemos tocar capoeira, cantar. É uma tradição que não estamos deixando morrer. Precisamos só de mais um empurrão porque não temos recursos para manter. Estamos correndo atrás para ver se conseguimos. Para manter essa juventude, tanto meninas quanto meninos, na comunidade, tenho que angariar recursos para uma formação. Minha intenção é formá-los para que fiquem no território, sem sair. Há outros quilombos em que a juventude está para fora, em São Paulo, no Rio de Janeiro, todos no trabalho escravo. Não queremos isso. Nossos antepassados já vieram dessa condição. Queremos mantê-los na escola, queremos que façam cursos profissionalizantes para que aprendam a viver neste mundo. Quando saem da comunidade, quando saem do quilombo e vão para outro lugar, eles param os estudos. Não queremos isso. Queremos que se formem “tudo em quanto” e somente dentro dos tambores. Os tambores são uma resistência para aprender outras coisas que interessam para suas vidas.

[Sharine] Essas oficinas de que o senhor falou seriam somente para os jovens da comunidade ou abertas para outras pessoas também?

[João Batista] No meu pensamento, nossos estudos de matriz africana são para todo o povo, tanto para o jovem como para o adulto. Os jovens são o futuro do agora. Os adultos já são. Mas a metodologia que existe hoje muitos adultos não sabem. A internet já está dominando. Esses adultos e os novos têm que aprender e ensinar para os mais velhos. Os mais velhos trocam experiência. O que o mais velho sabe, ensina para os jovens. O que os jovens sabem, ensinam para os mais velhos e para todo o povo, tanto para homens quanto para mulheres. Aí sim, terei uma cultura melhor na comunidade. Ainda estou controlando minha comunidade porque sabemos que esse mundo está muito perigoso. As drogas estão invadindo, acabando com a juventude. Mas estou controlando. Graças a Deus, ainda tenho um pouco de controle dentro do meu quilombo.

[Sharine] Fico muito feliz! O senhor quer falar mais alguma coisa? Contar mais alguma história sobre sua cultura?

[João Batista] Não, o que estou dizendo é isso: o que não quero que morra. Nós temos uma equipe de parteiras, mas não sabem ler nem escrever. O Estado mandou me convocar e eu mandei umas três parteiras para fazerem uma oficina no Estado. O município também aderiu. Ficaram faltando umas oficinas, porque, como não sabem ler nem escrever, para enfrentar um parto no posto de saúde ou no hospital, precisam de alguém para assessorá-las, na hora de leitura e em mais alguma coisa. As outras coisas elas sabem fazer. Fazem o parto direitinho. Para não morrer, temos que ensinar a juventude que está estudando e, também, as filhas das parteiras, as pessoas da comunidade. Nós tratamos de um povo diferenciado, com respeito mesmo: os mais novos respeitando os mais velhos; os mais velhos respeitando os mais novos. Não queremos que essa tradição morra. Agora mesmo, tive uma conversa com uma pessoa da comunidade porque há um pastor querendo entrar e não estou querendo proibi-lo, mas quero ter uma conversa com ele: “não entre aqui porque aqui nós zelamos por uma cultura. Se você entrar com outra cultura, vão esquecer desta aqui.” Temos cuidado com isso porque “cada qual no seu cada qual”. Não podemos ultrapassar o sinal. O respeito é tudo. “Respeite a minha religião e eu respeito a sua”. Não posso entrar em uma religião evangélica sem pedir permissão para isso. O que vou fazer lá? Ele segue o caminho dele e eu sigo o caminho com meu povo. Até hoje nós temos domínio de conversa com eles. Ontem à noite, deu curto-circuito no quilombo e faltou energia. Eu achei interessante. Os meninos fizeram uma fogueira de fogo. Ficamos eu e os jovens todos em volta da fogueira para conversarmos. “Quando não tínhamos energia na comunidade”, eu contei para eles, “era assim que nós vivíamos no quilombo, com a fogueira, com nossa lamparinazinha. Nós conversávamos. Não havia dificuldade e todos se respeitavam.” Nós estávamos em volta da fogueira. A ideia de fazer essa fogueira partiu deles mesmos. “O que vocês vão fazer?” “Vamos fazer uma fogueira”. Sentamos todos ao redor do fogo e sorrimos. Quer dizer, não existe um preto triste. Por mais necessidade que passe, todo tempo é sorrindo, todo tempo é alegre. Nós já estamos com a felicidade. Eu espero que você tenha gostado da nossa conversa, da nossa palestra.

[Sharine] Foi ótima! Eu gosto muito de conhecer outras culturas e de saber como as pessoas vivem, de conhecer outras religiões. O senhor quer contar mais alguma história?

[João Batista] Não, tranquilo. Minha comunidade é muito humildezinha. Lá atrás, nós conseguimos as casas porque não tínhamos casas. Conseguimos uma escola também. Nós erámos muito humildes, não tínhamos nadinha. Mas estamos conseguindo. Alguém nos ajuda. Agora mesmo, estamos pedindo, por causa da pandemia. Dentro do quilombo, é difícil. Estamos fazendo campanha para pedir cesta básica. Vai ajudar nosso povo. Somos humildes.

[Sharine] Então é isso, Seu João, muito obrigada!

[João Batista] Obrigada também! Qualquer coisa, estamos aqui à disposição.

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