Canclini na Cátedra

Entrevista com colaboradores da equipe técnica da Funarte SP, realizada por Sharine Melo, pela ferramenta Google Meet, em 10 de março de 2021.

Participantes:

Emanuella Maia (Mana): técnica de som

Ronei Leandro Novais: técnico de iluminação / secretário teatral

Carolina Gracindo (Carol): técnica de iluminação / artista visual

 

[Sharine] Para começarmos a entrevista, vocês poderiam falar um pouco sobre sua trajetória profissional, se trabalham como artistas, além de serem técnicos, como chegaram a trabalhar com a técnica, sua relação institucional, se trabalham em outros lugares além da Funarte.

[Mana] Eu atuava em outra área. Sou bacharel em turismo, fui comissária de bordo, trabalhei com livrarias. Já passei por diversas áreas. Na verdade, sempre tive uma ligação muito forte com artes, mas deixava à parte. Sempre tive diversos interesses, mas a arte era como um hobby. Em certa altura, eu estava com 26 anos, falei: “não dá mais para fugir do que eu sou”. Entrei em um curso de sonoplastia na SP Escola de Teatro. Fiz, por dois anos, o curso de sonoplastia, que é mais voltada à parte artística e de criação, como desenvolvimento de trilhas. Dentro da sonoplastia, você pode atuar em diversas áreas, seja na criação de trilhas para videogame, para peças de teatro ou para filmes. É um campo muito vasto. Mas, dentro da sonoplastia, eu conheci a técnica e falei: “é isso que eu quero fazer”. Eu me encontrei. Depois que terminei o curso da SP, que durou dois anos, fiz o curso no Instituto de Áudio e Vídeo. O curso para técnico dura seis meses: Fundamentos de Áudio e Vídeo. Quando estudava na SP, já tinha aparecido uma oportunidade como freelancer. Fiz algumas peças teatrais, fazendo operação de áudio. Dentro da técnica, há diversas funções: a parte de microfonista, a parte de operador de áudio. São várias subdivisões na área. Fiz um pouco de tudo. Comecei fazendo a parte de operação, depois surgiram outras oportunidades. Fui mergulhando na área. Já trabalhei por seis anos como freelancer. A Funarte foi meu primeiro trabalho fixo na área. Nesses freelas, eu trabalhei como microfonista, operadora de áudio, técnica. Trabalhava para algumas companhias. Ainda trabalho para duas companhias: o Núcleo de Pesquisa Ágora, do Celso Frateschi, em que sou sonoplasta, mas acabo desenvolvendo todas as funções, desde a parte de criação e montagem; e o Grupo Três de Teatro, com um espetáculo específico, Neste mundo louco, nesta noite brilhante, em que não desenvolvi a criação da trilha, mas atuei como microfonista, operadora e técnica de áudio. Fazia três funções em uma. Paralelamente ao meu trabalho na Funarte, tenho um envolvimento com esses dois grupos de teatro. É isso.

 

[Sharine] Quer falar, Ronei?

[Ronei] Comecei a fazer oficinas quando morava em São Bernado do Campo (SP), pela Prefeitura. Existia um núcleo forte de oficinas na época, em 2005. São Bernardo “bombava” de eventos culturais e tinha diversos espaços, que eram vinculados à Prefeitura e ofereciam oficinas de diversas linguagens. Eu comecei fazendo oficina de percussão, depois vi que “não era muito a minha”, fui fazer oficina de teatro, em que acabei me encontrando mais. Fiz duas oficinas sequenciais nesse projeto. Os oficineiros que nos davam aula tinham outro projeto em Santo André (SP) com seu grupo de teatro. Eles me convidaram para também fazer parte do grupo. Era uma grande oficina que acontecia aos domingos. Era o grupo Conspiração, que fazia esse grande encontro aos domingos e acabou se tornando o Transpiração. O Conspiração fazia oficina para o Transpiração. Nós tínhamos um processo colaborativo. Muitas pessoas começavam esse curso no início do ano. Lembro de alguns ápices. Houve um ano em que começamos com cem pessoas fazendo essa grande oficina, que terminou com quarenta ou cinquenta pessoas. Foi um grupo bem grande.

O maior aprendizado de tudo isso é que o grupo do Teatro da Conspiração tinha a metodologia do trabalho colaborativo. Essa metodologia nos coloca, como aprendizes, em diversas áreas, diversos conhecimentos que envolvem uma apresentação. O maior foco era a encenação. Porém, fazíamos nossa vestimenta cênica, fazíamos nosso cenário, fazíamos a montagem de luz, fazíamos a montagem do áudio. A proposta sempre era ter uma banda em cena, músicos em cena. Aprendíamos a tocar uma coisa ou outra para entrarmos em cena tocando algum instrumento. Nessa leva fui me desenvolvendo mais na área de iluminação cênica. Consegui entender melhor o processo da iluminação cênica, de 2005 a 2009.

Em 2009, fui convidado a trabalhar como técnico de iluminação na Funarte. Foi onde me desenvolvi profissionalmente, no dia a dia, com os grupos que iam ocupar os espaços da Funarte. Foi onde, profissionalmente, passei a entender outras coisas: a estética dos espetáculos, a poesia que envolve toda a questão da montagem… Por que se direciona um refletor para cá e não para lá? Qual a ideia do profissional que cria essa luz? Qual a ideia de quem está montando? O que é preciso entender para chegar às expectativas do iluminador que criou a luz? Fui aprendendo que a iluminação também é segmentada. Há o profissional que cria a luz, o profissional que monta a luz no espaço físico, há o profissional que opera essa luz, que faz essa nuance que é a poesia do entrar e sair da luz, da velocidade, da intensidade da luz, da cor, de toda a proposta cênica que combina com o figurino, com o cenário, com o elenco em cena, atores e atrizes. Foi nesse processo de trabalho do dia a dia, esse trabalho continuado, que fui adquirindo maior “gancho” nesse lugar.

Depois disso, entrei na faculdade, consegui me graduar em teatro. O curso que fiz, pela Anhembi Morumbi, chamava-se “Teatro”. Há outros cursos que se chamam “Artes Cênicas”. A proposta da Anhembi Morumbi era chamar o curso de teatro de “Teatro”, o curso de dança de “Dança”. Havia outro tipo de visão da metodologia de ensino. Eu me graduei lá e, ainda assim, continuei como técnico. A área técnica foi de onde veio minha subsistência. Foi o trabalho que me deu dinheiro par pagar aluguel, para pagar meu lazer, minha alimentação, meu transporte…

Houve um tempo em que fiquei afastado desse trabalho na Funarte, onde eu tinha um salário fixo. Quando fiquei afastado, comecei a fazer os trabalhos como freelancer. Os grupos passaram a me convidar a trabalhar com eles e fui conhecendo o trabalho que “a galera” chama de “trecho”: cada montagem em um lugar, um espaço cênico diferente do outro… Fui ampliando meu conhecimento da estética do espetáculo. Você monta em um local, estreia em determinado local e cria ali uma proposta. Quando vai para outro espaço, você adapta toda a primeira proposta para uma segunda proposta. Aí vai para um terceiro lugar, onde se adapta de novo. Há essa compreensão do todo, de como funciona nas particularidades do espaço físico. Às vezes é um palco italiano, às vezes é um palco de arena, às vezes é um espaço multiuso que não tem tantos recursos técnicos. Às vezes é um espetáculo de rua que vai para dentro de um palco, que vai para dentro de uma sala de espetáculos, mas você adapta e entende como vai acontecer essa linguagem nos mais diversos espaços.

Depois de uns dois anos fazendo o “trecho”, eu fui convidado a voltar a trabalhar na Funarte. Agora estou na Funarte como Secretário Teatral. Uma das funções do Secretário Teatral é fazer essa organização técnica. Já desenvolvia esse trabalho antes, mas agora está formalizado. Então, consigo fixar melhor esse olhar de fora para dentro. Consigo olhar para os técnicos trabalhando e avaliar esse processo, o que é preciso para melhorar no dia a dia, criar novas metodologias, trazer processos teóricos de pesquisadores para discutir o que fazemos, para tentar não ficar estacionado, reproduzindo sempre a mesma coisa, que é subir e descer de escada. Há a proposta de sempre manter “a galera” com o pensamento ativo do que eles estão fazendo, apesar de ser sempre no mesmo lugar. Não para fazer diferente, mas saber que existem outros universos dentro de nossa função. Estou nessa labuta, tentando entender com eles como vamos evoluir tudo isso. 

[Sharine] E vocês chegaram a participar, de alguma forma, da Lei Aldir Blanc, durante o processo de elaboração, que foi bem colaborativo, como técnicos ou proponentes de algum espetáculo, participante de algum edital? Como foi?

[Mana] Eu entrei no grupo de pesquisa do Teatro Ágora, do Frateschi. Fiz parte da Lei Aldir Blanc, como sonoplasta e técnica, mas não fomos contemplados no edital. Tínhamos o espetáculo Woyzeck, com o qual ficamos dois anos em cartaz. Essa fui minha atuação na Aldir Blanc, para dar o suporte técnico que precisavam. Como fazia parte do Núcleo de Pesquisa do grupo de teatro, eu continuei. Mas não fomos contemplados nessa parte. Só um adendo, à primeira pergunta. Falei muito da parte técnica, mas, na questão artística, fui DJ por um tempo, atuei em um coletivo de discotecagem. Fiz um curso em São Paulo, no Instituto Dandara, no Núcleo de Atuação Cultural, no bairro de Santa Cecília. Também na sonoplastia, tinha um programa de música, voltado à pesquisa em música latina, que chamava La Sabrosa [Rádio Web Conexão BR]. Eu fazia todo o roteiro, a lauda, a gravação a parte técnica de edição e a locução. Na parte artística, tenho essa coisa, mas gosto mais da parte técnica mesmo, de estar nos bastidores. É o que mais curto.

[Sharine] Você participou, Ronei, das discussões da Lei?

[Ronei] Não participei ativamente das discussões, não fiz nenhuma assembleia, nenhuma reunião. Fiquei na observação paralela, conversando com amigos, conversando com produtores. O mais efetivo que tenho presenciado são os grupos que vão ocupar os espaços da Funarte e vão fazer suas filmagens. É onde tenho presenciado algumas realizações, algumas dificuldades que os grupos têm para realizar as propostas, entender o que é a filmagem, como você transforma uma linguagem que, a princípio, é ao vivo, com o público diretamente ali, e o que fazer para que essa filmagem não se torne um filme e, sim, um espetáculo filmado, tentando manter a estética do espetáculo. Eu vi uma dicotomia no entendimento. A cabeça dá um nó: “se estou filmando, é um filme e tem outra proposta de estética”. “Mas é um teatro filmado”. “Mas é um filme…” E fica uma discussão… Acho que vamos entender o que é daqui a um tempo ainda. Tenho participado mais dessa observação.

[Sharine] Para você, qual a diferença entre um filme e um teatro gravado?

[Ronei] Eu tenho tentado responder isso. Minha companheira é do audiovisual. Seu lado artístico é o estudo de filmagens. Discutimos isso. Ela diz: “é um filme”. Eu sou do teatro e falo: “não, é uma peça filmada. É diferente”. Aí entram algumas histórias da técnica, que fazem a diferença. Não conheço por dentro uma equipe de filmagem. Mas sei que há profissionais e técnicos voltados para um pensamento sobre como passar aquela determinada cena filmada para o final, que é reproduzi-la em uma tela. Isso é um pensamento singular. Eles pensam não sobre o que está sendo visto ao vivo. Pensam o que será passado em uma tela. Às vezes, você está vendo uma luz sendo filmada. Quando você vê a luz representada, é outro processo de edição. Há uma sonoplastia colocada em cena, que, na hora de filmar, não está ali. Há um rebatimento “x, y, z” de uma luz que, ao vivo, está sendo feita, mas você não entende como aquilo, enquadrado, vai reagir na tela. Há um profissional que entende. Há um profissional que olha para o real, para as pessoas físicas, para a câmera, para a tecnologia que tem à mão e consegue compreender essa composição toda, como isso vai se dar na tela. É coisa diferente do teatro filmado. Eu não acho que “a galera” do teatro que está sendo filmado pensa o teatro que vai aparecer na tela.

Lógico que há grupos que estão interagindo uma linguagem com a outra. Em algumas ocasiões, por exemplo, quem foi fazer a filmagem era diretor de fotografia, que já é voltado ao segmento do audiovisual e não a um espetáculo de teatro. O cara foi filmar um espetáculo de teatro, mas é diretor de fotografia. Então, ele foi lá pensando tecnicamente. A cabeça dele, artisticamente, é voltada para o cinema, por exemplo. Aí você tem a interlocução entre as linguagens. Existe essa diferença. Mas custa caro, a tecnologia custa caro, os técnicos custam caro… Às vezes, você não conhece, não tem tantas referências sobre quem é o técnico que deve chamar para entender sua necessidade estética, se você quer colocar seu espetáculo no cinema… Está tudo indo no empírico, as pessoas conhecem as linguagens umas das outras. No mínimo, curte assistir um cinema, mas é ator, é diretor, é iluminador, é técnico de teatro. Mas consegue conversar um pouquinho com outra área. Ainda assim, quando vai fazer o trabalho filmado, pensa em filmar o espaço cênico como uma cena de teatro, não como uma cena voltada para um filme, para o cinema. Acho que essa é a diferença: quem faz, a cabeça de quem está fazendo, o processo artístico de quem está fazendo. Não é o que você está vendo no final. Posso ver um espetáculo filmado, mas não quer dizer que seja um filme, não quer dizer que seja cinema. É filmado, mas não é cinema. Não sei nem se é assim que fala agora. Não sei que palavras usar nessa coisa integrada que está acontecendo. Mas está acontecendo. Alguma coisa nova está surgindo.

[Sharine] E tem tido público, não é?

[Ronei] Tem tido público. E tem alcançado outros públicos. Isso também está sendo interessante. O público que tem assistido à peça filmada, ao espetáculo filmado, não é o público que vai assistir ao vivo. Tenho escutado muito isso: “a minha tia, bisavó, lá do outro lado do país, assistiu a minha peça aqui em São Paulo. A cidade dela nem tem um espaço cênico”. Então, é uma pessoa acostumada com o cinema que, de alguma forma, foi cativada a assistir a um espetáculo, só que filmado. É mais ou menos isso. Tem alcançado pessoas de outros lugares.

[Mana] Acho que o público é o principal. A questão da relação entre artista e público, para mim, foi a primeira diferença. Também há a questão da adaptação da linguagem do teatro e do show, dos espetáculos, gravados. É bem diferente tanto a interação quanto a parte técnica mesmo. Entra uma série de questões, desde os equipamentos, que são bem específicos. Nós utilizamos placa de áudio. Mas há a placa de vídeo, as transmissões. Há um programa que faz essa transmissão. Tivemos que nos reinventar e estudar essa nova linguagem. Para nós, foi tudo muito novo: pesquisar os equipamentos necessários para realizar a transmissão, a questão da internet (a qualidade do sinal é importante), a placa de vídeo, placa de áudio, o tratamento do áudio, o técnico específico. Mudou muito. Para nós, também foi muito novo. Eu falei, anteriormente, que estava envolvida com o Núcleo de pesquisa Ágora, como integrante. O grupo de que faço parte não foi contemplado na Lei Aldir Blanc. Mas, na Funarte, tivemos contato com grupos, com núcleos e artistas contemplados na Lei. Foi um aprendizado, uma nova forma de fazer nosso ofício. É muito diferente, na verdade. É bacana porque era uma forma que já acontecia no YouTube. Alguns artistas já faziam transmissão de lives. Eu tive a oportunidade de ter contato com a tecnologia e com tudo o que envolve essa transmissão dos espetáculos e shows para internet, essa nova linguagem do fazer artístico. Foi muito positivo. Para mim, foi bom. Agregou muito conhecimento. É uma linguagem que vai perdurar. Quando passarmos por essa fase de pandemia, acredito que continue também. Uma não anula a outra.

[Carol] Eu tenho uma trajetória um pouco caótica. Mas sempre tive esse ponto de referência, que é o trabalho técnico. Para mim, é um ponto de referência por muitas questões. Pela questão financeira, porque foi o que me garantiu relativa estabilidade dentro do campo artístico. É uma área em que a estabilidade é difícil, pela falta de incentivo do governo. Mas consegui uma relativa estabilidade melhor do que só em cima do palco ou só na produção. A área técnica exige especializações. Acho que é nesse aspecto da especialização que o retorno financeiro se dá com um pouco mais de garantia, quando a pessoa não tem outra alternativa, a não ser chamar um especialista naquela área, uma pessoa que sabe com qual ferramenta e com qual tecnologia lidar para algumas demandas. As instituições se veem obrigadas a ter esse profissional. Isso foi um dos motivos que me fez aproximar da área técnica, esse reconhecimento de que é um profissional importante para fazer tudo acontecer.

Eu tive essa vontade de trabalhar na técnica por uma questão política de entender o campo das artes como uma área colaborativa em que a gestão não trabalha se o operacional não estiver de acordo e vice-versa. Eu entendi que precisava conhecer um pouco de todos esses caminhos para me sentir bem, antes de qualquer coisa, para dialogar com as pessoas em um nível mais horizontal. Realmente, é um dos lugares em que me sinto melhor, em que as pessoas têm um nível de tratamento mais humano. Isso me aproxima muito da área técnica. Eu gosto de fazer a parte administrativa, gosto de gestão, gosto muito da parte criativa. Mas o meio, as pessoas que formam esses meios, muitas vezes acabam se tornando um pouco mais burocráticas. O trabalho acaba moldando um pouco algumas personalidades, não de propósito, mas a pessoa incorpora certas formas de pensar. Isso me afastou um pouco desses lugares, apesar de ainda articular muito com esses lugares quando me sinto bem com a equipe. Há equipes com que faço trabalhos especificamente criativos porque são equipes que não perderam esse aspecto humano. Não é algo determinante. Não é porque trabalhamos com o criativo, com a gestão, que necessariamente nos tornaremos burocratas. Não é isso, mas acontece com alguma frequência. Acho que o contexto em que estamos agora mostra um pouco isso também, essa falta de humanidade que se dá por conta da necessidade de apresentar números. É uma necessidade que se coloca toda vez que entra incentivo financeiro e a institucionalização em si. Acho que ela busca comprovações do que está sendo feito por meio dos números. Para mim, fica um pouco mais evidente, durante a pandemia, quando existe uma urgência por humanidade nos tratamentos, nos relacionamentos profissionais e pessoais. Eu sinto essa urgência por perceber a humanidade das pessoas com quem convivemos. A institucionalização dos editais, por exemplo, ainda não atende essa urgência, essa necessidade, como acredito que poderia. 

[Sharine] E como você acha que poderia ser?

[Carol] É uma pergunta difícil. Acho que, na pandemia, as coisas se deram todas em caráter de urgência. Sabe-se de uma reserva financeira do tesouro para atender a essas urgências. Foram instauradas essas leis de apoio. Talvez atendam a estágios de fase laranja, estágios de fase verde, amarela[1]. Mas, no estágio vermelho, acho que não resolve. Fica aquela coisa: você está amarrada a um contrato, amarrada a um prazo que precisa acontecer porque é uma lei emergencial para que a cultura não pare. “A vida não pode parar”. Só que existem estágios de uma pandemia em que é necessário parar. É necessário que o contrato preveja que existem momentos em que é necessário parar por uma questão literal de vida ou morte. É lógico que eu fico feliz em saber que foram feitas essas leis e que conseguimos trabalhar e ser atendidos para que a cultura realmente não pare. Essa é uma necessidade intrínseca ao ser-humano: produzir cultura e ter contato com essas trocas. Só penso que a grande vírgula é quando vidas estão em risco. O novo contrato também não prevê esse momento do risco. As pessoas falam: “e agora, eu corro o risco maior de morrer ou eu selo o contrato, ou selo o prazo? Tenho que fazer, tem que ser neste dia porque está no cronograma”. Está no cronograma, mas a pandemia não está no cronograma. Acho um pouco complexo.

[Sharine] Você tem relações com as artes visuais também?

[Carol] Sim, com exposições. Minha formação é em artes visuais. 

[Sharine] Artes visuais em geral não têm lives, mas têm outras formas de trabalhar. O que você acha disso?

[Carol] Acho que o teatro e o cinema são bem diferentes, são linguagens bem distintas. O teatro, principalmente, tem se adaptado a uma terceira forma de linguagem, a meu ver, que não é nem teatro nem cinema. É um outro “mix”, mais cotidiano. As instituições tiveram boa estrutura de captação das imagens. Eu vi alguns centros culturais com profissionais muito capacitados para falar sobre as obras, com uma oratória bem desenvolvida. Conseguiram fazer a captação desses profissionais explanando sobre as obras e buscando um diálogo com a pessoa que está do outro lado da tela, com captações em nível TV Cultura, nível de mídias que já articulam com essas linguagens há um bom tempo. Estão fazendo visitas em tempo real aos museus. Foram experiências boas nesse sentido. Existe uma perda em comum das artes visuais com o teatro, que é a presentificação. Chego a me emocionar porque lembro de algumas aulas do ensino fundamental, na escola pública, em que a professora trazia cards de quadros. Ela falava: “esse é da Tarsila do Amaral, esse é o modernismo, esse é o pontilhismo”, falando das escolas de vanguarda. Eu lembro de quando tive a chance de ver alguns desses quadros pessoalmente. Como é distante! É assustadoramente distante! É muito diferente! Talvez você consiga, no âmbito formal, acessar a construção de um quadro pontilhista. Você fala: “estou vendo os pontos, a questão da cor”. Mas o impacto que isso causa nas pessoas é uma experiência que se perde. Da mesma forma de alguém que vê o vídeo de um filme de ação, com várias bombas. É muito diferente ouvir o trovão ao seu lado e ver as explosões dos fogos de artifício do final do ano. É totalmente diferente. Não há comparação. Essa experiência presencial, seja do teatro, seja das artes visuais, acredito que promove um conhecimento único que não se substitui. Acho que isso nenhuma das duas alcançou.

[Sharine] E a relação do trabalho profissional de vocês durante a pandemia. Tem a questão dos cuidados… O que mudou?

[Mana] O staff, a equipe técnica costuma ser maior, envolve mais pessoas e, com essa questão da pandemia, alguns grupos, alguns artistas acabaram optando por profissionais que têm mais de uma especialidade. Por exemplo, um profissional de áudio que entende não somente de áudio, mas de áudio e visual. Ele tem um conhecimento da parte que envolve a montagem, a transmissão, a edição. Para mim, com a pandemia, há essa questão da redução da equipe, o que diminui o número de profissionais envolvidos. Acaba-se optando pelo profissional que é multifacetado, que consegue se expressar de várias formas tecnicamente. Esse, para mim, foi um ponto. No fazer, é basicamente a mesma coisa. Você chega, monta um sistema de som, monta o palco, faz essa parte de montagem do espetáculo.

[Sharine] Mas, para vocês, o trabalho remoto é impossível.

[Mana] É impossível. É uma coisa que só se faz presencialmente. Para mim, o principal é a relação com o público, que é muito diferente. Você não tem essa relação, que é boa. Você vê a reação do público, tem esse contato com o público.

[Sharine] Estou pensando no trabalho profissional de vocês. Há o medo de pegar um metrô para chegar ao trabalho. Há a questão de os teatros estarem fechados. Vocês estão em uma instituição pública e têm um pouco mais de segurança. Mas outros técnicos não têm…

[Mana] Nesse sentido, temos a segurança de estarmos ligados a um órgão público. Tivemos a segurança financeira. É o que nos garante a estabilidade de sobrevivência mesmo. Como é um trabalho essencialmente presencial, nós temos que estar no espaço, no teatro ou em uma casa de show. Isso foi impossível para muitos colegas. Há diversos movimentos e manifestos, como SOS técnica, dos profissionais de áudio. Eles ficaram totalmente desamparados. São poucos profissionais que optam por ter um emprego fixo. A maioria é freelancer. Sem o freelancer, o pessoal se perguntou: “o que vou fazer? Como vou me reinventar profissionalmente?” Essa questão da live é dispendiosa, financeiramente falando. Não são todos os grupos que têm os equipamentos. Há muita gente passando necessidade. Os grupos Mulheres do Áudio e SOS Técnica se juntaram para conseguir auxílio com cestas básicas. Tudo isso para poder ajudar os colegas que ficaram nessa situação, impedidos de trabalhar. É diferente, por exemplo, dos serviços essenciais. Não que a cultura e a arte não sejam essenciais, mas nesse momento, nessa fase, não podemos trabalhar. Estamos em trabalho remoto. Como faz? Como você vai se reinventar? Falam assim: “compra o equipamento, transmite uma live”. Mas não é assim. Para os artistas que têm nome, já é difícil. Eles já têm um apoio de estrutura, de equipamentos profissionais. E já é difícil manter isso. Eles já passaram por dificuldades. O que dirá desses, que não tinham estrutura. É difícil passar por essa situação de necessidade, de sobrevivência. Muitos colegas entregaram suas casas e apartamentos, voltaram para suas cidades e foram morar com os pais, ou deixaram de morar no centro e se mudaram para a periferia porque o aluguel é mais barato. Eu mesma fiz isso, mesmo tendo a segurança de um trabalho CLT, optei por me mudar, por uma questão de saúde mental, por uma questão financeira de estar sozinha. Como você faz? Como você se reinventa no meio do caos? Não é fácil. É muito delicada a situação pela qual muitos colegas estão passando. Ajudamos: “olha, não tenho muito para poder ofertar, mas, se você precisar de um alimento ou de qualquer coisa, me procura ou fala comigo”. É isso. É não ter o que comer. E os preços estão um absurdo.

[Ronei] Eu acho que a Mana resumiu a história. Uma realidade não foge muito da outra. Quem teve a oportunidade de se manter em trabalho remoto e com um salário fixo, está conseguindo pagar aluguel, alimentação, transporte e tenta cuidar da saúde psicológica, da saúde mental para não pirar em relação ao medo de se contaminar. É um medo que todo mundo tem. E há o fato de estar sozinho, como a Mana disse. Quem teve essa oportunidade, como nós tivemos, de ficar em casa e ainda ter o trabalho remoto… É trabalho remoto no nome porque fisicamente é impossível. Nós dependemos do espaço, dependemos dos equipamentos. Nosso trabalho não dá para fazer em casa. O que estou tentando fazer em minha nova função é manter um estudo vinculado ao trabalho presencial: como criar, como desenvolver e como descobrir novas teorias que falem desse trabalho presencial, para, quando voltarmos, podermos melhorar nosso processo que já existe. Meu trabalho tem sido esse junto à equipe técnica. Há também as questões administrativas. Aí, sim, dá para trabalhar remotamente. Não demandam presença física.

Quem não teve essa oportunidade são as pessoas que estão sofrendo com o desemprego. É o que a Mana falou. As pessoas estão debandando do seu lugar de moradia. Há anos estavam ali porque conseguiam se manter com seu trabalho. Mesmo o freelancer, em épocas convencionais, conseguia manter o aluguel. Agora há pessoas de idade já avançada também, não só jovens, pessoas que estão na área técnica há muitos anos, professores que não estão dando conta de se manter, e voltam para a casa dos pais, voltam para o interior, vão para a casa do irmão ou conseguem uma estabilidade em outro emprego. Há pessoas com alto nível de conhecimento se submetendo a esse tipo de situação porque não conseguiram achar outra perspectiva de sobrevivência, de comer, de se alimentar. Eu não conheço e não consigo imaginar outra forma. Ou a pessoa mudou de área… Tenho amigos que conseguiram se manter no local onde moravam antes da pandemia porque viraram padeiros, abriram uma lojinha de doces. Já não têm mais perspectiva de trabalhar com arte e foram fazer outras coisas. Mudaram de área e foram para a área alimentícia. Ainda assim, essa pessoa conseguiu trocar de área, ainda teve a oportunidade de ter um tempo para mudar de área. Tem gente que não tem esse tempo, a urgência está batendo na porta e a situação é desesperadora. Ela acaba entregando seu aluguel e saindo, como a Mana lembrou.

[Sharine] Quer falar, Carol?

[Carol] Acho que a Mana falou muito bem. Ela falou de muitos aspectos que me afetaram e de outros que afetaram técnicos que conheci. A questão da debandada, o retorno para a casa dos pais ou de familiares, por questões financeiras e psicológicas. A maioria dos meus amigos passou por isso. Refiro-me aos técnicos. São pessoas com as quais contávamos para fazer outro trabalho e que já não estão próximas, porque não tiveram condições de retorno. Foi uma mudança de vida. Eu mesma contei, durante cinco meses, com esses programas de cestas básicas. Eu recebi cestas básicas por cinco meses. Fiquei completamente sem trabalho. Retornei. O espaço da Funarte foi um dos lugares onde tive oportunidade de ficar como temporária. Isso me deu, depois de meses, alguma tranquilidade no sentido financeiro. Em contrapartida, eu fiquei e ainda estou com muito medo. Até agora não estou usando transporte público. Sei que isso também é um privilégio, uma vantagem que tive, para ter condições de ir trabalhar, sem me submeter a mais formas de risco de vida. Eu sei que existem pessoas que deixaram de pegar trabalhos porque realmente não tinham condições de chegar ao trabalho. Se você não tem condições sequer de chegar ao trabalho, como vai trabalhar?  É o que você falou, é um trabalho presencial. Para realizá-lo, precisamos nos colocar em risco. Não há como falar para um médico fazer a cirurgia online, não é possível. Eu não posso culpar, falar que tal técnico não quer trabalhar. Não é isso. Às vezes a pessoa está em uma situação de vida que não permite o risco. É uma escolha de Sofia. É muito ruim. Se você vive com familiares ou se você é uma pessoa em classe de risco, como vai escolher entre trabalhar e se vulnerabilizar? Eu, depois de meses sem trabalho e sem aceitar trabalhos presenciais, me submeti a um espaço institucional porque sabia que os protocolos de segurança seriam um pouco mais respeitados. Mas sabemos que também há uma questão particular, de indivíduo para indivíduo. Mesmo que toda a instituição estipule uma regra, vai haver um indivíduo que vai descer sem máscara e alguém terá que falar: “coloque a máscara”.

Agora, saí do espaço institucional e voltei para um espaço de trabalho autônomo. Eu faço parte de uma companhia de teatro. Para realizar os projetos, essas leis e esses incentivos são essenciais, são primordiais. Como o Ronei falou, o técnico não trabalha sem o equipamento. As companhias, muitos grupos de teatro, não têm os equipamentos. Essas leis e esses valores que fomentam a cultura são repensados, remanejados dentro do projeto para compra de equipamentos que promovam uma articulação online. São grupos que não têm computador, que não têm microfone, que não têm acesso à internet. Há uma quantidade de grupos que passou a pagar para ter acesso à internet, uma coisa que as pessoas acham que é banal, que todo mundo tem. Não, no Brasil não é todo mundo que tem internet. Muitos alunos não conseguem assistir à aula porque não têm internet. Nós tivemos casos de companheiros que estavam no trabalho conosco. Fazíamos encontros remotos e reuniões. Ele não tinha acesso à internet, estava em zona que não tem acesso à internet. O acesso à internet não é universal. Essa é uma premissa errada. É uma coisa estrutural tão básica para você fazer o trabalho remoto. Estou com esse grupo. Um dos projetos foi contemplado pela Lei Aldir Blanc. Uma das coisas que precisamos fazer é ter acesso à internet. Outra coisa é conseguir equipamentos. Outra coisa é pensar em uma equipe para fazer a gravação porque realmente muda o formato. São coisas que seriam inviáveis. Não estaríamos fazendo nenhum projeto se não fosse por esses apoios. Se não fosse por estarmos contemplados por essas leis. Acho que é isso. Não quero me estender mais.

[Sharine] Vocês querem falar mais alguma coisa, para terminarmos, sobre a Lei Aldir Blanc ou sobre o trabalho, alguma coisa que achem importante sobre o tema.

[Ronei] Vamos ouvir histórias diversas ao longo do caminho. Coisas que ainda nem esperamos vai acontecer.

[Sharine] Agradeço a vocês.

[1] Refere-se às fases de combate à pandemia no estado de São Paulo: a fase verde era a mais flexível, a laranja era intermediária e a vermelha apresentava mais restrições.

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