Canclini na Cátedra

Entrevista com Tereza Lascano. Realizada presencialmente, em um café em Coyoacán, Cidade do México (México), no dia 08 de março de 2024

Sharine: Gostaria de conhecer um pouco de sua trajetória profissional e, também a temática que está estudando em seu doutorado.

Tereza: A partir da antropologia social, porque essa é minha formação desde a licenciatura, eu sempre me dediquei a trabalhar com questões de coletividades e como essas coletividades tinham impacto em temas sociais. Investigava grupos que se juntavam, por exemplo, em unidades habitacionais de interesse social, os jovens… No mestrado, analisei o espaço público e como a arte e a cultura intervinham em sua apropriação. O governo não precisava fornecê-lo, uma vez que os grupos mesmos poderiam tomá-lo. Já para o doutorado, iniciei a pesquisa analisando os espaços culturais independentes. Essa foi minha porta de entrada. Mas, realmente, o que comecei a analisar aqui, já conhecendo os estudos de caso e tudo isso, foi o trabalho em rede, o trabalho colaborativo. O trabalho em rede, para mim, era a mostra mais clara de interesse de muitos por um bem comum. Eu comecei a pesquisa com um grupo, uma rede de teatros independentes ao redor de quinze espaços. Então, comecei com eles, investiguei tudo o que tinha a ver com eles. Comecei a entender as narrativas, porque esse é um enfoque importante do meu trabalho, e comecei a entender, também, como trabalham juntos, quer dizer, quais são os princípios de ação e como há um processo de conformação desse trabalho em rede. Para mim, é um sistema vivo, que vai se transformando a partir das necessidades da rede até o exterior, por exemplo, e o interior da rede. Comecei a analisar também essas forças que atravessavam ou que permitem o trabalho da rede. Ou seja, meu enfoque é organizacional, é totalmente antropologia organizacional. No México, não se trabalha tanto a partir desse enfoque. Ao menos, estive procurando bastante e vi que há muitas aplicações da antropologia organizacional, mas com relação a empresas e a como um grupo de pessoas pode ser mais produtivo. Basicamente, como podem trabalhar mais felizes, ter reconhecimento. Obviamente, na América Latina, é outra a história, porque ali a organização tem sido sempre relacionada e vista a partir dos movimentos sociais. Então, me encontro aqui. Eu não sabia que se chamava assim, mas é legal e é parte da pesquisa-ação. O que é isso? Eu trabalho com as pessoas, mas não sou uma observadora, e sim uma pessoa, um agente de mudança. Ou seja, eu participo com eles a partir do meu conhecimento. Coloco a serviço dos agrupamentos o que sei fazer. Nesse grupo, aprendi como é importante que, como pesquisadora, você se relacione com as pessoas, não somente como alguém que obtém informação e a conserva para si ou usa para entregar um trabalho. Sempre correspondi com um trabalho que irá beneficiar o agrupamento. Então, comecei a desenvolver uma metodologia de fortalecimento organizacional. Isso é o que me distingue. As pessoas diziam: “o que você faz?”. Eu lhes explicava e diziam: “estou na mesma, não entendo o que está fazendo”. Então, para mim, foi muito mais fácil trabalhar com eles, estar nas sessões, nas assembleias, escutar horas e horas e horas, ser paciente e guardar silencio. O que eu tinha que fazer naquele momento era aprender. Logo começou um movimento já mais forte, de ação, aqui na Cidade do México, contestatório, porque estavam fechando os espaços culturais. Comecei a ver um movimento de organização diferente. Quer dizer, essa rede começou a se fortalecer no interior e começou a se enlaçar com outas redes. Ou seja, começa essa lógica de conexão entre uns e outros. Passei de uma análise mais concentrada em um só caso e me estendi para uma análise de várias redes, as quais já não tinham somente a ver com o teatro independente. Essa foi minha quarta entrada nos espaços culturais porque os espaços culturais têm a ver com muitíssimas outras atividades. O teatro independente já está aí, ou seja, é tal qual a atividade teatral. Comecei a me abrir, comecei a entender que havia outras necessidades e que tudo tem a ver com arte e cultura. Há uma coisa que é superinteressante e está explicada, eu creio, mais a fundo em meu trabalho: quando o confinamento começou, neste mesmo momento, foram ativadas essas redes, assim como a potência do virtual, de não precisar viajar a algum lugar para conhecer alguém, mas ter a agilidade da comunicação. Então, logo estava trabalhando com pessoas de outros estados que também estavam passando pela mesma crise e que estavam interessadas em transformar algo. Não sabíamos o que, porque tudo era um caos e tudo era confuso. Mas sabíamos que tínhamos que trabalhar. Isso me permitiu a entrada como uma pessoa que pode ajudar. Porque esse método, do qual estou falando, de fortalecimento de uma organização pequena, com a qual trabalhei, começou a ser estendido a redes mais amplas, até chegar a um caso de uma rede de redes, que foi a um nível nacional. Para mim, é a mostra mais clara de um movimento muito mais articulado. O trabalho que fiz foi de fortalecimento, de organização. Todos os sistemas se autorregulam. Mas, nesse sentido também, meu papel era muito curioso porque eu era a observadora. Eu não era alguém de teatro, eu não era alguém de dança, eu não era de tal, tal, tal. Era alguém que chegava e participava, escutava e logo propunha. Meu trabalho sempre foi muito resolutivo, fazer uma minuta e dizer: “vamos ver, esses foram os pontos. O que podemos fazer com isso?”. “Ah, fazer comissões, reunir a cada certo período, chegar a esses acordos.” Sempre formando grupos de trabalho específicos, como pequenas células de trabalho, e obtendo acordos. Esse era meu trabalho. Era a maneira como eu podia contribuir, sem me envolver demais e sem fazer coisas que, talvez, não fossem o que o movimento necessitava. A minha condição de estar comprometida com a causa é verdadeira. Mas sempre fui muito cuidadosa. Além disso, estava pegando essa informação para minha tese. Sempre fui muito cuidadosa para não me envolver nas decisões que eram tomadas. O que eu fazia era justamente essa organização dos temas, articulação, fortalecimento. Mas aí terminava meu trabalho. Enquanto os agrupamentos chegavam a uma solução, eu repensava minha metodologia e ajudava para que esse novo objetivo fosse alcançado. Então, meu trabalho sempre foi um entrar e sair nos momentos certos para criar articulações. O trabalho que comecei a fazer com outros grupos em outros países da América Latina também foi superimportante. Também foi durante o confinamento. Houve uma rede em que pudemos trabalhar em temas sobre espaços culturais independentes, basear informações. Creio que o intercâmbio de conhecimento tem sido um dos grandes êxitos. Trabalhei também em várias iniciativas cidadãs. Os artistas não se viam como cidadãos. É bem interessante porque diziam algo assim: “nós somos artistas e precisamos de mais recursos, precisamos disso e precisamos de mais coisas para nossa criação”. Então, a narrativa era questão de entender que eles eram artistas. Mas não havia na narrativa uma questão de dizer: “nós somos cidadãos e exigimos que tal pessoa nos dê conta do que está se passando com o dinheiro de tal, tal, tal”. É muito estranho porque, obviamente, havia muitos outros agrupamentos interessados pela incidência, que estavam trabalhando em desenhos de leis… Das três coisas que tentaram, uma foi mais ou menos alcançada porque a aplicação não foi imediata e ainda há muitos desafios a enfrentar.

Sharine: Quais foram?

Tereza: Foi uma de artes cênicas. Era estranho porque diziam que era uma lei de artes cênicas, mas só havia pessoas de teatro. Não eram as artes ciências, mas era muito interessante. Esse trabalho está mencionado na tese. Muito interessante porque o que se passava é que havia várias redes e cada uma delas representava comunidades muito específicas do teatro independente. Então, quem se interessar pelo tema pode revisar essa lei. Está aqui a medula das grandes problemáticas que tem tido o teatro independente, como agrupamentos que são representativos, obviamente, dos interesses que existem ao redor do teatro independente.

Sharine: Qual é o nome da lei?

Tereza: Era uma iniciativa, não foi uma lei, uma iniciativa de lei das artes cênicas. Não está em nenhum lugar público porque tudo ficou entre as pessoas que a fizeram. Passaram-se vários meses, se não mais de um ano, e nunca saiu à luz. Foram apropriadas várias ideias por aí. Alguém tratou de agarrá-las e dizer: “vou levá-las adiante”. Sobretudo pessoas do governo. Na tese você pode revisá-las porque eu trabalhei do princípio ao fim nesse sistema de informação.

Sharine: Que bom.

Tereza: Digamos que se salvou. Esse exercício não se perdeu, está aí. A outra, a que passou e foi conquistada, foi a dos espaços culturais independentes aqui na Cidade do México, que é superimportante porque é o exemplo para muitos estados do país, como algo que pode se passar, como algo que, sim, pode acontecer em outros estados da república do país. Os espaços culturais independentes não estão reconhecidos, não têm um reconhecimento legal. Então, estão sempre lutando ou preocupados com o que ocorre porque não há um reconhecimento legal e sempre estão expostos a serem fechados.

Sharine: O que se entende por reconhecimento legal? Há uma pessoa jurídica reconhecida, há um espaço alugado?

Tereza: Não existem. Na lei, não existem. O espaço cultural independente é um restaurante, é um bar, é não sei o que. E eles dizem: “somos um espaço cultural independente”. Mas a regulação, que é basicamente por atividade econômica, não reconhece as atividades culturais, somente se for um museu… Não há atualização. A figura do espaço cultural independente não existe. Então, quando querem permissão, dizem-lhes “não” ou veem que algo está passando, chegam e fecham o lugar. Estão vulneráveis o tempo todo porque algo pode acontecer.

Sharine: Eu pensava que houvesse uma figura jurídica para os teatros independentes…

Tereza: Para os teatros pode ser que exista algo mais próximo, mas um teatro independente não é o mesmo que um espaço cultural independente. Aqui no México, é diferente. Um teatro tem uma atividade teatral, dá suas obras de teatro e, agora, já tem certas atividades como oficinas, etc. O espaço cultural independente é muito mais amplo, o trabalho que fazem… Trabalham com infâncias, trabalham com jovens, importa mais o impacto social.

Sharine: Os dois são irregulares ou não?

Tereza: Na Cidade do México, os dois já estão bem, os dois têm certeza jurídica.

Sharine: Por causa desta lei…

Tereza: Em outros estados do país, o espaço cultural tem mais problemas que o teatro.

Sharine: Porque há uma figura jurídica para teatro…

Tereza: Sim, porque é antiga. É mais fácil entender que é um teatro do que abrir um centro cultural onde se pode fazer mil coisas, mas não há uma figura jurídica em que possa se enquadrar.

Sharine: Quais eram os objetivos dessas redes? Tentavam fazer essas leis ou algo mais?

Tereza: No início, o objetivo das redes foi estar juntos para tomar uma posição frente ao governo, para conseguir essa lei de espaços culturais independentes. Em outro momento, foi o estar juntos em confinamento, obviamente. Então, parece que, em outro momento, também serviu muito para buscar apoios econômicos, para exigir apoio econômico.

Sharine: Do governo?

Tereza: Do governo.

Sharine: Não da iniciativa privada…

Tereza: Não. Vemos como uma Curva de Gauss… A última coisa a que levou essa articulação foi a organização de um congresso de artistas com um ponto muito especial porque nessa narrativa apareceu o que é o trabalhador da cultura. Aí tudo mudou… Eu estava falando sobre “sou artista, sou criador” e eu lhes dizia: “mas é cidadão?”. “Sim, claro, somos cidadãos, mas somos artistas”. “Não, primeiro são cidadãos”. Ou seja, nesses termos, são cidadãos. A exigência dos direitos e a exigência de tudo tem de ser regulada por aí. Mas isso não foi compreendido no primeiro momento. Depois, sim, foi-se trabalhando pouco a pouco. Penso que isso é interessante também para o trabalho que eu fiz. Consegui essa fotografia do avanço na narrativa de transformação, na narrativa de como os grupos se reinventavam a partir das novas condições ou dos novos objetivos que consideravam importantes. Então, em algum momento voltaram a ver como “somos trabalhadores da cultura”. Então, era: “Ah, então também temos direitos trabalhistas?” “Então a precarização não é normal?” “Então podemos exigir?” Ou seja, imagine o ponto em que dizem: “temos visto essa precarização sempre”. As pessoas se acostumaram a viver assim e, até esse momento, alguém poderia dizer: “eu sou trabalhador”. E, nesse momento, meu trabalho também saltou a esse ponto e estive trabalhando com uma rede muito grande, que começou a trabalhar aí, a partir do Congresso Nacional, a analisar o que estava acontecendo. Também está na tese e está interessante, com os temas que eles consideram importantes. Foi muito bom porque articularam a ideia das leis necessárias e do trabalho organizado a partir da cidadania. Houve uma mudança completa de narrativa. Mas acabou o confinamento, o Governo do México lançou uns editais para dar apoios econômicos e a articulação não se estendeu. As pessoas começaram a trabalhar por outras coisas que, basicamente, tinham a ver com seus projetos pessoais e não com a organização. Mas, para mim, pelo que observo e pelo que estudei, poderia dizer que a articulação ou o movimento que conseguiram é pausado ou dorme por um momento, mas não desaparece. Agora já está começando outra vez porque haverá eleições no México. Estão começando a se acender novamente. Começo a ver como esses agrupamentos estão começando a chamar, a juntar-se. Está superinteressante, porque agora me pergunto assim: “a partir do que irão trabalhar?”.

Sharine: Há pessoas também das artes visuais, de outras artes, da música?

Tereza: Sim, há. Por exemplo, artes plásticas, artes visuais também. Sinto que a música está um pouco mais reacionária. Não cheguei a ver músicos organizados para uma ação política. Teatro, dança, sim. Mas, dentro do âmbito também de arte e cultura no México, como essa questão dos artesanatos, dos gestores culturais. Porque não é somente o artista. Essa questão de trabalhador da cultura… Me parece que o reconhecimento… que há muito mais pessoas valiosas para a arte e a cultura, além do artista e do criador. É superimportante porque é como fazer justiça também e entender que há muitas pessoas que têm feito com que as coisas aconteçam e que não são os que estão em cena. Então, por exemplo, há os técnicos.

Sharine: Já ia perguntar sobre isso. No Brasil, tivemos um movimento importante na pandemia dos técnicos de espetáculos. As pessoas que trabalham com o som, com a luz, a iluminação dos espaços.

Tereza: Sim, que sempre estão atrás, não os vemos. Há também as pessoas que se dedicam a organizar todos os eventos para que tudo funcione, o gestor cultural… Nunca estava lá. As pessoas que podem trabalhar nos espaços… Ou seja, todos eles não apareciam. Agora, a partir disso, começam também a aparecer e dizer: “bem, nós também fazemos coisas, nós também queremos algo”. Isso parece incrível porque, então, o artista e o gestor, o artista e o criador começam a ficar lado a lado e se dão conta de que não são os únicos. Os programas sociais ou os programas que têm a ver com arte e cultura não têm a ver somente com a criação. Não têm a ver somente com o fato de que você é um bom criador, um bom artista e lhe dão dinheiro para que faça sua própria obra. Porque, assim, o impacto social que há é nulo, é como se não fosse nada. Na política do México, houve um caminho muito interessante porque se começou a exigir ou a pedir que, se alguém quisesse um apoio do governo, um apoio econômico, seu trabalho teria que assegurar um impacto social. Ou seja, quando exigiram isso, o artista e o criador não souberam o que fazer.

Sharine: O que os artistas pensam dessas mudanças?

Tereza: [risos] Muitos deles estão muito ofendidos… Outros não. Outros entenderam e disseram: “legal. Chama-se retribuição social. “Eu me dedico à arte e à cultura. Vou comprovar que o que faço serve ao bem-estar de outros”. Houve os que disseram: “claro, vamos fazer, a cultura é para todos.  Vamos chegar a mais pessoas”. Outros disseram assim: “Eu sou artista, não posso fazer outras coisas, sou artista, já impacto com isso. Sou artista e benefício a cidade com a minha obra”. Então: “Sim, mas você não terá um apoio do governo. Consiga seu dinheiro, pois não irá usar dinheiro público para beneficiar a si mesmo. Pegue o dinheiro público e, a partir de sua obra e do que queira fazer, crie um impacto maior para muito poucos”. Há muitos que seguem lutando com isso, estão descontentes, indignados. Mas é muito divertido [risos].

Sharine: O que você pensa das transformações mais gerais, como, por exemplo, do FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes], que agora tem outro nome, a transformação do CONACULTA [Conselho Nacional para a Cultura e as Artes] em uma secretaria, os orçamentos…?

Tereza: Vou compartilhar duas visões com você. Vou compartilhar a visão que obtive em meu trabalho, que é a visão de uma pesquisadora, e a outra, que posso interpretar por minha experiência pessoal. Como pesquisadora, posso dizer que adotaram transformações que extinguiram a estrutura que já existia, a estrutura que era cômoda, a que permitia que as mesmas pessoas sempre tivessem os apoios econômicos. O novo governo rompeu com muitas coisas e articulou novas. Isso foi tomado como injusto, como algo que não ajudava a arte e a cultura. Houve um escândalo muito grande quando destinaram muitíssimo dinheiro ao Complexo Cultural Los Pinos. Foi um escândalo. Parece que, em termos de divisão de recursos, deveriam estar muito mais articulados como cidadãos para participar e exigir certas coisas. E isso não ocorria. Ou seja, você não pode exigir… Sim, pode criticar, mas ao final, não fizeram muito mais do que isso. Tampouco se passou algo mais. Então, bem, aconteceu isso. A transformação do CONACULTA levou a perdas econômicas importantes que já não estavam destinadas à cultura. Mas, na política, começaram a falar mais sobre a empresa cultural. Começaram a falar assim: “Ah, bem, se quiser entrar também como pequeno investidor ou buscar apoio de instituições privadas…”. Quer dizer, começaram a alentar isso, como força para tirar um pouco de vista a retração do Estado. Quer dizer: o estado começou a perder responsabilidades que sempre teve. Então, já está assim. Sobre o FONCA, nunca dava bolsas a algumas pessoas. Ano após ano, a cada três ou quatro anos, eram quase os mesmos. Então, quando alguém fica descontente também é porque cortam um privilégio nesse sentido. Parece-me que as mudanças ajudaram a abrir muito mais a novos grupos, a novas visões, novas coisa que eram importantes. Dentro da questão da pesquisa, isso é importante. Sobre o que lhe dizia de minha visão pessoal, é isso: quando certos grupos perderam os privilégios, houve um problema. Isso é como uma rearticulação. Além disso, havia muita gente jovem que estava começando a chegar com novas propostas. Elas necessitam também de um espaço, também precisam ser escutadas e participar. É um processo natural, me parece.

Sharine: No Brasil, a maior parte dos orçamentos para a cultura é estadual e municipal. O federal representa somente 11%. Mas a Lei Aldir Blanc é uma lei descentralizada e, agora, temos duas novas leis, que são a Lei Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. Então, o que acontece? O governo federal repassa o recurso para os estados e para os municípios para que façam ações locais para a cultura e as artes. Isso está mudando um pouco a configuração… Há cidades muito pequenas, que nunca tiveram acesso ao dinheiro público, que não têm pessoas para trabalhar com recursos federais, não sabem como fazer os editais, estão aprendendo agora. Mas também há o outro lado. Há algumas cidades que já tinham um orçamento para a cultura, mas que dizem: “agora tenho um orçamento federal, então vou destinar o meu para outras coisas, para a saúde…” Isso está mudando no Brasil. Eu vi este gráfico do México e é muito recente, de 2024… É do Paso Libre. 60% do orçamento é federal, no México, e somente cerca de 40% é estadual. Eu não consegui encontrar os dados municipais. Perguntei e responderam que o INEGI [Instituto Nacional de Estatística e Geografia] ainda não tem. Mas acho que a configuração é distinta entre Brasil e México. Então, o que você pensa da integração federativa aqui no México? Há mudanças? Como se passa?

Tereza: Me parece que a opacidade, quer dizer, a falta de clareza, a falta de transparência, é algo que devemos trabalhar muito no México. A prestação de contas não é um direito desenvolvido para a cidadania. Ou seja, o GRECO não pode ter esses dados porque não estão nas bases de dados desenvolvidas, que é tão ruim quanto não darem acesso. Todo mundo está medindo isso. Está estranho, não? De qualquer forma, é desigual. Parece que o recurso para arte e cultura permanece no nível federal, na nova Secretaria de Cultura… Porque não tem tantos anos, sabe? A Secretaria de Cultura no México é muito nova. Este é o mais claro exemplo de como tem havido muito dinheiro e não entendemos por que se escolhe por uma coisa ou outra. Eu lhe dizia: fazer Los Pinos ou fazer festivais públicos não ajudam a transformar a realidade dos artistas e das pessoas que trabalham precarizadas. Há aí uma falta de clareza. Parece que, se em algum momento chegássemos a isso, seria incrível.  De qualquer forma, há desafios porque criar muitas unidades ao redor do país também aumenta muito o trabalho. Parece que, aqui, para administrar o dinheiro… Os estados que têm algum recurso federal para a cultura têm alimentado sua própria visão de arte e cultura. Isso é interessante. Mas, também, se você pergunta: “como gastaram o dinheiro?” Não pode ter acesso a isso, como cidadão.

Sharine: Não?

Tereza: Não é tão fácil. Há todo um protocolo para seguir e nem todos os estados têm isso pronto. Não têm sistematizado. Então, é um problema porque não sabemos totalmente como se utiliza o recurso na prática.

Sharine: Mas o dinheiro federal é repassado também para os estados e para os municípios?

Tereza: Sim, quando a cultura se transforma em um setor e surge a Secretaria de Cultura, essa separação do recurso passa a existir. Agora o interessante é como será rearticulado. Ou seja, em que se investe? O que, afinal, é a política cultural, e o que nos dá uma referência?

Sharine: O Brasil é um país multicultural como o México. Então, claro, já tínhamos as distintas culturas nas grandes cidades e nas cidades do interior do Brasil. Mas, com a Lei Aldir Blanc, acho que está mais forte a questão das diferentes identidades culturais. Por exemplo, há agora as cotas para pessoas que são negras, para as pessoas indígenas. Também há uma espécie de disputa religiosa porque, ao mesmo tempo que está crescendo o número de pessoas que se declaram indígenas, que dizem “sou indígena, sou negra”, também está crescendo o número de pessoas que se dizem evangélicas no Brasil ou que são mais conservadoras. Há essa disputa simbólica em nosso país. Gostaria de saber como isso tem se passado aqui no México.

Tereza: Para o setor cultural, os atores que sempre são nomeados são os indígenas.  Mas não porque os nomeiem na narrativa pública, quer dizer, que realmente os beneficiem no sentido de criar melhores condições de vida. Creio que os afrodescendentes também têm recebido menções, mulheres obviamente, infâncias… Parece-me que agora há um tema que não tem sido tratado, mas estou muito segura de que logo será, e tem a ver com todos os migrantes que estão se estabelecendo no México. Nós sempre somos o lugar da passagem. Daqui, muitos migram para os Estados Unidos. Mas agora tem chegado um monte de pessoas da África, da América do Sul, que já não vão, que ficam. Então, a imigração neste último ano e meio, dois anos, é altíssima. O México nunca tinha vivido isso. O México era um lugar de passagem. Mas ficaram. Então, os Pontos de Cultura… Há os Pilares, como são chamados aqui. Dão cursos de muitas coisas. As pessoas que fazem esses cursos agora são imigrantes. Querem aprender espanhol, querem aprender a dançar, querem aprender a escrever, querem aprender. Todo esse benefício está incrível. Você se dá conta de que há novas populações que nem sequer são mencionadas, mas que logo deverão ser motivo de democratização, porque esse é o discurso, a democracia cultural. Quer dizer, todos teríamos que ter acesso à arte e à cultura. Mas o outro enfoque é: “minhas tradições, o que eu sou tem direito a existir”. Então, quase sempre se falava dos indígenas e, agora, também há muitas culturas ou grupos jovens ou pessoas na cidade que dizem: “eu também, eu também e eu também” e, então, como todos, “eu também”. No México, há muita discriminação por classe e, às vezes, um pouco por racismo. Mas é mais por questões de classe social. Então, parece que o que está se passando é que deve haver uma diversificação. A população jovem do México é altíssima. Os jovens estão sempre precisando de programas sociais, de dinheiro para arte e cultura. Parece que a divisão no México não é tão focada no racial, mas em outras formas de classificação.

Sharine: Como isso muda a estética das obras?

Tereza: Parece que o centrismo de pensar que você é um artista consagrado porque conseguiu expor em um museu, felizmente, pesa cada vez menos. Eu sou muito feliz por isso. Ou seja, que bom que existe esse setor de pessoas com um alto conhecimento artístico, mas há muitíssimas outras pessoas que criam a partir de outro lugar e não precisam estudar e não precisam ser eruditos nisso. Encontram nos espaços independentes a oportunidade de expor e de fazer mil coisas. Parece que essa diversidade está plasmada nas obras artísticas. Se você prestar atenção aos temas que também estão na dança, no teatro, se dá conta da transformação do imaginário, de como vão se apropriando das coisas. Além disso, acho que há um ponto interessante: a criação de públicos. É superinteressante.

Sharine: Era minha próxima pergunta: como os públicos interagem com tudo isso?

Tereza: Penso que, embora um artista queira continuar o mesmo, sempre deve sair e ver o que está acontecendo. Você cria algo e quer mostrar, mas não há um público que seja um receptor. Está bem, mas não haverá essa resposta, em que você também, como artista, pode escutar o que os demais compartilham sobre o que sentem, o que vivem. Então, está interessante porque a dinâmica entre os artistas ou os criadores e os públicos também tem mudado. Isso é superimportante porque, nos processos artísticos, em muitos casos, embora isso não fosse dito, o público era receptor. Em todo caso, era: “quem teve acesso a isso”. As pessoas diziam: “obrigada por ir”. Então, o que pensou? O que entendeu? Obviamente não sabiam. Até que chegou um momento em que, ao final das obras, por exemplo, de teatro ou durante uma exposição, há uma pausa em que voltamos a ver. Dizem: “como você vê isso?” Você começa a se dar conta de como algo impacta de maneira diversa. O artista, se quiser, se alimenta dessa parte também e começa a se dar conta de como sua obra impactou e se beneficiou ou não, ou mexeu com os demais. Alimenta-se disso. Eu assessoro pessoas que se dedicam a projetos de arte e cultura. Uma dessas pessoas que assessoro é uma jovem que se dedica à dança. Seus projetos são incríveis porque retomam as questões de identidade, do mexicano. Então, está muito claro, além da temática das mulheres, a identidade e a renovação de valores, também de tradições… Um dia, conversando com ela, eu disse: “quando você cria uma obra, há algum momento em que convive com seu público?”. Ela me disse: “sim, ao final, sempre termino conversando e me causa uma surpresa enorme porque, quando crio algo, quando penso, imagino e faço tal coisa, penso que irá agradar a certo tipo de público. E, nesse momento, eu me dou conta de que há outro tipo de público que não havia nem pensado que poderia se interessar pelo tema e que se vê refletido”. Nesse sentido, um artista que não se abre para entender o que o público vive se perde. Também é respeitável, está bem. Mas eu tenho visto que os processos se tornam muito ricos quando o público é considerado. A criação de públicos sempre é relacionada com essa parte. No entanto, no México, ainda há um pouco de resistência em levar em conta o público como alguém que também alimenta economicamente o projeto. Também são necessárias as pessoas que estão aqui. Há muitos que não fazem, por exemplo, análise de consumo, de satisfação do público. Por exemplo, na Argentina, fazem coisas incríveis de criação de públicos, que tem a ver com um monte de outras coisas. Ainda há muito trabalho por fazer aqui no México, como entender qual é o potencial de criação de públicos, não somente porque compram algo, mas porque também ajudam criadores e artistas a entenderem que há muitas outras pessoas, há outros receptores.

Sharine: Claro, a arte não existe se não há público. Eu penso assim. Para terminar, duas perguntas. O que você pensa do programa de cultura comunitária deste governo?

Tereza: Me encanta. Gosto da ideia, já a execução é outra coisa, não? Eu sou antropóloga de coração. Me encanta trabalhar com as pessoas. Pude ver como a arte e a cultura transformam a mente, as pessoas. Tive a oportunidade de trabalhar com pessoas reclusas, com pessoas em prisões. Lembro muito que isso me marcou, porque lhes ofereciam umas oficinas muito simples. Víamos como eles se relacionavam com as coisas, como se sentiam contentes e plenos participando. Nesse momento, eu entendi que essas pessoas nunca haviam entrado em contato com isso. É um crime que as pessoas não possam estrar em contato com a sensibilidade que permite conhecer a si quando fazem algo relacionado à arte e à cultura. Não se pode estar longe disso. Por isso, os direitos culturais no México, me parece, têm passado por uma revolução a respeito da narrativa e da maneira como as pessoas entendem sua importância. Isso é superimportante. Bom, para mim, o programa comunitário no México tem potencial. Parece-me que ele permitiu que se abrisse a porta a muitas pessoas que, por anos e anos, haviam trabalhado sozinhas, sem nenhum apoio, para levar arte e cultura a comunidades bem pequenas, a municípios, para manter vivas tradições ou para dar espaço a artistas jovens, para reconhecer que cada artista, em cada lugar diferente do mundo, demonstra algo único que vive. Por isso, me parece que, no discurso, o programa é bom. Parece que a aplicação ainda tem muitos problemas, mas pode melhorar.

Sharine: O que você espera das eleições, para a cultura?

Tereza: O que espero? Continuidade. Esse é o problema. Não sei como é em seu país, mas, aqui, cada vez que chega um presidente é assim: “bom, vamos tirar, vamos limpar e vamos trabalhar”.

Sharine: E continua o mesmo…

Tereza: Ou seja, não importa que algumas coisas funcionem ou sirvam.  Por que não podemos continuar com algo que está bom? Eu gostaria que houvesse continuidade nas eleições propostas e que houvesse mais oportunidades para que, de verdade, cada vez mais pessoas pudessem se beneficiar do que existe. Embora seja pouco, pode ser muito.

Sharine: Obrigada!

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