Canclini na Cátedra

Entrevista com Valquíria Volpato, realizada por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 7 de janeiro de 2021.

[Sharine] Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc: por que, nesse momento de crise, nesse momento de dificuldade financeira e política, os artistas conseguiram reunir forças para fazer um movimento tão importante como esse? Já entrevistei algumas pessoas. Conheci você porque participou de um livro sobre a Lei Aldir Blanc. Você é de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, e tem relação com o órgão local. É uma Secretaria de Cultura?

[Valquíria] Meu nome é Valquíria Rigon Volpato. Sou nascida na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Meu envolvimento com a cultura começou muito antes, junto aos conselhos, principalmente o Conselho Municipal de Política Cultural, aqui da cidade. Depois, eu tive a oportunidade de ingressar no Conselho Estadual de Cultura e participei bastante de toda a construção da Lei Aldir Blanc. Mas, antes disso, em 2017, eu fui convidada a trabalhar com a legislação de fomento e incentivo à cultura aqui no meu município, pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, fazendo a gestão da legislação de incentivo daqui. Sou advogada de formação. Também advogo há 10 anos. É a minha raiz para explicar por que alcancei esse movimento dessa forma. Foi através do Conselho Estadual de Cultura que eu me aproximei do Fórum Nacional dos Conselhos, o CONECTA, participei da reestruturação do Fórum Nacional dos Conselhos e da construção da Lei Aldir Blanc até a sua efetiva regulamentação. Eu estava, até dezembro de 2020, como consultora interna da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Encerramos a gestão e agora estou novamente à disposição, mas sigo minha profissão como de costume. Uma vez advogada, sempre advogada.

[Sharine] Então, você não é artista ou profissional da cultura. Sua relação é mais administrativa.

[Valquíria] Isso. É mais técnica, apesar de me aventurar, de vez em quando, na literatura. Eu gosto muito. Minha entrada artística é na vertente da literatura. Eu faço parte, aqui na cidade, da Academia Cachoeirense de Letras. Também foi uma coisa muito bacana que aconteceu comigo, há uns 10 anos, mais ou menos.

[Sharine] Parabéns! Para entrarmos no motivo da entrevista, gostaria de ouvir histórias sobre artistas e profissionais da cultura – ou, no seu caso, você é advogada, vem de outras áreas – que se engajam politicamente na elaboração de políticas públicas, especificamente falando sobre a lei Aldir Blanc. Quais você acha que são as motivações e anseios das pessoas que participam? Se você pudesse falar, especificamente, sobre o movimento da Lei Aldir Blanc, sobre como foi toda essa organização, seria bacana.

[Valquíria] Posso contar para você como foi que eu comecei, do primeiro contato até a entrega desse volume todo de trabalho. Em maio de 2020, talvez um pouco antes, nós ficamos sabendo, aqui na cidade, desse movimento que se iniciava, até então por iniciativa das deputadas, especialmente da Benedita da Silva e, depois, com o carro-chefe de relatoria da Jandira Feghali. Foi uma guerreira do início ao fim. Enquanto conhecíamos essa proposta, artistas de todo o Brasil se reuniam em encontros virtuais. Eu passei a fazer parte porque ocupar uma vaga em um conselho de política pública significa que você tem que estar atenta ao que acontece, para que possa discutir pautas e fazer a gestão compartilhada acontecer na prática como ela efetivamente é posta na teoria. Então, eu participei de várias reuniões online, fiquei interessada pelo tema, achei curioso. Falei: “poxa, que legal, um financiamento”. Ainda mais através do Fundo Nacional de Cultura, que era um valor imobilizado, era mal gerido em um planejamento ruim. Particularmente, considero que o fundo não foi distribuído por conta de um mal planejamento, uma má distribuição de recursos. Conseguimos um instituto legal, que faria com que esse dinheiro chegasse, pela primeira vez, por meio do Sistema Nacional de Cultura. Seria fantástico! É de arrepiar mesmo!

Fiquei muito envolvida com essa história e fui acompanhando. Foi uma reunião do conselho do Estado, quando fiquei conhecendo o Fórum Nacional dos Conselhos, essa tentativa de remobilização. Eu tinha encerrado a reunião, a Secretária Executiva do Conselho me ligou e perguntou se eu não gostaria de participar de uma reunião do CONECTA. Foi então que eu falei: “tudo bem, enquanto não houver ninguém, eu posso participar”. Como eu tinha uma cadeira vinculada à administração pública, eu a considerava menos legítima do que aqueles que ocupam cadeiras da sociedade civil, até porque nós estávamos falando de um recurso que seria destinado à sociedade civil, ao produtor cultural, ao artista da ponta. Mas acabei indo, fiz a reunião, conheci presidentes de outros conselhos. Eu não fui presidente do Conselho Estadual. Era realmente uma cadeira representativa. Mas conheci vários presidentes de outros estados e nós começamos a fazer o trabalho de reorganização desse fórum, que é um instrumento fundamental para que possamos discutir essa política pública para quem precisa dela, que é o cidadão, esse recorte da nossa classe cultural.

Fizemos a leitura e a remodelagem de todo o estatuto do fórum nacional e, enquanto isso, eu comecei a participar de reuniões interessantes e importantes para a montagem da Lei Aldir Blanc. Foram encontros com dirigentes estaduais de cultura. Um exemplo muito bacana foi a Úrsula Vidal, lá do Pará. Ela é uma guerreira engajada. Conheci também o Ney Carrasco, pela Associação dos Municípios. Conheci a Ana Clarice Fernandes, que é também uma técnica da Confederação Nacional dos Municípios. Ela trabalha com bandeiras municipalistas importantes. Enfim, conheci o Pedro Vasconcelos, outro querido também. Nós formamos um grupo que se reunia com periodicidade para tratar de como gostaríamos que o desenho final da lei chegasse à sanção presidencial e, depois, mais profundamente, à regulamentação. Entendíamos que a Lei Aldir Blanc caracterizava uma simplificação na distribuição do recurso, ao passo que o Ministério do Turismo tinha uma burocratização que não atendia.

Para mim, a grande experiência, o desafio foi: como utilizar, de maneira simplificada, um instrumento que vinha para socorrer uma classe debilitada, em um momento pandêmico, em que temos muita dificuldade no âmbito da contratação da classe artística, por exemplo. Você faz por inexigibilidade, mas nem sempre você consegue comprovações de preço e as necessidades para montar um processo. Então, tínhamos um instrumento facilitador. A guerra foi, justamente, para mostrar que a cultura precisava ser vista com um recorte diferente. Precisávamos tentar iluminar algumas possibilidades e não tratar o artista com a prerrogativa de desonestidade. Isso ficou muito sombreado para mim, na época. A burocracia me soava como: “você precisa comprovar que você merece”. “Não, sou merecedor”. Aqueles que não cumprem o papel ou que não dão retorno ou que não dão feedback são exceção, não são a regra. Ficava aquela pecha de que o artista é muito descomprometido, desorganizado. Chegou uma época em que o Ministério queria que tentássemos legalizar comunidades indígenas, quilombolas, o que tiraria completamente a essência desses povos de tradição. Isso foi muito repercutido.

Esse conceito que a própria cultura viva traz, esse conceito de coletivo, mereceria ser aplicado efetivamente agora, para salvaguardar esse patrimônio que não está formalmente constituído, mas que está posto, que existe, que faz parte das nossas raízes, que agrega nossas tradições, e que revela quem somos, como povo brasileiro. Isso ficou muito difícil de materializar na lei porque estamos lidando com técnicos burocratas e não estamos lidando, efetivamente, com essa sensibilidade que o setor cultural merece. Acho que poderíamos discutir muito sobre isso, mas não havia tempo porque era preciso regulamentar a lei, fazer com que todos os mais de cinco mil municípios do país conseguissem alcançar esse recurso, assim como os estados, mas que especialmente os municípios tivessem estrutura para fazer cumprir a lei. Isso foi, para mim, uma agonia muito grande. Eu sofri muito, padeci muito, com muitos municípios que não teriam condições de executar a lei, por mais que houvesse outras possibilidades, como, por exemplo, o não derramamento desse recurso através do fundo. Aqui no Espírito Santo, com nossos 78 municípios, nós tínhamos bem menos da metade com o sistema já constituído, com seus conselhos ativos, com a legislação do fundo “ok” para receber esses recursos.

A Lei Aldir Blanc também revelou como o setor cultural, na ponta, por essa informalidade do artista, e a administração pública estão desestruturados. Não temos pessoal qualificado, um profissional que atenda com qualidade essa área e que entenda, de fato, como ela deve ser tratada. Não adiantava, por exemplo, questionar isso de uma forma a fazer acontecer se, quando chegasse dentro do município, não houvesse o fundo montado, um conselho consciente, uma procuradoria municipal que compreendesse o tamanho da proposta, uma controladoria que não ficasse tentando analisar procedimentos que são dissociados da Lei 8.666/93, por exemplo. Foi outra dificuldade de entender: “Ah, mas estamos lidando com um instrumento…” É um instrumento novo, não é um instrumento que teremos que respaldar sempre na 8.666, porque esta é uma lei de licitação, de 1993, que agora sofreu reformulações. Mas o nosso setor cultural tem especificidades, tem características diferentes. Para a gente que estava ali, na batalha pela regulamentação, esse era o grande desafio: tentar aplicar esse sistema, fazer compreender que isso é, de fato, uma necessidade imediata, que estava associada a um momento de urgência, de saúde pública. Emperramos, mais uma vez, na burocracia. Por exemplo, hoje, se você fizer uma pesquisa atualizada sobre os números, vai constatar que muito desse recurso retornou. 

Você nota que, por mais que tenhamos um Fundo Nacional, por mais que tenhamos alguns fundos mais bem estruturados, por mais que tenhamos alguns instrumentos, precisamos romper com algumas outras questões. Essas questões burocráticas, por exemplo… Por conta dos vários casos de corrupção, por conta de tantos exemplos ruins, do mal uso do dinheiro público, acabamos levando uma tarjeta de que não sabemos usar o dinheiro público com eficiência e com responsabilidade. Não faríamos isso se soubéssemos a grandiosidade do dinheiro bem aplicado, injetado, para a sociedade civil, de maneira adequada, se soubéssemos como essa resposta é muito importante e interessante para o Estado e para o município, de um modo geral. Conseguiríamos entender que o resultado importa mais do que a nota fiscal, por exemplo. A consequência da ação importa mais que o recibo; um relatório fotográfico, a participação e o envolvimento da comunidade importam mais.

Quando entendemos que era preciso governar a classe artística, eu fiquei pensando por que, em mais de vinte anos de Sistema Nacional de Cultura, não conseguimos fazer com que essas coisas acontecessem. Com a Lei Aldir Blanc, o dinheiro está aqui. E agora? Isso, para mim, foi um “sacode” do tipo: “se existe dinheiro, se o sistema está posto, se o artigo da constituição está lá, por que não está regulamentado, por que o município não trabalha melhor a política pública de cultura?” Há municípios, que tive a oportunidade de conhecer pelo Brasil, nessas viagens online, em que o setor cultural era composto, por exemplo, por um coordenador e mais uma pessoa. Quer dizer, dois servidores dentro de uma subpasta como “educação e cultura”, “educação, esporte, lazer e cultura”. Qual é, de fato, a importância que damos para a cultura neste país? O que interpretamos como cultura?

Na construção da lei, entrou a necessidade de formar conselheiros, de falar sobre o que isso significa, sobre o que são as políticas públicas. Eu acho que é isso que precisamos muito fazer. Aquilo que trazemos, as propostas que estamos fazendo são justamente para isso, para capacitar pessoas, para que elas tenham um lugar de fala e empoderamento, para que elas tenham identidade sobre o tema e para conseguirmos convencer a administração pública de que ela precisa dar a devida atenção. Os recursos não precisam ser 100% do setor público, mas precisamos melhorar. Estados têm que fazer repasse. É uma coisa que não é uma realidade no país todo. Fico pensando: o Espírito Santo é pequeno, tem 78 municípios, e não conseguimos fazer repasse fundo a fundo. É só mesmo um descortinar da nossa debilidade.

Agora nós levantamos o tapete e identificamos a sujeira que estava debaixo dele. Foi isso que aconteceu. Quando dissemos: “agora temos o que fazer com isso”. Mas, e agora, o que temos que fazer com isso? E foi essa a surpresa. Eu vi desespero de municípios para formar conselhos, pegando artistas no laço. Não é assim que se faz um trabalho democrático. A democracia não é assim, a gestão compartilhada não é assim. O artista tem que se interessar por participar. Eu acho que isso foi uma coisa muito legal que aconteceu na questão da Lei Aldir Blanc: o artista viu um interesse em comum. Ela conseguiu unir vozes de todo o país para tratar do mesmo tema. Mas eu pergunto: é só porque havia dinheiro envolvido? É uma pergunta, também, que me bate muito: será que é só quando a causa tem um financiamento previsto que vamos nos unir para discutir? Será que não seria a hora de discutir um marco regulatório legal para falar só sobre o setor cultural? Isso não deveria ser também uma bandeira dos nossos artistas, junto à câmara do Estado, junto à assembleia? Enfim, cadê o entusiasmo? Para onde estamos caminhando? O que é preciso para fazer com que esse engajamento aconteça? Será que é só a pandemia mesmo? Porque, se é uma questão que, agora, foi problematizada dessa forma, antes não estávamos tão ativos assim. Quer dizer que não estávamos nos levantando tanto quanto deveríamos. Eu quero crer que a Lei Aldir Blanc e todo esse processo tenham inaugurado uma nova fase no pensar cultural deste país.

[Sharine] Quais os fatores que mais contribuíram para aprovação e implementação da Lei Aldir Blanc? E quais as dificuldades? Você falou sobre a questão da burocracia, a estrutura, que às vezes é muito deficitária nas cidades, a falta de profissional qualificado… Se quiser, pode acrescentar mais alguma coisa sobre as dificuldades e os fatores que mais contribuíram, tanto na implementação, quanto na criação e, agora, na execução da lei, na prestação de contas…

[Valquíria] Para elaboração e implementação da Lei Aldir Blanc, efetivamente, tivemos dois fatores primordiais: o primeiro foi a reunião desse grupo nacional ao redor dessa mesma proposta. Se tem algo no Brasil que é um facilitador para colocar as coisas para acontecer é a opinião política, a questão eleitoral. Quando uma classe desse tamanho se une, com vozes representativas de verdade, você toca em um ponto sensível da nossa representatividade, que é justamente esta: as pessoas querem continuar sendo eleitas. Elas querem continuar ascendendo ao poder. Para isso, é preciso voto, e voto se ganha através de mobilização. Nossa mobilização foi um fator preponderante. Se não houvesse mobilização, não haveria a lei Aldir Blanc, não iria sair do papel, seria uma ideia completamente zerada. Então, o primeiro fator foi este: a mobilização nacional ao redor dessa mesma proposta que foi encabeçada pela deputada Benedita da Silva e conduzida pela Jandira Feghali até o final. Acho que preciso fazer uma homenagem à Jandira Feghali. Foi uma lutadora do início ao fim. Ela entrava em discussões pesadíssimas para defender com unhas e dentes mesmo. Foi um negócio bonito de ver! É de arrepiar de verdade. Então, em primeiro lugar: um fator de representatividade, mobilização nacional.

Em segundo lugar, quando falamos de regulamentação e implementação, tivemos que fazer algumas concessões também. Nem tudo aquilo que imaginávamos que seria posto na lei, aquela simplicidade toda que estávamos imaginando, foi conquistado. Dá para ver isso através dos processos que foram elaborados por todo o país, alguns processos um pouco mais acessíveis, outros nem tanto. Mas houve uma burocracia. Foi preciso fazer uma pequena concessão também para que pudéssemos usar plataformas como o BBÁgil[1], que foi o dispositivo usado para que o recurso chegasse. Usamos a plataforma Mais Brasil, que era nosso antigo SICONV[2], que não é tão simples assim de operar. Precisávamos, realmente, de pessoas qualificadas. Muitos municípios não conseguiram sequer acessar a plataforma. Nós tivemos outro complicador, que foram as validações, como o Dataprev[3], por exemplo.

Um exemplo: em Cachoeiro de Itapemirim, que é minha cidade, nós fizemos inúmeras reuniões com o governo do Estado, com a Secretaria de Estado – não somente o nosso município, mas todos. O município daqui já usava uma ferramenta, mas com precariedade, que é o Mapa Cultural. O Mapa Cultural não é só do Espírito Santo. É uma ferramenta nacional. Essa ferramenta é subutilizada e tem uma deficiência no ingresso. Por quê? Por ser burocrática, por não ser tão intuitiva, o artista acaba não usando, e isso foi colocado como uma ferramenta de requisição de recursos. Alguns municípios daqui, entre eles Cachoeiro de Itapemirim, não usaram o Mapa Cultural porque se tornou inviável. A ferramenta inviabilizou a celeridade de algumas etapas do processo. Isso, de novo, denuncia nossa precariedade digital, nossa automatização das informações. Nosso cadastro nacional, por exemplo, está por cair por terra também. Estamos verificando que os problemas foram surgindo ao longo da construção. Mas são problemas de uma obviedade se tivéssemos alguém olhando por eles. Obviamente, eu teria problemas para ingressar no Mapa Cultural. Foi preciso estabelecer uma nova ferramenta e muita gente não conseguiu, houve um monte de problemas e tem gente agarrada no mapa até agora. Não é só no Espírito Santo, mas em outros Estados também. O cadastro nacional, como eu disse, não foi alimentado. Deixamos morrer. Isso é descuido, é desleixo, é falta de responsabilidade da administração pública como um todo em todas as suas esferas e, também, da classe artística e cultural, que não se mobilizou para buscar uma alternativa.

Quanto à regulamentação, também foi preciso que alguns municípios tivessem um pouco mais de garra para dizer: “não vou usar essa ferramenta. Vou fazer meu cadastro, vou validar meu cadastro e vou assumir a responsabilidade”. Olha o problema a que chegamos, o tamanho da dificuldade para conseguir fazer uma coisa que deveria acontecer naturalmente, que deveria ser uma cadeia natural: o Fundo Nacional, que derrama recurso para o Fundo Estadual, que derrama para o Municipal, os repasses, os editais, que são uma prática que já estamos usando há algum tempo. Para mim, os fatores de elaboração e implementação só ocorreram a partir da mobilização nacional e todas as outras dificuldades ao longo do caminho foram visando, dentro da regulamentação, a simplificar, porém com alguma burocracia a que tivemos que fazer concessão, associada às dificuldades que já estavam postas: falta de estrutura, problemas com o caminho dos editais, cadastro com informações desatualizadas, falta de pessoal. Para mim, basicamente é isso. É o que estamos vivendo até agora. E adianto: a prestação de contas vai ser, de novo, um outro problema. 

[Sharine] Principalmente a questão das certidões, dos cadastros…

[Valquíria] Isso já é uma questão mais burocrática, interna. Fico pensando. Olha que incoerência: se você tem certidões negativas de débitos, quer dizer que você não tem débitos. Mas quem estava sem trabalhar, no período pandêmico, teve débitos. Então, possivelmente, uma coisa não se casava com a outra. Também não faz sentido o artista precisar de dinheiro, mas não poder receber porque não tem atestado. Não faz sentido e não conseguimos fugir muito disso. Outra coisa para pensarmos também: desconto de imposto de renda. Por mais que exista restituição, por exemplo: os representantes de pessoas físicas de espaços culturais, que receberam subsídios, naturalmente tiveram abatimento de imposto de renda. É fora do contexto. Se eu sou representante do espaço, não significa que o dinheiro seja para mim. Eu não fiz pleno uso e gozo do montante total. Tudo o que tem que ser abatido do imposto de renda tem que ser do meu pessoal, lucro aferido e não daquilo que vou usar para sustentar um grupo, um coletivo ou um espaço. De novo, estamos esbarrando em legislações que não contemplam.

Estamos vivendo um momento agora em que se espera que o artista seja, por exemplo, um MEI (Micro Empresa Individual). Tudo caminha para que o artista individual tenha que se associar a um CNPJ mesmo que seja através do MEI para que ele não sofra esses descontos. Precisamos, no futuro, continuar trabalhando. Eu penso que essas representatividades municipalistas, essas câmaras, como eu já disse, podem sustentar isso em um plano mais bem elaborado, de uma forma um pouco mais criteriosa para sairmos dessa questão de “não, é assim mesmo, deixa assim”. Nós praticamos a injustiça de uma forma consentida? Nós não paramos para observar? Está faltando encarar esse setor como um setor que realmente dá retorno. Não podemos falar de cultura sem tratar de economia criativa, por exemplo. Nós fazemos girar os recursos. Olha quanto dinheiro, se tivéssemos conseguido, efetivamente, colocar na rua. Foram três bilhões de reais que poderiam ser injetados diretamente na economia. Porque o artista faz. Ele compra, ele investe, ele paga. Nós retornamos isso tudo. 

[Sharine] Você falou que a sociedade civil teve uma importância muito forte, uma participação. Você consegue mapear quais foram os principais autores envolvidos? Teve o Congresso, os gestores locais, as associações, as cooperativas. Você conseguiria falar mais um pouco sobre isso?

[Valquíria] Eu vi uma atuação muito bacana, principalmente onde havia conselhos de cultura mais bem estruturados. Eu vi muitos conselhos atuando, artistas interessados, por meio de seus conselhos. Eu vi também reuniões de artistas independentes. Isso foi um negócio muito interessante. Artistas que não estavam vinculados por nenhum tipo de associação, que são independentes, mas que acabaram se reunindo em grupos de WhatsApp mesmo, grupos de internet, com todo mundo se mobilizando. Eu mesma ainda faço parte de uns quatro grupos. Isso foi muito interessante porque vimos como, se houver o fio condutor, as pessoas caminham em volta. Então, conseguimos entender que esses artistas independentes também se sentiram à vontade para se reunir e para tratar dessa mesma causa. Eu posso dizer que os mais envolvidos de todo esse processo foram gestores municipais e estaduais. Eu vi, por exemplo, nosso secretário de cultura de Estado, Fabrício Noronha, atual vice da Úrsula Vidal na representatividade dos dirigentes estaduais. Eles foram muito importantes no processo, eles caminharam juntos. Quanto aos dirigentes estaduais, gestores, dirigentes municipais, havia muita gente envolvida porque ficou preocupada. Isso eu achei interessante. Por mais debilitada e deficiente que fosse a estrutura, todo mundo, quando ficou sabendo que iria receber o recurso, quis participar, quis entender um pouco mais, até para dizer assim: “preciso dar um resultado para isso aqui”. Então, eu vi esse tipo de mobilização: artistas independentes, artistas associados através de conselhos. Há o CONECTA, que é esse Fórum Estadual dos Conselhos, hoje presidido pela Elaine Dutra, que é lá do Maranhão, uma mulher negra, capoeirista. Ela é bem bacana.

Eu gostei muito de participar da mobilização pela Lei Aldir Blanc porque conheci pessoas de diversos pontos assim. E essa coisa de ouvir as pessoas falando foi muito legal, como os intercâmbios. Fizemos intercâmbio, passeamos pelo Brasil, sentados aqui. Eu estou no quarto da minha casa. Mas eu passeei pelo Brasil aqui sentada nesta cadeira. E foi muito legal. Conheci pessoas que têm envolvimento desde a base, pessoas que são técnicas assim como eu, trabalham na burocracia, gente que é estudiosa como você. É fantástico! Isso foi lindo! Meu pertencimento ao Brasil aumentou muito mais depois desse processo. Temos que conseguir conhecer ainda mais para poder entender melhor como funciona tudo isso.

[Sharine] Você gostaria de compartilhar algumas histórias que ouviu?

[Valquíria] Há histórias pontuais. Das pessoas da área Norte, eu ouvi muitas histórias sobre a dificuldade de acesso das comunidades indígenas e ribeirinhas, que passam dias para acessar uma comunidade. Quando eles falavam – eu me arrepio até agora -, eu pensava: “como essas pessoas terão um CNPJ?”. Eu ficava desesperada. Como vamos fazer uma pessoa dessas sair de lá para ter um MEI, para receber um dinheiro? Aquilo me indignava de uma forma, que eu ficava louca, querendo fazer. São dias em uma embarcação, rio adentro, sabe? Como? Que loucura é essa? Nosso país é um país continental. Eu ficava escutando esse tipo de coisas, as pessoas me narravam e eu perguntava: “qual a principal dificuldade aí?” Elas falavam: “de acesso, não conseguimos chegar…” Para mim, isso foi muito impactante. Fiquei muito impactada com o tamanho do Brasil, muito impactada com a diversidade, muito impactada com as pessoas, com o fazer cultural de cada lugar. Para mim, isso foi o que mais me tocou. O que mais me deu vontade de colocar a mochila nas costas e…

[Sharine] Sair rodando…

 [Valquíria] Eu falei dos artistas independentes, que se uniram, dos conselhos, tanto que conseguimos remobilizar o CONECTA, dos dirigentes estaduais e dos dirigentes municipais. Para mim, foram esses os atores. É lógico que não vou descartar a deputada Jandira Feghali. Ela estava lá na câmara, e eles fizeram todo um trabalho guerreiro. Sem contar a Confederação Nacional de Municípios [CNM]. Eu trabalho com administração pública desde 2017 e, para mim, a CNM só foi aparecer agora, em 2020. Mas existia esse negócio? Sim, ela existe. Ela é muito interessante. Ela pode levantar, para nós, bandeiras muito potentes, muito poderosas. No setor cultural, foi uma descoberta. Eu fiquei fascinada com o poder que temos através da CNM, que até então eu desconhecia, sinceramente. 

[Sharine] Você também falou um pouco sobre o Sistema Nacional de Cultura. Você poderia traçar a relação entre o Sistema e a lei Aldir Blanc? Qual a importância que você vê no Sistema?

[Valquíria] Nosso Sistema Nacional de Cultura é um sonho de alguns anos atrás. Até então, pretendíamos ter o equilíbrio entre conselhos, planos municipais e estaduais de cultura e o Plano Nacional, e conseguir também os fundos. O que são os fundos? São esses receptáculos, esses funis captadores de recursos. Uma vez dentro dos cofres públicos, por meio de editais, o recurso é distribuído. Quando trouxemos a Lei Aldir Blanc para o plano, começamos a entender que era possível. Até então, como eu disse no início, o repasse fundo a fundo, a mobilização dos artistas por meio de conselhos e os planos  ficavam sempre um pouco a desejar. Nem sempre eram realizadas as conferências municipais, estaduais. O município caminhava até a metade do caminho: tinha o conselho e não tinha fundo, talvez tivesse um plano… Estava muito bagunçado. A Aldir Blanc foi o seguinte: “olha, conseguimos um instrumento aqui para tirar dinheiro do Fundo Nacional”. Era um dinheiro de superávit. Eu fico pensando: se era superávit, quanto deixamos de usar desse fundo? Do superávit do fundo, imaginamos pegar esse dinheiro, canalizá-lo todinho e colocá-lo no fundo, porque a lei falava exatamente isso: “preferencialmente através dos fundos”. E aí crescemos. Eu fiquei louca e falei: “agora vai funcionar porque vamos ter condições de canalizar esse recurso e fazer os nossos fundos e, finalmente, ter essa possibilidade”. Alguns já tinham, logicamente, mas nem todos. O Brasil não conhecia, de fato, o que era um recurso no Fundo de Cultura. Foi isso que aconteceu. A Aldir Blanc veio com esse anúncio: agora há dinheiro nos fundos de cultura. Só que houve esse problema, de que eu falei, que é a falta completa de estruturação. Foi um desespero para conseguir organizar os fundos. Eu fiz, com certeza, por dia, mais de doze horas de reunião, sobre essa proposta de regulamentação, discutindo temas, falando sobre o assunto. Na reta final, entendemos que, se não buscássemos caminhos diferentes do fundo para receber esse recurso, os municípios talvez sequer tivessem recebido. Alguns estados sequer tivessem recebido, porque os fundos simplesmente não existiam e não se sabia como fazer funcionar.

[Sharine] Você acha que há um legado?

[Valquíria] Com toda certeza. Eu acho que agora a herança é essa. Se soubermos trabalhar essa proposta e entender que funciona, que dá para fazer, se nos interessarmos por isso, vamos avançar no Sistema, vamos fazer o Sistema Nacional, que é um sonho, funcionar de verdade. Será uma coisa fantástica porque é um sistema de financiamento e incentivo à cultura. É fomento. Quem faz cultura não é o gestor público, quem faz cultura é a sociedade civil, quem está lá fora. O gestor público tem o dever de facilitar. Ele é um facilitador. Nós, como facilitadores, entregamos a possibilidade para a sociedade civil, que se mobiliza e faz com que coisas grandiosas aconteçam, até porque o estado e o município não têm essa mão para alcançar. Não adianta querermos fazer o papel do artista. Por mais que eu adore escrever meus textos, não sou artista. Quem tem que fazer é quem tem a cátedra para isso. Por isso precisamos incentivar. Quando o poder público vem instrumentalizando o sistema, financiando e facilitando para o artista, criamos um ciclo fenomenal de possibilidades. O que a Lei Aldir Blanc pode fazer agora é mostrar que precisamos de uma legislação específica para regulamentar o setor cultural e que o sistema pode funcionar à medida que a mobilização continue. Precisamos continuar exigindo que haja repasses fundo a fundo, porque a lei Aldir Blanc, em algum momento, vai se extinguir e ficaremos sem a garantia de que o dinheiro continuará sendo repassado. Então, note que nosso trabalho ainda não terminou. 

Agora há a seguinte questão: a lei já deu 3 bilhões para vocês, está pronto, está feito. E aí? Acabou? Vamos deixar o fundo padecer de novo? Vamos encerrar por mais vinte anos? Não pode ser assim. Agora temos que brigar para que o repasse seja contínuo aos fundos de cultura, para que tenha regularidade. Vou lhe dar um exemplo bem concreto: aqui em Cachoeiro, nós tivemos a oportunidade de utilizar o fundo pela primeira vez com a Aldir Blanc. Já tínhamos o fundo legalmente estruturado desde 2018. Então, estávamos com essa legislação em vigência, mas sem recurso. A Aldir Blanc veio, nós incluímos a participação social através das comissões, formadas por conselhos. Percebemos, obviamente, como acho que vários municípios perceberam, que algumas questões precisam ser alteradas. Percebemos, por exemplo, que precisamos reestruturar a forma de avaliação dos projetos que são contemplados pelos editais dos fundos de cultura. Precisamos melhorar a distribuição desse recurso. Ou seja, são coisas que descobrimos que ficaram difíceis ao longo do caminho, mas foram aparecendo. À medida que os processos foram se desencadeando, fomos entendendo qual era a situação, que precisávamos mesmo trocar, melhorar e irrigar.

[Sharine] Estamos falando bastante sobre o sistema público de cultura. Você acha que há diferença para o artista, para a sua obra final, entre um financiamento público e um financiamento privado? Pela experiência que você tem, como os artistas, no dia a dia, conseguem combinar essas duas possibilidades?

[Valquíria] O financiamento através do setor privado não tem muita presença. O artista acaba ficando de pires da mão, batendo na porta do empresário, que não consegue compreender a grandiosidade daquele projeto e acaba não financiando. Então, por que o poder público acaba sendo essa espécie de mecenas? Porque parece que é a única alternativa. Parece que, para financiar, só há o poder público. Mas eu acredito que precisamos trabalhar em outra vertente. Por que o empresariado não acredita? Por que não investe no setor cultural? O que está acontecendo? Precisamos entender a relação do artista com o empresariado. Como o setor público pode trabalhar nessa intermediação? Aqui, a lei de incentivo é praticamente um fundo de recursos próprio, do qual reservamos um percentual dos impostos arrecadados pelo município para fazermos editais e financiarmos projetos culturais. Nossa lei é a Lei Rubem Braga. Nós homenageamos o nosso escritor.  A Lei Rubem Braga funcionava como um mini núcleo, parecia uma “Rouanetzinha”, que era troca de crédito. Então, o artista contemplado pedia ao empresário: “olha, você me financia?”. Só que isso não estava acontecendo da maneira como deveria acontecer. Tínhamos projetos que estavam contemplados sem dinheiro para fazer a execução. Então, o município assumiu para si essa responsabilidade. Mas eu acho que falta diálogo.

[Sharine] Os artistas não conseguiam empresários para patrocinar financiar? Mesmo tendo a possibilidade do recurso público, sendo incentivo fiscal?

[Valquíria] Sim, mesmo com a troca de crédito. O empresário, muitas vezes, preferia pagar seus impostos a financiar um projeto cultural. Acho que, historicamente, encontramos algumas explicações. O que foi o Espírito Santo? O Espírito Santo foram várias fazendas que foram se diluindo em territórios e, depois, em municípios. Só que ainda há muito daquela ideia do coronelismo. Isso implica em questões estruturais. Há muito preconceito, há um machismo que é um horror. Há algumas questões muito apegadas nisso, que sobrevivem no imaginário coletivo. O empresariado se comporta como um burguês brasileiro, que nada mais é do que um detentor de uma quantidade maior, que acha que  é o senhor e que os outros precisam se curvar a ele. O artista vem nessa mesma pegada. Ele vem tentando mudar um pensamento, vem tentando emplacar uma nova forma de ver a vida. Vem tentando mudar alguma coisa e parece que isso se choca um pouco com esse imaginário. Isso faz com que não seja levado em consideração, não seja visto como alguém capaz de influenciar positivamente a sociedade. Pode ser também um medo inconsciente: “não vou financiar porque vai atrapalhar minha família, minha igreja…” É um valor que eu respeito muito, mas que, para algumas pessoas, acaba sendo um “tudo ou nada”. Eu acho que isso ainda causa um grande preconceito com o financiamento por parte do setor privado para os artistas. Acredito que o setor público possa atuar no diálogo, na tentativa de tocar o interesse do empresário para que ele consiga retribuir com o financiamento do projeto. Por exemplo, há dois anos, nós fizemos um edital de captação de apoio para financiamento da nossa bienal. Nós temos uma bienal que reúne, mais ou menos, 70 mil pessoas a cada dois anos aqui na nossa cidade. Conseguimos, através de um edital, receber alguns apoios financeiros por parte do setor privado. Onde o setor público atuou? Na intermediação. O dinheiro não foi diretamente para a mão do artista. Houve um caminho. Tivemos que fazer um atravessador. Mas, pelo menos, é uma forma de trabalhar.

[Sharine] Foi essa a mudança que fizeram na lei de incentivo?

[Valquiria] Exatamente. Em nossa lei de incentivo, deixamos de trocar crédito. Não pegamos mais créditos, o artista não vai mais na porta do empresário. O município reserva uma parcela de seus impostos essenciais, como ISS e IPTU, e faz esses impostos serem aplicados diretamente em projetos culturais. No ano passado, não tivemos, por conta de enchente, pandemia e tudo o mais que você possa imaginar de loucuras que aconteceram. Mas, até 2019, investimos R$ 650 mil reais somente no município de Cochoeiro do Itapemirim, em projetos culturais. Para nós, isso é um orgulho. Nós selecionamos avaliadores de todo o país, temos um processo seletivo bastante rigoroso. É uma coisa que eleva o nível dos nossos artistas. Somos muito orgulhosos de fazer isso, porque sabemos que há um impacto social gigante.

[Sharine] Quais são as opiniões que os artistas e os profissionais de cultura com quem você convive têm em relação às instituições culturais? Pensamos, como instituição cultural, desde a Secretaria Especial de Cultura até as instituições menores, que podem ser um teatro de bairro ou um ponto de cultura. Qual a relação institucional dos artistas? 

[Valquíria] Eu acredito que os artistas estão se sentindo um pouco desamparados. Eu sinto, um pouco, a sensação de desamparo. Eu falo muito da minha realidade, mas acho que ela se reverbera em algumas partes do país. Quando nós começamos o trabalho na Secretaria, a primeira sensação que eu tive foi a de que o artista via a secretaria como se fosse uma inimiga. Eles brigavam. A secretaria brigava com os artistas e vice-versa. A sensação era de que estávamos nos digladiando. Eu fico pensando assim: se é um órgão de gestão de cultura, que tem financiamento e tem coisas para ofertar, como temos um embate tão difícil, como não conseguimos conciliar as opiniões? Foi então que começamos a trabalhar o conceito de gestão compartilhada: convidar o conselho para discutir política pública, fazer reuniões, não importa se são demoradas ou não, desde que se saia de lá com uma proposta única. Foi uma coisa que senti que deu muito certo. Foi quando o artista, de fato, começou a participar da gestão de cultura, foi quando ele entendeu que a secretaria não é uma inimiga, é uma aliada. Isso foi muito legal, isso foi muito bom aqui para Cachoeiro. Tínhamos a sensação de que o artista se sentia desamparado e com uma certa inimizade em relação ao órgão gestor. Se você me perguntasse sobre uma relação mais estreita aqui, eu verifico que alguns artistas não se sentem à vontade para serem sindicalizados. Em algumas associações de teatro, por exemplo, existem divergências, conflitos internos. Muitas vezes, os artistas não se sentem representados suficientemente. Há um problema também, que acho que é da classe. São intuições. Eu falo a partir da minha experiência.

É um problema da classe. Acabamos tendo uma coisa meio egóica, de vez em quando, que não permite trafegarmos com tanta fluidez. Eu estou me incluindo como artista, de um modo geral. Estou me chamando de artista, você está vendo isso? O artista, de modo geral, tem uma questão um pouco egóica e  acaba não permitindo que as opiniões se tornem algo positivo como um todo. Muitas vezes, os órgãos associativos não fluem porque não conseguimos ter diálogo. Aí vem a falta de representatividade. Acredito que seja um pouco isso. Com relação ao Ministério, para mim, foi uma perda devastadora o Ministério ter acabado porque tínhamos uma estrutura muito grande, que podia estar sendo subutilizada. Claro que minha opinião é de que havia uma subutilização do Ministério da Cultura. Acho que deixamos esse tanto de dinheiro acumular no fundo, não fizemos a distribuição correta. Isso não é culpa do Bolsonaro. Já vem caminhando ao longo do tempo. Quando se encerra o MinC, o artista toma um soco, leva uma pancada. É como se estivéssemos perdendo a nossa casa. É como se estivéssemos sendo despejados. De uma forma muito concreta, eu vejo que aqueles órgãos que se permitem o diálogo, que entendem um pouco mais a necessidade, a realidade do artista, têm uma ponte mais estabelecida, mais facilitada. A falta de representatividade é uma realidade. A falta de diálogo é uma realidade. A falta de estrutura é uma realidade. A vaidade também é uma realidade.  

[Sharine] A vaidade, em que sentido?

[Valquíria] As vaidades individuais mesmo, que não permitem que os artistas conversem entre si. Às vezes, são da mesma classe. É muito interessante. Às vezes, há um grupo de atores e eles criticam uns aos outros. “Ah, porque o fulano não sabe fazer, porque o fulano não sei o que…”. Então, há uma vaidade ali. É egóico mesmo. É do ser-humano. Dentro de sua própria classe, em vez de haver uma proteção, há uma faca. É por isso que, muitas vezes, essa relação com os órgãos não fica tão clara. Com os órgãos públicos, eu vejo que é um pouco diferente. Por mais que tenhamos o ator que se sinta o Antônio Fagundes e o ator que se sinta o artista de rua, o gestor público, o órgão público tem que conversar com essas pessoas igualmente. Entre eles, eu acho que fica um pouco mais complexa a fala. Mas temos que lidar um pouco com isso também.

[Sharine] Obrigada. Você quer falar mais alguma coisa? Eu deixei de perguntar alguma coisa que você acha que é importante?

[Valquíria] Não, quero agradecer. Eu fiquei muito feliz, de verdade, com seu contato, com sua iniciativa. Você é uma estudiosa e seu trabalho vai colaborar para esse novo momento. Estamos indo para o futuro, estamos caminhando para outra dimensão. Então, tudo que fizermos agora vai deixar produtos, vai facilitar essa caminhada. É também um legado que deixa a Aldir Blanc, que deixa a própria pandemia. É nisso que fico pensando. Em 2020, por mais que tenha sido um ano de saúde pública devastada, de economia devastada, conseguimos criar muita coisa, conseguimos nos reinventar, dar a volta por cima. Apareceram muitas oportunidades, e as oportunidades vão desde o pensamento. Quando você tem alguma coisa que lhe impulsiona a pensar, é algo oportuno porque você se move. Se ficamos muito no safety place, no lugar confortável, não avançamos para lugar nenhum, porque está confortável, não temos para onde ir. Quando vem um problema desses e nos tira um pouco do conforto, temos que dar outra resposta. Fico feliz por participar, de verdade. Pode contar comigo sempre que precisar. Estou à disposição!

[Sharine] Agradeço a entrevista. Foi um prazer conhecê-la. Adorei ouvir todas as histórias. É muito bom saber que há pessoas engajadas pela cultura no Brasil!

[Valquíria] Muito obrigada!

[1] Plataforma digital do Banco do Brasil.

[2] Plataformas para repasse de recursos do governo federal a entes públicos e privados.

[3] Empresa de tecnologia e informações do sistema previdenciário brasileiro.

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