Canclini na Cátedra

Entrevista com Xauí Peixoto, realizada por Sharine Melo, pela ferramenta Zoom, em 25 de fevereiro de 2021.

[Sharine] Minha pesquisa é sobre a Lei Aldir Blanc e sobre os movimentos sociais que ajudaram na implementação dessa lei e de outras políticas para a cultura e as artes. Podemos começar falando um pouco de sua trajetória. Você é do Ceará…

[Xauí] Sou do Ceará, nasci em Fortaleza. Trabalho com políticas para a cultura e juventude há, pelo menos, quinze anos. Comecei minha trajetória fazendo assessoria parlamentar no campo da cultura e da juventude, na Câmara Municipal, durante seis anos. Pudemos acompanhar a aplicação de políticas para a cultura e a juventude no município de Fortaleza, tanto na SECULTFOR [Secretaria de Cultura de Fortaleza], como na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude. Nesse período, foram implementados as políticas, os primeiros editais, as primeiras leis do conselho, a primeira lei do Plano de Cultura, as conferências, as políticas de carnaval, os editais de arte, além de equipamentos, como a Vila das Artes, no caso da Juventude, e os CUCAs [Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte]. Como assessoria parlamentar, nós acompanhamos esse processo.

Em paralelo, começamos a trabalhar com a articulação de grupos de cultura e juventude, tentando gerar encontros, tentando gerar pautas. Tínhamos o Circuito Sociocultural das Juventudes, em Fortaleza. Nesse circuito, convidávamos grupos para que pudessem se conhecer. Cada edição era num local diferente. Uma edição era na Companhia Bate Palmas, no Conjunto Palmeiras. Íamos lá, conhecíamos a dinâmica, havia uma apresentação artística. O próximo encontro era na Capoeira Água de Beber. Fazíamos o circuito e, no final, fazíamos um encontro chamado Pôr-do-sol da Juventude. Realizamos dois ou três circuitos e três encontros Pôr-do-Sol da Juventude, que era uma mostra desses grupos, com apresentações artísticas, rodas de conversa, exposição. Essa foi a primeira experiência. Na sequência, tive a oportunidade de trabalhar no campo privado, no Centro Cultural Kukukaya, onde havia um café, uma lanchonete e uma casa de show. Lá, pudemos fazer um movimento em rede, que foram as primeiras feiras criativas. Tínhamos essas feiras todos os meses e, em um momento, começamos a realizar um encontro para discutir essas feiras na cidade, como poderiam se organizar, a economia criativa.

Na sequência, fui convidado a trabalhar na Secretaria de Cultura do Estado. Já comecei no campo da gestão. Minha tarefa era a de coordenar a rede cearense dos Pontos de Cultura. A Rede Cultura Viva é um grande exemplo de cultura em rede, de participação, de articulação. Eu tive a oportunidade de trabalhar nesse espaço, conhecendo e fazendo a gestão da rede dos Pontos de Cultura do Ceará. Também havia uma interação nacional muito forte. Acho que umas das políticas que mais conseguiu consolidar esse sentimento de rede foi a política dos Pontos de Cultura. Até hoje as redes, mesmo sem ter uma grande execução, mesmo sem ter política, conseguem se sustentar, conseguem conversar, conseguem ser parceiras.

Na sequência, fui para o Instituto Dragão do Mar, que faz a gestão de vários equipamentos no Ceará, e há o Centro Cultural Dragão do Mar. Um dos equipamentos é o Centro Cultural Bom Jardim, que está localizado em uma região da periferia da cidade, que aglomera outros bairros. É um equipamento de base comunitária, que oferece programação de formação, de criação, de difusão e de acolhimento da comunidade. É um espaço de referência. Ao mesmo tempo, realiza ações na região. São cinco bairros, mais ou menos 220 mil habitantes. Nosso trabalho, na coordenação desse equipamento, tinha uma coisa especial que era a organização da rede do Grande Bom Jardim, em que mobilizávamos escolas, instituições, espaços, coletivos e grupos. Parte da programação era sempre realizada junto com essas instituições. A rede de cultura e arte do Bom Jardim é bem sólida, tem editais próprios, tem uma articulação muito intensa com o centro.

Depois, fui convidado a trabalhar em Sobral, um município importante do Ceará. Fomos convidados a trabalhar lá como política pública para a cultura, dentro do Instituto Ecoa. O Instituto Ecoa é muito parecido com o Instituto Dragão do Mar. Ele faz a gestão de equipamentos culturais em Sobral e tem seu próprio equipamento, que é a Escola de Comunicação, Cultura, Arte e Ofício. É um espaço amplo, com salas para formação, difusão. Com muita criação artística também. Além disso, cuidávamos de outros equipamentos, como a Escola de Música de Sobral, o Teatro São João, a Casa de Cultura, a Pinacoteca, as Estações de Juventude… Sobral tem cinco estações de Juventude, que trabalham em rede. Fazíamos as programações também: editais, programação de carnaval, São João, aniversário do teatro, programações que também são do calendário oficial. Sobral, para nós, foi uma experiência incrível porque tínhamos um forte apoio da gestão, recursos, liberdade e autonomia. Foi um “boom” de ações e atividades, o que levou Sobral a ser a 11ª cidade no Brasil, proporcionalmente, em execução financeira do orçamento para cultura. Na Folha de São Paulo há esses dados, de 2018 e 2019. Sobral foi a 11ª cidade do Brasil com nível de utilização de recursos financeiros. Também gosto de citar esse exemplo de rede. Sobral é uma cidade da região Norte, cidade sede, com universidade, fórum, hospital regional. Também nos preocupamos com que Sobral fosse essa referência regional. Fizemos um trabalho em rede, com 21 municípios. Havia a Rádio Ecoa, uma rádio própria, com uma programação cultural e artística. Havia artistas locais, artistas do Ceará, e essa rádio também cumpria a função de difundir o conteúdo da região. Sobral acabou de tornando referência da região Norte, trabalhando em rede com 22 municípios. Na sequência, depois da experiência na Ecoa, fui coordenador do Centro Cultural Bom Jardim, da diretoria de cidadania e diversidade do Dragão do Mar. Em Sobral, fiquei na direção de ação cultural e cidadania e, na sequência, assumi a presidência do Instituto, durante um ano e meio. 

Veio a pandemia, mudanças em geral, e voltei para Fortaleza. Aqui em Fortaleza, logo quando começou a pandemia, eu comecei a articulação pela Lei Aldir Blanc. Foi em que investi meu tempo. Não de “quarentena” porque não foram quarenta dias, foram três ou quatro meses. E aí começou essa intensa movimentação. Eu nunca vi, em todos esses anos, uma articulação tão intensa, tão ampla, tão abrangente, tão capilar como foi a da Lei Aldir Blanc, nem mesmo nos tempos áureos, maravilhosos, de Gilberto Gil e Juca Ferreira, das conferências e de muito debate, de muita participação social. Fizemos uma live para falar um pouco sobre “cultura básica já”, “renda básica já”. Nessa live, convidamos o Alexandre Santini, logo no comecinho. Foi uma das primeiras lives que passaram a falar em auxílio cultural, em coisas assim. O Santini é um gestor conhecido, já foi do Ministério da Cultura. É um grande agente cultural do Rio de Janeiro, da rede Cultura Viva. Trabalha com Célio Turino e tem relações com a Jandira Feghali. Então, ele nos trouxe essa notícia do projeto. O Vladissom, assessor do Deputado Federal José Guimarães, também trouxe esse tema. Foi então que identificamos que havia dois ou três projetos na câmara federal que, de alguma forma, citavam essa coisa de auxílio cultural, de renda cultural. A partir daí começou uma mobilização. Quem estava como referência e me chamou, “tem como ajudar nisso?”, foram o Alexandre Santini e o Marcelo Ricardo. O Marcelo Ricardo é de Campinas, também ligado aos Pontos de Cultura. Ele é mais conhecido como Marcelo das Histórias.

O Marcelo e o Santini me colocaram nesse circuito. Houve uma grande conferência para tratar disso e começou a mobilização nos Estados. Depois que houve essa conferência, os contatos de mobilização do movimento social das culturas, no sentido amplo, os gestores, conselheiros, fóruns, artistas e trabalhadores da cultura, em geral, mobilizaram-se nessas conferências. A metodologia das conferências virtuais, dos encontros virtuais, foi muito interessante. O Fórum dos Secretários e Dirigentes de Cultura Nacional teve um papel fundamental, sobretudo a Úrsula Vidal, secretária de cultura do Pará, o Fabiano Piúba, secretário de cultura aqui do Ceará, junto à Luisa Cela. Pernambuco e Espírito Santo, com a Carol Ruas e o Fabrício, também tiveram participação muito importante, firme e constante.

O Fabiano dizia que estávamos em estado permanente de Conferência Nacional de Cultura, como se estivéssemos, diariamente, semanalmente, fazendo isso. E foi “pipocando”. Houve uma hora em que perdemos o controle de quem estava fazendo as conferências. Tentávamos acompanhar. O Marcelo participava de uma, o Santini de outra. O Célio divulgava para lá, divulgava para cá. Isso virou uma prática de movimento, de articulação em rede incrível. Foram criados vários grupos de WhatsApp. Essa estratégia do WhatsApp foi muito importante. Havia de dez a quinze grupos nacionais, com pessoas de todo o Brasil. Enquanto isso, havia a tramitação no Governo Federal e esses dois ou três projetos. A Jandira Feghali como relatora, como tecelã do processo, o José Guimarães como articulador político, além das variadas contribuições. Isso foi unificado no projeto que conhecemos hoje como Lei Aldir Blanc. Ficou com autoria da deputada Benedita da Silva, que foi a primeira a propor o projeto. A Benedita foi autora, a Jandira foi relatora e o Guimarães, o articulador da Lei Aldir Blanc.

Começou a movimentação para pedir o apoio dos deputados. Foi uma segunda coisa muito importante. Como havia esses grupos espalhados, a informação e a capacidade de mobilização eram muito rápidas. Começamos a criar os grupos estaduais. Mandávamos os links para cada grupo nacional. O Marcelo falou: “vamos criar os grupos”. E fomos criando todos os grupos, pegando imagens, mensagens… Tínhamos um grupo de mensagens-padrão para trabalharmos as informações e sermos mais rápidos. De repente, mandamos a divulgação de todos esses grupos nos grupos nacionais. Divulgamos os grupos estaduais nos grupos nacionais. Rapidamente, começaram a entrar pessoas da Bahia, do Amazonas, do Acre. Enfim, começou a entrar gente de todos os estados. Mandávamos mensagem: “pessoal, aqui é o grupo de mobilização da Lei. Chamem o pessoal”. Eles chamavam o pessoal, e, rapidamente, o grupo tinha sessenta, oitenta, cem agentes.

O Marcelo atuava muito nisso. Havia páginas,  havia os manuais sobre como fazer sua conferência, manuais sobre como fazer sua carta aos deputados. Havia coisas prontas para que os agentes culturais pegassem e reproduzissem em seu estado. Rapidamente começou essa mobilização. Os conselhos começaram a fazer as cartas, a mobilizar gestores em cada estado, em cada cidade, a fazer vídeo, a fazer foto. Essa mobilização ficou muito intensa e tínhamos uma parceria muito forte com a Mídia Ninja, que chegou muito junto, com sua força de comunicação. Havia as lives, que continuaram acontecendo, as conferências… e começou o mapa do voto. Tínhamos o plantão do voto, no domingo, para mobilizar, dar notícias: “tantos votos ‘sim'”. Sempre participavam várias pessoas, várias representações de vários locais.

Naquele momento de pandemia, essa coisa do sentimento, do afeto era muito forte. Havia essa coisa de acompanhar o voto. “Subia” no grupo do Estado: “tal deputado federal confirmou”. Já mandávamos num grupo maior de articuladores: “mais um voto!”. Isso foi criando não uma disputa, mas uma mobilização para que cada Estado pudesse ter acesso: “quero saber sobre meu deputado”. Todo mundo falava: “mais um, mais um, mais um”. Acho que o primeiro estado a fechar os 22 votos foi o Ceará. O Fabiano ligava para cada deputado. Foi incrível porque conseguimos os 22 votos, independentemente de partido, de base, de ideologia, do que fosse. Fomos o primeiro estado a completar os 22. O povo já se animava mais: “o Ceará!”, e por aí vai. Isso foi gerando essa mobilização.

Na hora da votação, resultou em unanimidade, exceto o partido Novo. Mas, em todas as falas de todos os deputados, de todos os partidos, ficou essa conquista histórica. Ouvíamos os deputados falarem. O próprio Guimarães dizia: “rapaz, eu nunca vi uma mobilização tão extensa, tão certeira como essa que foi feita na Cultura”. Essa prática, essa mobilização foi muito importante não só para nos conectarmos, mas para entendermos que podemos nos mobilizar a partir de nossa pauta. Houve votação unânime e, depois, o projeto seguiu também para o senado. Também houve votação unânime. Continuamos realizando lives, conferências. Continuou a mobilização. A partir do senado, o Fórum dos Dirigentes, sempre acompanhando, já começou a pensar na execução. Já tínhamos grupo jurídico, já estávamos indo nessa linha.

“E agora? Vai dar certo? Como vamos executar?” Sabemos da fragilidade do sistema de gestão pública da cultura nas secretarias. “Como vamos fazer? Não tem funcionário, o prefeito não sabe nem que existe a pasta da cultura”. Começou essa preocupação sobre a execução. Eu me lembro que, neste caminho, aguardando a regulamentação, as primeiras conversas com o Ministério eram sempre complicadas, mas conseguimos avançar nos prazos. “Quando o dinheiro vai sair?” A Escola de Políticas Culturais lançou um curso, com a Mídia Ninja, nos canais. Era um curso de uma semana, já para falar sobre como a lei seria executada, como o pessoal teria que fazer. Isso foi gerando outra evolução do interesse dos municípios. Aqui no Ceará já começamos a fazer a articulação estadual. Todos os secretários do interior criaram um grupo com a sociedade civil, com conselhos, para que todos já fossem se preparando. Já foram adiantando: “quem não tem fundo, quem não tem lei, quem não tem conselho?” Isso nos trouxe, nacionalmente com certeza, mas também no Estado, essa capacidade de formar redes. Nunca estivemos tão próximos e tão interligados, não só como gestores dos municípios, mas também com o movimento cultural organizado. Víamos cada município abrindo suas páginas na internet.

Em seis meses, tivemos um acúmulo de participação, de mobilização social e de organização em rede que valeu por cinco ou dez anos do que já vivemos. O curso também foi muito importante. Começaram a sair cartilhas, a CNM [Confederação Nacional dos Municípios] participou, assim como a Associação Brasileira dos Municípios. O pessoal disse: “vixe, o dinheiro vai sair”. A coisa começou a realmente dar certo. Veio a regulamentação. Não foi tão boa quanto esperávamos. Sabíamos que não seria fácil. Mas aconteceu e os recursos começaram a chegar aos municípios. Agora, a questão nacional desceu para os estados. Ao mesmo tempo o movimento estava tocando as conferências estaduais e municipais. Elas vinham acontecendo e serviam para preparar a chegada real do recurso. Cada município saiu correndo feito doido, cada estado saiu correndo feito doido para entregar os documentos, para fazer o plano de ação.

Conseguimos montar uma rede de apoio. Tínhamos o modelo do plano de ação, fazíamos lives para tirar dúvidas. Eram lives estaduais, lives nacionais. Fomos conversar com o departamento jurídico para disponibilizar o material. Toda semana, todo dia, saía algum modelo e distribuíamos em todos esses grupos. “Fez o plano de aplicação? Mande para os outros estados”. “Tal município já fez o dele? É exemplo de comissão de acompanhamento e fiscalização da lei.” “Pode ser paritário? Pode. Já tem um exemplo aqui”. Também foi muito legal a parceria da rede criada a partir dos documentos, dos planos necessários para concluir as metas para receber os recursos. Os recursos começaram a chegar e começou a loucura que são os cadastros. Eu também colaboro com o Instituto Mutirão, que é um articulador. Foi uma das instituições que articularam o Mapa da Cultura, o HackLab, na parte técnica. Havia, no Ceará, uma boa experiência com o Mapa Cultural, que já era utilizado. Já tinha uma base de dados bem interessante. Os editais já eram executados com a utilização do Mapa.

Também conseguirmos que outros estados começassem a usar o mapa cultural. No caso do Ceará, a Secretaria disponibilizou o mapa para que todos os municípios pudessem utilizar. Antes da execução da Lei, cinco municípios do Ceará usavam o Mapa. Hoje são 162. Temos quase 90% dos municípios com seus Mapas Culturais, funcionando direitinho, interligados. O que é cadastrado no município vai para a mesma base de dados. Isso, para nós, foi um avanço. Começou também essa parte de formação e de informação, de como gerenciar o mapa, como fazer, como utilizar dentro da rede do Ceará. Conseguimos montar a Rede Ceará do Mapa Cultural com quase todos os municípios e uma dinâmica. Outros estados aderiram ao Mapa. Por exemplo, o Pará e o Espírito Santo implantou o Mapa Cultural. Alguns participaram da melhoria, como São Paulo e Pernambuco. O mapa também fortaleceu essa rede. Temos um grupo de WhatsApp chamado “Mapa Cultural”, que reúne pessoas do Brasil todo, gestores, técnicos, programadores, hackers. Isso foi uma contribuição. Algumas secretarias disponibilizaram o programador. Quem não tinha contratou. O HackLab foi contratado pelo Pará. O Ceará disponibilizou algumas coisas. Isso virou uma equipe de implementação, de otimização das melhorias que precisavam ser feitas para a Lei Aldir Blanc. O que houve de melhoria estava disponível para qualquer um que usasse o mapa. É código livre, aberto. Foi uma articulação em rede importante. Hoje eu acho que quase dez estados utilizam o Mapa Cultural. Isso pode virar um mapa nacional de investimentos coletivos. Cada um coloca um pouquinho e todo mundo ganha. Tem um ponto: existia muita dificuldade nos Estados que tinham sua base de dados no Ministério da Cultura e não conseguiam acessá-la. A galera não conseguia acessar, mandava ofício, ligava. O setor foi fechado, não tem mais ninguém para lidar com isso. Muita gente perdeu seus dados lá no Ministério. Alguns optaram por não usar o mapa porque não tinham mais os dados, iriam fazer outra coisa e por aí vai. A história do mapa foi bem interessante.

A loucura continuou porque o dinheiro chegou. Havia pressa para executar, cobrança política. A pandemia já estava afetando o bolso de todo mundo. Passou esse tempo. Alguns estados conseguiram executar mais, outros menos. Muitos municípios não conseguiram, mas muitos conseguiram. Há estados que conseguiram dar esse suporte. Eu uso o exemplo do Ceará porque é um exemplo muito citado. O Ceará conseguiu montar essa rede de apoio aos municípios. Teve esse protagonismo e conseguiu dar esse apoio. Proporcionalmente, o estado com maior número de municípios que conseguiu acessar a Lei Aldir Blanc foi o Ceará. O maior número de municípios que conseguiu executar a maior parte dos recursos foi do Ceará. Ceará e Pernambuco foram os únicos estados que conseguiram executar 100% dos recursos. O Ceará apareceu também com esse valor, como essa referência. Também passamos a cuidar dessa informação. Não só os gestores, mas também os agentes culturais, os artistas e trabalhadores. Como poderíamos consolidar isso e fortalecer essa rede nacional?

A lei foi criada para beneficiar aqueles que mais precisam e a régua da cultura é muito grande. Na cultura, tem gente que precisa pouco, tem gente que precisa muito, tem gente que não precisa de nada, tem gente que precisa de tudo. A Lei Aldir Blanc trouxe essa possibilidade de chegarmos a quem nunca chegamos. Claro que faltou chegar a muita gente, mas, ainda assim, foram passos significativos. Nunca vi tanta gente ganhando recursos por meio de edital: a diversidade de negros, mulheres, LGBTs, de acessibilidade, territoriais, de periferias, quilombolas, grupos de culturas populares, ribeirinhos. “Há, há muita disparidade ali… Um negócio ali… O fulano ganhou e não era para ganhar”. Isso acontece. Mas eu dizia: “vamos deixar de jogar luz ao problema – é importante apontar -, mas vamos nos voltar a todos esses artistas, grupos, coletivos e lugares que nunca haviam conseguido”. Vamos aproveitar e divulgar isso, vamos chegar juntos, vamos compartilhar. Vamos fazer isso aparecer. Hoje eu começo a ver outras políticas que já são influenciadas pelo retrato da Aldir Blanc. Alguns grupos ganharam a Aldir Blanc e já foram chamados para outras coisas “Cara, não conhecia tal grupo, não conhecia aquele trabalho”. Isso, para mim, é a grande potência da Lei Aldir Blanc. Que a gente consiga, a partir de agora, ser mais Aldir Blanc, entender que a gente precisa caminhar a partir dessa política mais ampla, abrangente, para todos, todas, todes, em lugares, em formas, em cores. Esse avanço aparece de uma forma muito forte. Acho que a Lei Aldir Blanc é um marco e traz esse amadurecimento, essa força. Com certeza, ela influenciará as próximas políticas que serão aplicadas nos estados e nos municípios.

[Sharine] Quais você acha que foram os anseios, as motivações que levaram a esse movimento tão intenso da Lei Aldir Blanc?

[Xauí] Acho que a pandemia foi a culpada disso, mas, ao mesmo tempo, são R$ 3 bilhões. Esse dinheiro, que estava no Fundo Nacional de Cultura, estava parado há mais ou menos três anos. R$ 3 bilhões. Nem nos tempos do Juca Ferreira e do Gilberto Gil se usou tantos recursos em tão pouco tempo. Isso, para mim, já foi impressionante. Conseguimos tirar esse recurso que estava parado e distribuir por aí para ser executado. Isso só foi possível por esse movimento amplo e social das culturas, que envolve artistas, trabalhadores, agentes, gestores e parlamentares. Isso foi muito importante para o movimento entender que tem capacidade para incidir na pauta do Senado, na pauta da Assembleia ou na pauta da Câmara de Vereadores. Muitos vereadores, deputados federais, estaduais e senadores passaram a olhar a pauta da cultura de outra forma, e vemos como as pautas da segurança, da educação, da saúde, do meio ambiente e outras conseguem ser mais centrais. A cultura, que é tão transversal a todas as outras, nunca conseguiu. Eu acho que, pela primeira vez, conseguiu. Temos que manter esse legado.

Outro problema do campo cultural é que, quando ele tem essa conquista – “opa! Recebemos um dinheiro! Pronto!” -, não consegue fazer uma manutenção dessa articulação, dessa participação, dessa mobilização. Acho que não é tão organizado nessa estratégia como é, por exemplo, a educação. Há os professores, a comunidade, a sociedade. Na saúde, há os médicos, os enfermeiros. Na cultura, não é diferente, mas ainda não nos colocamos de uma forma mais corporativista. A Lei Aldir Blanc, mais uma vez, trouxe essa possibilidade, trouxe essa capacidade. A reorganização do campo cultural. Somos do tempo em que havia muita conferência. Estávamos sempre em contato. Há anos já não existe a conferência. A retomada da possibilidade das conferências virtuais, esses grupos que foram criados reorganizaram o movimento. Hoje temos uma atualização do movimento. Sabemos quem é quem, onde todo mundo está. Mais gente foi mapeada, apareceram novas pessoas, conhecemos os municípios.

Na Calcária (CE), por exemplo, não havia conselho, não havia rede. Agora há a rede da Calcária, a rede da Serra. Foi um ganho. O movimento cultural se reorganizou e atualizou sua organização. Há histórias incríveis de mobilização. A rede de apoio aos artistas do município de Calcária é uma delas. A prefeitura não queria saber de nada da lei e eles conseguiram. Luta, luta, luta, luta. Fizeram uma excelente execução e começaram a sentar na mesa com a prefeitura. Isso foi muito legal. Outro exemplo foi essa rede de Cidadania e Diversidade, que brotou fortemente. São artistas, grupos e coletivos que trabalham com a pauta dos negros, das negras, das mulheres, dos LGBTs e da acessibilidade. Para mim, isso é muito político. Se você olhar para a eleição, vai perceber que se destacaram candidaturas com essa narrativa. Quando olhamos para o campo cultural, acho que esta é a pasta que tem mais capacidade de interagir com isso, de fortalecer. A cultura tem essa parte econômica, que ainda é pouco usada. No último período, a cultura movimentou em torno de R$ 175 bilhões, se não me engano, gerou um milhão de empregos diretos, quase cinco milhões de empregos indiretos, movimentou mais de 300 mil empresas, ocupou um percentual forte no PIB (de cinco a quinze vezes mais do que a indústria automobilística). Só o audiovisual, se não me engano, em 2015, gerou mais recursos do que a indústria automobilística. Ainda não conseguimos trabalhar bem esses dados, não conseguimos dispor da rede. Há os artistas, os técnicos, os produtores, a tia do lanche, há o táxi, o figurino, a cenografia… Também não conseguimos mobilizar a sociedade. Quando paramos na rua e perguntamos: “o que você acha mais importante?” A pessoa sempre vai dizer: “segurança, educação e saúde”. Ainda não conseguimos mobilizar nem mesmo pela sociedade diversa. Acho que, na pandemia, isso aconteceu. As pessoas ficaram em casa, passaram a assistir filmes, a ver espetáculos de dança, a ver teatro. Os artistas passaram a fazer as coisas da sua casa. Acho que a cultura ganhou um pouco o sentimento da sociedade, mas não o suficiente.

Outro boom é que acho que a cultura, com o avanço da Lei Aldir Blanc, com toda essa diversidade, toda essa potência, tem como apresentar ao Brasil um plano, um programa de sociedade. A cultura tem como produzir pensamento, produzir política ampla, diversa. A cultura é fundamental para o desenvolvimento social, humano, econômico, simbólico e político. Esse ser político da cultura tem que ser mais explorado pelo movimento. Acho que hoje temos, por causa da Aldir Blanc, essas condições, seja no âmbito das casas Legislativas, seja no âmbito Executivo, como gestores. A maioria dos gestores geralmente é militante, agente cultural, tem uma ligação com a cultura. Hoje em dia, temos a rede de contatos, temos essa capacidade de lidar com a internet, com os programas. É mais para frisar que a Lei Aldir Blanc veio para consolidar o campo da cultura e apresentar a cultura como uma possibilidade de vida, de segmento social, político e econômico. 

[Sharine] Sobre as facilidades, você falou bastante. Foi esse anseio de as pessoas se reunirem, de trocarem informações sobre a cultura. Quais você acha que foram as principais dificuldades para implementação e para a criação da lei?

[Xauí] Há uma advogada, a Cecília Rabêlo, presidente do Instituto IBDCULT [Instituto Brasileiro de Direitos Culturais]. Ela faz essa avaliação da capacidade jurídica da cultura, da base de legislação da cultura, de como a organização ampla, de gestão capilar, ainda é muito frágil. Os sistemas, os fundos, os conselhos. Uma hora, a cultura está junto ao turismo; no outro ano, já está não sei onde. É muito desestruturado. A base jurídica foi muito difícil, a regulamentação, a lei federal. Acho que esse foi o grande problema. Precisamos avançar muito e consolidar essa história. No Ceará, queríamos mudar a lei para termos algumas flexibilidades com relação a repasse de recursos, prestação de contas. Realizar uma atividade cultural não é igual a construir um hospital ou estádio, mas a mesma regra é aplicada. Posso fazer, por exemplo, uma oficina de desenho, da qual todo mundo participou, apresentar a lista de frequência ou apresentar todos os desenhos de uma exposição, as fotos, os vídeos, os materiais de imprensa. Mas, se o pincel que eu usei é similar ao pincel do plano de trabalho, isso dará problema e terei que desenvolver o dinheiro, haverá uma ação. Temos que olhar mais para o resultado da ação, na flexibilização jurídica, do que necessariamente para os detalhes da planilha orçamentária. A Cecília fala muito bem disso e tivemos esse exemplos no Ceará.

Por causa da Aldir Blanc, essa flexibilização da legislação passou na Assembleia. Eu disse para o pessoal: “vocês não têm noção: se tivermos só esse ganho, já será muito importante porque passaremos a ser geridos por uma legislação mais flexível do que aquela que já nos prejudicou alguns anos atrás”. Com certeza, este foi o principal problema: a legislação jurídica federal e nos estados, municípios. Mas, ao mesmo tempo, isso provocou a possibilidade de avançarmos. A segunda questão que dificultou muito foi a politização da pauta, principalmente nos municípios: eu vi muito município deixar de executar porque o prefeito não gosta ou porque mudou na campanha eleitoral. Isso também foi muito ruim: no meio da lei, passamos por uma eleição. A Lei Aldir Blanc virou uma certa moeda de troca. No meio da virada, muitos municípios mudaram, novos gestores entraram. As coisas se embolaram e muitos municípios tiveram dificuldades em relação a isso. Várias vezes, tivemos que fazer sensibilização, ligar… Isso foi muito ruim, essa despolitização nos municípios por causa da eleição. Isso também prejudicou bastante.

Trabalhar com o governo federal foi bem difícil em vários aspectos: mudança de secretário, desautorização, falta de equipe. Toda hora tínhamos que explicar o básico da política cultural para os gestores, para conseguir negociar. Foi muito difícil.

[Sharine] Quais foram os principais atores da sociedade civil envolvidos no processo? Houve os parlamentares, grupos de artistas, as instituições maiores, como a CNM…

[Xauí] É difícil apontar individualmente, mesmo porque acho que se dividiu. Há a importância dos parlamentares atentos, dispostos, apresentando as coisas já no começo. Há o destaque para a Jandira Feghali e a Benedita da Silva, para o José Guimarães, mas também para tantos outros que ajudaram. O bom foi ver como foi construído de uma forma tranquila, para não gerar problemas. Conseguimos essa unidade. Conseguimos perceber como foi importante, lá atrás, termos construído essa política de participação social, de conferências, conselhos e fóruns. Muitos conselhos participaram. Muitos fóruns e conselhos foram reativados por causa da lei. Foi o caso, por exemplo, de Sobral (CE). Quem não tinha conselho, quem não tinha fórum, criou uma comissão. O que dizemos ser frágil, os Sistemas Nacional, Estadual ou Municipal de Cultura, compostos por conselhos, por secretarias, o pouco que tínhamos organizado, foi o que deu uma dimensão muito boa de organização.

O movimento social como um todo também foi importante porque todo mundo passou a se interessar. Podia ser da música, da dança, do teatro, o que tivesse, as pessoas passaram a falar em Aldir Blanc: “cadê, vamos lá! Como faço? Onde assino a carta? Publico um card?” Todo mundo quis participar de alguma forma. Isso entrou na onda, entrou numa ciranda: “aqui está o e-mail do deputado!”. Coisas que eu não imaginava que poderiam acontecer aconteceram: todo mundo interessado, compartilhando, muito bacana. O que tínhamos de organização institucional da cultura foi muito importante, o parlamento foi muito importante e o amplo movimento social das culturas foi importante.

Além disso, havia os gestores comprometidos com a pauta, interessados, militantes. Não posso deixar de destacar o Fabiano, a Luísa, a Úrsula, o Fabrício. Eles comandaram o fórum: a Úrsula é presidente, o Fabiano é vice, o Fabrício também faz parte da gestão do fórum. O Fórum de Secretários de Cultura do Brasil. Acho que é esse o nome oficial. Tinham agendas direto, toda hora se reuniam, pautando, brigando em cima disso. A CNM participava e outras instituições também. Acho que uma pessoa que talvez ainda não tenha sido homenageada como deveria ser em relação a isso é o Célio Turino. A Jandira Feghat foi tecelã, mas o Célio sempre militou sobre a base comunitária, a renda básica da cultura, a renda cidadã. Eu não tenho dúvidas de que ele esteve na ideia desde o começo, estudando, arquitetando. Se a Jandira é a tecelã, o Célio é o arquiteto da Lei Aldir Blanc. Acho que foram essas figuras. Na mobilização, o Santini, o Marcelo, essa nossa turma que estava ali, além da Mídia Ninja. Nós sustentamos a onda por seis meses, todo dia. Eu fazia três ou quatro lives por dia, seis ou sete reuniões. Os dedos estavam cansados de mandar coisas de WhatsApp. Foi muito, muito intenso.

[Sharine] E os movimentos populares daí? Como funcionam no Ceará?

[Xauí] Acho que a rede nacional dos Pontos de Cultura se mobilizou. Sempre foi uma rede sólida. Então, era natural que essa rede chegasse junto. Não estou conseguindo destacar movimentos porque foi tão intensa a participação de todo mundo! O fórum de dança nacional, as redes de teatro, o pessoal da música como um todo… Todas essas redes de linguagens artísticas tiveram uma participação muito forte. Houve alguns especiais. Estou tentando lembrar das lives, mas os nomes estão “fugindo”. É porque era tanta gente! Em cada estado era tanta gente! Mas tinha um que era o CONECTA [Fórum Nacional dos Conselhos de Cultura]. O CONECTA reúne o Fórum Nacional e Regional dos Conselhos. O CONECTA também teve uma participação muito intensa em tudo isso. No mais, foram os estados, a própria militância de cada estado, os agentes culturais de cada estado. Eu acompanhava os grupos diariamente e via a intensidade dos grupos, dos coletivos, fóruns e conselhos estaduais em relação à aprovação e à aplicação da lei.

[Sharine] Você falou um pouco sobre o Sistema Nacional de Cultura. Qual você acha que é a importância desse sistema e qual a relação com a Lei Aldir Blanc?

[Xauí] O Sistema Nacional de Cultura é o nosso SUS [Sistema Único de Saúde]. É para ser o sistema que unifica União, Estados e Municípios, que organiza os planos, as conferências, os conselhos, os fóruns, as secretarias. Proporciona uma permanência na questão das políticas públicas para que sejam de Estado e não de Governo, de balcão. Vínhamos em uma peleja para conseguir qualificar o sistema. Por exemplo, aqui no Ceará, durante oito ou dez anos, sempre se trabalhou para fazer sua conferência, seu plano, para organizar a lei do fundo, a lei do conselho. Trabalhamos por muito tempo e avançamos pouco. Havia poucos municípios com fundo, poucos municípios com secretaria, poucos municípios com plano aprovado. Isso sempre foi um dado muito ruim. Quando a lei veio, o Fabiano Piúva defendia que o plano tem que ser pelo Sistema. É agora. Nós passamos dez anos organizando e o Sistema vai passar por fora? Foi muito bom ter essa medição de que era importante que fosse através do sistema. Mas, se não desse, havia a possibilidade de ser por fora.

Muitos municípios criaram conselhos, muitos municípios regulamentaram. Às vezes, havia a lei do Fundo, mas não estava regulamentada. Houve aquele empurrão a mais. Vi muito fóruns se reorganizarem, vi muitos fóruns novos nascerem. Aqui, tivemos o Fórum dos Artistas da Periferia, um novo fórum importante, que tem trabalhado legal. Tínhamos que criar a comissão. A lei trouxe a necessidade de que outras secretarias, outras pastas do governo, passassem a falar disso. Então, chegou ao prefeito, ao secretário de finanças. A lei trouxe essa possibilidade, essa capacidade de fortalecer o Sistema Nacional de Cultura e de passarmos, novamente, a olhar para ele como um sistema importante, que deve ser cuidado. Agora vamos aproveitar o que a lei deixou e vamos continuar nossa agenda de fortalecimento do sistema, até porque os R$ 3 bilhões acabaram, mas temos que ter outros recursos. Imagine se, todos os anos, tivéssemos o repasse fundo a fundo, a partir do Sistema? Essa era a ideia da política e não podemos tratar assim a cultura: “dinheiro para cá, dinheiro para lá, valeu! Todo mundo recebe”. Se não formos como a Educação, como o SUS, se não tivermos nossos 3%… Mais uma vez, temos a oportunidade de tocar essa pauta do Sistema.

[Sharine] Quais as diferenças entre o financiamento público e o privado para produção artística e cultural? Como essas possibilidades se combinam, no dia a dia, para os artistas, para os produtores?

[Xauí] O privado tem relação com o comercial, com o perfil de público. Ele nunca será abrangente, amplo, diverso, como o investimento público. Essa é a tarefa do investimento público. Não dá para o investimento público querer ser investimento privado. O investimento público deve olhar para essa régua e entender que tem prioridades, que no campo da cultura há privilégios, acessos. Não são todos iguais. Quem está na periferia tem dificuldade de acessar o centro. O investimento público deve ser pensado de baixo para cima. Para mim, é essa ideia. O investimento privado é o investimento privado. Esperamos que tenha, minimamente, uma régua social, mas é um investimento privado. Estará sempre pensando no público que quer atingir com sua marca, na forma como quer gerar aquele conteúdo. É óbvio que cabe também ao movimento, ao investimento público, dialogar com isso. A partir do momento que o investimento público entra no privado – não vejo problemas nisso acontecer, só vejo os tamanhos disso -, ele tem que ir pensando: cadê a cota? Tantos por cento têm que ser do interior, isso tem que ser “assim ou assado”, tem que contemplar grupos da periferia. Não posso dar R$ 1 milhão ou R$ 500 mil, R$10 milhões para uma ação privada, sem que exista um retorno social. Isso não pode acontecer. Ela tem que cumprir parte disso aqui. Acho que isso é muito confundido.

Na cultura, o pessoal ganha um investimento público: “opa, ganhei! Eu me garanti e pronto, vou fazer do meu jeito”. Não é assim. “Tudo bem, sua obra é maravilhosa, mas ela vai circular na periferia? Na sua equipe só tem homem? Cadê as mulheres?” “Vai fazer um filme explorando a narrativa do interior, explorando a narrativa da mulher guerreira no interior, mas cadê as mulheres na sua equipe? Está doando quanto para a associação?” Às vezes, a galera se apropria daquela narrativa, faz um sucesso com aquilo, mas cadê o retorno? Acho isso muito complicado. Essa coisa do ego da sua obra. “Pronto, é meu, faço do meu jeito”. Não, acho que tudo tem que ter esse retorno social. Os artistas precisam pensar mais nisso: qual o retorno que tenho para meu bairro, para minha cidade? Não pode ser só a obra pela obra, a arte pela arte. Acho que, no campo privado, isso é mais torto ainda. Cabe ao poder público regrar. O melhor exemplo disso é a lei Rouanet: 80% dos recursos arrecadados são para projetos do Rio de Janeiro e de São Paulo, e 80% dos projetos do Rio de Janeiro e de São Paulo são para a avenida Paulista. Não é o interior de São Paulo, não é a periferia de São Paulo. Quando você olha os festivais, os filmes, eles estão tratando das coisas que estão no Nordeste, no Pará, no Amazonas. Essa é uma dificuldade e uma pauta de que precisamos tratar. A galera explora a narrativa, ganha o dinheiro e não faz um retorno para a fonte onde bebeu. No financiamento privado, os problemas são esses. Acho que ele também deve existir, mas com regras.

[Sharine] Qual a relação dos artistas com as instituições culturais? Falo das instituições em sentido amplo, como o Ministério da Cultura, hoje a Secretaria Especial de Cultura, ou um teatro de bairro, um ponto de cultura, o centro cultural de uma comunidade. Como os artistas se relacionam institucionalmente com esses espaços?

[Xauí] Eu acho que, quanto mais perto de sua base, melhor eles se relacionam. Quanto mais essas instituições conseguem se colocar naquele local, naquela linguagem a partir dessa abertura, dessa transparência, desse diálogo, melhor. Não adianta você chegar a um lugar e querer fazer a sua ideia se sua ideia não for a mesma ideia da galera. Não é só como beneficiário daquela política. É preciso participar do pensamento, da execução e do resultado daquela política. Quanto mais for dessa forma, quanto mais o artista, trabalhador da cultura, o público que consome puder participar do processo, melhor. Claro que se você vai a um show, você é o público. Mas os artistas têm que participar, não podem ser só beneficiários.

Muitas vezes as instituições chegam com as coisas prontas: “eu estudei não sei onde, sei como funciona”. A galera produz, faz cultura e sabe fazer. Você não precisa impor ou tentar ensinar. A relação é de troca. As instituições que são mais abertas, que conseguem ter diálogo, que conseguem trocar mais são mais próximas da sua base artística e cultural. Essa é a dificuldade. Mas eu vejo que os artistas conseguem lidar mais facilmente com as redes que são próximas. Você tem acesso ao diretor, ao programador, dialoga, é recebido. Mas o IBM, que é o instituto que gere tudo isso, está lá na praia de Iracema. O artista não vai conseguir acessar, não tem encontro mensal. O gestor fica cada vez mais distante, olhando muito de cima e achando que está entendendo tudo quando, na verdade, ele tem que olhar de baixo,. Isso também é uma coisa que os gestores precisam entender, saber que têm conhecimento, têm trajetória, sabem fazer as coisas, mas precisam fazer com os outros.

O artista também não pode achar que aquilo que está fazendo é a coisa mais interessante do mundo. Ele sozinho, daquela forma. Com as linguagens é a mesma coisa: o teatro acha que o teatro é a coisa mais importante, que o edital dele tem que ter mais… O audiovisual, a dança… As linguagens precisam amadurecer, os artistas precisam amadurecer. “Foi trabalhar e só havia homens, não tem nenhuma pessoa da periferia, não conseguiu dialogar com a dança, não fez um show no seu território, não fez uma oficina na escola”. É preciso equiparar isso. Se as pessoas não equiparam, o Estado tem que equiparar: 50% para o interior, os projetos devem ter ao menos uma mulher, um negro, os projetos devem ser em tal território, os editais devem ser territoriais… Ou seja, temos que curar a curadoria. “Beleza, para ser transparente, terei uma curadoria”. Mas essa curadoria é paritária? Essa curadoria tem gente do interior? Essa curadoria tem negros? Essa curadoria é só acadêmica ou tem mestres da cultura, tem gente dos coletivos? Há essa política de edital. “O edital já saturou?” Eu digo que não sei. Acho que os editais ainda podem ser mais assertivos. Quem são os pareceristas? Vêm de onde? O projeto é para contemplar capital e interior? Eu olho para os parecistas e só há pareceristas da capital? Não pode. O projeto é para contemplar a maior diversidade de pessoas. Eu olho para os pareceristas e todos são brancos? Não pode. Não é isso de ser contra o branco, não. É porque é na diversidade que a coisa bomba mais. O resultado vai ser muito mais interessante se houver um retrato mais diverso. Para mim, essa é a pegada que temos que aplicar.

 

[Sharine] Você quer falar mais alguma coisa? Acha que eu deveria ter perguntado algo que não perguntei?

[Xauí] Não, acho que falamos bastante. Não estou me lembrando de nada específico. Quero agradecer e dizer da importância de estamos fazendo esses relatos, de estarem sendo feitas essa pesquisa e essas entrevistas. Precisamos cuidar desse legado da Aldir Blanc, olhando para esse processo, para essa mobilização, para essa diversidade toda que ampliou. Só tenho a agradecer e parabenizar por isso.

[Sharine] Eu que agradeço! Parabéns também pelo trabalho que fizeram na Aldir Blanc, principalmente nesse momento de emergência cultural. Não só a emergência na saúde, mas também a questão da economia, todas as questões políticas envolvidas. Vocês conseguiram fazer um movimento muito bacana. Obrigada e fico à disposição.

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