Canclini na Cátedra

Realizada presencialmente, no pátio do Complexo Cultural Funarte SP, em São Paulo, no dia 16 de agosto de 2023

Sharine: Como conversamos, estou fazendo uma pesquisa sobre as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, no Instituto de Estudos Avançados – IEA/USP, na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. Estou trabalhando, desde 2020, com o Prof. Néstor García Canclini, que atualmente trabalha no México. A supervisão da pesquisa é do Prof. Martin Grossmann, também da USP. Estou conversando com pesquisadores e pessoas envolvidas com a gestão cultural. Meu interesse não é entender as leis em si, mas suas consequências para as políticas públicas. Primeiramente, gostaria de saber sobre sua trajetória na gestão cultural e sua relação com essas três leis: Aldir Blanc, Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e Paulo Gustavo.

Inti Queiroz: Eu sou produtora cultural há uns trinta anos pelo menos. Comecei a atuar mais pela música, mas já trabalhei com todas as linguagens ao longo desses anos. Tudo: patrimônio, teatro, audiovisual, cultura tradicional, hip-hop, etc. De uns dez anos para cá, também comecei a pesquisar academicamente. Tenho um mestrado sobre os projetos culturais e as leis de incentivo à cultura nacional, estadual e municipal. Na época, a Lei de Incentivo à Cultura do Município de São Paulo ainda era a Lei Mendonça. Acabei fazendo um doutorado sobre o Sistema Nacional de Cultura, pensando também nas três esferas (nacional, estadual e municipal), mas principalmente na parte da construção desse sistema, partindo de um olhar que tenta entender as relações entre sociedade civil e poder público, mas um olhar também sobre as dificuldades de ambos para dialogar, para construir junto, para fazer política. Foi um doutorado feito muito na perspectiva filosófica, apesar de ter feito na Faculdade de Letras. Também soma à minha trajetória. Eu cheguei a dar aula na pós-graduação da Unicamp. Dei aula na UNESP, dei aula na USP, dei aula na PUC por alguns anos, na FESP, formando algumas gerações de produtores e gestores da cultura. Além de tudo isso, faço parte de diversos movimentos culturais da cidade, do estado e nacionais. Para fechar o currículo, há dois anos e meio sou assessora da Deputada Federal Samia Bomfim. Tive a oportunidade também de ajudar na construção dessas três leis, tanto em termos de reflexão quanto de estratégias de lutas políticas internas, no Congresso Nacional, e externas, também em termos de mobilização, para aprovarmos essas leis. Resumindo, é isso.

Sharine: Você ainda está como assessora da Samia? Mas você fica aqui em São Paulo…

Inti: Fico aqui no escritório de São Paulo. Os gabinetes, em Brasília, são minúsculos. Os deputados, geralmente, têm a maior parte dos gabinetes no seu estado. Meu trabalho é fazer essa articulação junto aos movimentos culturais também, para que possamos continuar nas lutas da cultura, andando para frente. Agora conseguimos estar em diálogo com o governo que compomos e construímos juntos, para que a gente não só resista, como foi nos últimos anos. Justamente as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, as três leis, mostraram que é possível, na adversidade, construir e não só resistir.

Sharine: Em 2023, houve a volta do Ministério da Cultura. A situação do fomento à cultura e às artes no país mudou em relação aos últimos anos. O que você viu de continuidade e o que houve de alterações com essa mudança, em relação a políticas públicas anteriores. Não estou pensando somente no período Temer e Bolsonaro, mas no que já havia sido feito antes pelo governo do PT.

Inti: Eu ficaria horas falando sobre isso porque tem a ver com minha tese de doutorado. Eu defendi o doutorado em 2019, mas continuo pensando, discutindo e escrevendo sobre isso. Eu acho que é impossível retomar de onde estávamos em 2016. O primeiro ponto é: o Brasil é outro, a cultura é outra. A pandemia mexeu demais com a cultura, pensando até mesmo no fato de que ficamos dois anos praticamente parados. Tivemos que nos adaptar ao digital. O audiovisual se infiltrou nas outras linguagens definitivamente. Esse intervalo de seis anos, na verdade, nos ajudou a repensar. Foi quase uma “retrogradação”. Tivemos a chance de olhar para trás e dizer: “o que fica? O que conseguimos fazer andar? O que conseguimos não deixar ser destruído?” Acho que, tanto no governo Temer quanto no governo Bolsonaro, havia gente lá dentro, assim como havia aqui na Funarte, segurando as bases, algumas estruturas, e não deixando as roldanas simplesmente se perderem. O que fica mostra a importância, por exemplo, do Sistema Nacional de Cultura e de já termos, de certa forma, construído suas bases lá atrás. Talvez ele não tivesse ficado… Ele sobreviveu não somente por estar na Constituição. Os movimentos culturais haviam se apropriado de uma política estruturante. Ele sobreviveu porque as cidades já tinham, de certa forma, começado a implantar os seus sistemas e, também, começado a ver que havia coisas em que precisávamos mexer. Acho que o que fica para 2023 é uma lição de que precisamos desburocratizar o Sistema Nacional de Cultura, torná-lo mais simples, tornar as conferências mais simples, tornar o CPF [Conselhos, Planos e Fundos] algo mais acessível, palatável e “entendível” para o setor. Eu acho que é muito complexo. Isso é uma das coisas que ficam. Eu acho que esse processo foi tão especial… Por conta de uma coisa terrível que aconteceu, que foi a pandemia, conseguimos, dentro do governo Bolsonaro, pela primeira vez na história, fazer com que o fundo a fundo (que na verdade não funcionou) fosse um tema que, hoje, muita gente sabe o que é. Pela primeira vez, conseguimos distribuir dinheiro para quase todas as cidades e para todos os estados. Isso nunca tinha acontecido. Apesar de tudo, quem diz que só andamos para trás não entende a importância do que foi, principalmente, a Lei Aldir Blanc. O momento da Lei Aldir Blanc foi um momento em que muita gente, pela primeira vez, entrou em contato com as leis da cultura, pela primeira vez soube da existência dos movimentos culturais e, pela primeira vez, entendeu que poderia ter acesso a esses recursos. Eu conheço muita gente que nem imaginava que poderia ter acesso a um recurso público diretamente.

Sharine: Você está falando de artistas…

Inti: E de técnicos também. Por exemplo, os técnicos terem entrado nas lutas foi histórico também. Foram criados o SOS Técnica[1] e outros movimentos da técnica. Acho que o que fica é que, na verdade, esse buraco dos seis anos não foi um buraco tão sem fundo e tão ruim assim. Na adversidade, construímos uma alternativa. Conseguimos fortalecer e avançar mais.

Sharine: Uma alternativa sobre bases que já existiam…

Inti: Isso. Aproveitamos o que já tínhamos e repensamos algumas coisas. Tivemos tempo de olhar melhor para nosso Plano Nacional de Cultura. Tivemos a chance de entender que não entendemos nada sobre fundos. Precisamos entender para conversar mais sobre os fundos… Os próprios conselhos entraram em uma DR [discussão de relacionamento] para entender qual seu papel real. Os conselhos têm que ser voluntários? Não poderia haver algum tipo de remuneração? É um “trabalhão” que eles têm. Ao mesmo tempo, muitas vezes os conselhos são plataformas políticas para outras coisas. Isso tem que acontecer? Não estou dizendo que não…  A Lei Aldir Blanc resgata o nosso Sistema Nacional de Cultura, esse pilar da distribuição descentralizada. Ele começa a ser divulgado, incrivelmente, a partir da Lei Aldir Blanc, quando, realmente, as pessoas que estavam trancadas em casa, entenderam que era o único jeito de começarmos a conversar. O papel dos conselhos foi fundamental na organização. Mas eu posso falar com certeza: as Ocupa MinC[2] e a articulação feita, totalmente horizontal e espontânea das Ocupa MinC – eu falo sobre isso em minha tese de doutorado – ajudaram muito a construção e a organização que vieram depois. Já estávamos interligados em rede, o Brasil todo. Não vou dizer que antes não estávamos. Estávamos também, a partir da terceira Conferência Nacional de Cultura, que foi gigante. Mas o Ocupa MinC foi essencial até para firmar e criar movimentos locais. Isso é uma coisa que não é só de São Paulo. É uma coisa que muita gente diz: “olha, em Santa Catarina foi assim, no Paraná foi assim, na Paraíba, etc”.

Sharine: Já havia alguns movimentos… Em São Paulo, por exemplo, havia os movimentos do teatro, que sempre foi muito forte, da dança, que vinha se fortalecendo…

Inti: Mas, depois do Ocupa MinC, surgiram outros, no âmbito artístico, por exemplo, aqui na cidade de São Paulo. É claro que não foi só o Ocupa MinC. Mas foi no Ocupa MinC que começamos a nos organizar, entendendo que, se o Haddad[3] não ganhasse a eleição aqui na cidade, nós teríamos que estar muito bem-organizados para segurar o que viria. E foi exatamente isso que aconteceu. Isso levou às lutas pelo orçamento da cultura na cidade de São Paulo. Nunca se viu uma mobilização tão grande. Foi a primeira vez que começamos a lotar as galerias, o Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo e que conseguimos conquistar a Subcomissão de Cultura dentro da Comissão de Orçamento e Finanças. Foi essa subcomissão que virou os últimos cinco anos. Começou aqui, nasceu aqui…

Sharine: Em 2016…

Inti: Durante a ocupação do Ministério, durante os dias de ocupação, das plenárias, das conversas, para além do que já havia antes. Foram muitos coletivos, de todo o tipo, que ocuparam aqui: coletivos de linguagem, coletivos de território, coletivos de gênero, de lutas raciais, etc. Foi muito nesse sentido.

Sharine: Hoje, além dos conselhos, há os comitês…

Inti: Os conselhos de cultura são uma coisa. Por exemplo, a cidade de São Paulo não tem conselho de cultura. No Estado de São Paulo, havia um conselho biônico, nomeado pelo Dória, que nunca fez nada. Os comitês da Lei Paulo Gustavo têm uma ligação muito próxima ao governo, mas não são reconhecidos como representativos pelos movimentos culturais. São reconhecidos muito mais pelos independentes, por pessoas que não estão inseridas nos movimentos, do que pelos movimentos. Apesar de serem pessoas próximas aos movimentos, no olhar dos movimentos, os comitês são governo.

Sharine: Por quê? Pela forma como foram constituídos? Como foi?

Inti: Foi uma coisa assim… Surgiram uns nomes, organizaram uns grupos, mas foi meio de “cima para baixo”.

Sharine: Foram indicações?

Inti: Não sei se foram indicações, mas não houve uma eleição. Não foram eleitos pelos movimentos. Foram eleitos por pessoas “X”. Não houve um diálogo de representatividade de pessoas de movimentos. Eu falo isso porque o pessoal comenta. Já deu muita briga… No grupo de São Paulo dava muita briga. Depois, somente os administradores podiam comentar no grupo de WhatsApp. Deu mais briga ainda. Não são movimentos de base. O comitê é algo que realmente está neste eixo, de tentativa de diálogo com os movimentos, mas que não são os movimentos. Os movimentos até estão ali, mas têm uma outra perspectiva, quase apartidária. Geralmente, são pessoas mais ligadas à esquerda. Acho que isso é uma característica da cultura: ser pessoas mais ligadas às esquerdas. Mas acho que é isso, principalmente porque uma das características dos movimentos culturais de São Paulo é serem autônomos. Eu lembro, por exemplo, em 2016, quando começaram a acontecer os cortes, os movimentos de teatro, dança, ocuparam a prefeitura do Haddad[4]. Não é porque eram de esquerda. Havia até mesmo pessoas ligadas ao PT que não quiseram isso. Não foi só com o Temer. Eu acho que, quando a cultura precisa, ela se mexe, independentemente de quem está no governo. Temos essa amostra…

Sharine: Com a Ana de Hollanda[5] aconteceu a mesma coisa…

Inti: Nós que derrubamos a Ana. O movimento “Fora Ana” foi uma articulação nacional, principalmente porque ela atacou os pontos de cultura, que são uma coisa que todo mundo ama e sabe da importância. Ela atacou o Cultura Viva. Na hora todo mundo reagiu, até mesmo quem não era dos pontos de cultura, tanto que ela não durou nem dois anos como Ministra. Foi um ano e dez meses.

Sharine: Já falamos sobre as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Eu acho que elas são centrais. Sei que há outras políticas públicas, há outras coisas acontecendo, mas essas são duas leis centrais para o governo atualmente. Como você acha que elas influenciam a própria estrutura do Ministério da Cultura e o conjunto das políticas culturais? Elas alteram ou não o papel de outras instituições, como a própria Funarte, onde estamos, o IPHAN, o IBRAM… Essas mudanças são duradouras ou não? São várias perguntas, mas estão relacionadas.

Inti: Eu acho que são leis estruturantes por dois motivos. Primeiro porque elas fazem distribuição para todas as cidades e estados e pensam a política de uma forma estruturada. Mas elas têm uma questão: elas têm os editais. Não somente eu, mas também muitos pensadores e pesquisadores da cultura, temos trabalhado muito a questão: edital é política cultural? Estamos chegando à ideia de que é um mecanismo, mas não é uma política. Vi que, agora, o próprio MinC está começando a chamar de “Política Nacional Paulo Gustavo”, “Política Nacional Aldir Blanc”. Não acho que a Lei Paulo Gustavo seja uma política nacional. Acho que a Lei Paulo Gustavo é uma lei estruturante da Cultura, mas ainda é uma lei emergencial. Esse setor ainda está na emergência.

Sharine: Você diz que é estruturante por conta do Sistema Nacional de Cultura.

Inti: Essa foi uma preocupação muito grande. Eu me lembro de vários encontros e conversas sobre a Lei Paulo Gustavo, quando ela ainda estava sendo pensada. Encontros com Marcos Souza, Chris Ramirez[6], com a própria bancada da cultura, dentro da própria comissão de cultura. Tínhamos essas conversas internas também: “é a chance que nós temos de implantar o Sistema Nacional de Cultura”. Na Aldir Blanc, não ‘rolou’. Na Lei Aldir Blanc, gostaríamos de ter feito isso, mas não tivemos tempo. Estávamos com muita pressa. A Lei Paulo Gustavo tem duas coisas que vieram de nossas experiências da Lei Aldir Blanc: o Sistema e as ações afirmativas. Posso dizer com certeza que isso veio da experiência da Lei Aldir Blanc. Isso foi falado, isso foi tratado nas conversas, nos encontros. Eu acho que a Lei Paulo Gustavo tem uma importância histórica. Já é um marco legal. Ela vai passar, mas tem uma coisa que vai deixar: vai ter contribuído para o Sistema. Tem também a questão da quebra do supervavit, do rompimento com o teto de gastos, do rompimento com essas leis financeiras do Brasil. Isso mostrou que podemos furar essa bolha. Talvez seja um indicativo até para que possamos, por exemplo, fazer a reforma do Fundo Nacional de Cultura. Eu também participei da construção da regulamentação do Sistema Nacional de Cultura bem de perto. Fizemos milhões de reuniões. Eu “canetei” bastante. Apesar de ter sido puxado pelo mandato Benedita da Silva, tanto a Benedita quanto a Chris Ramirez abriram [para contribuições]. Ficamos dois meses trabalhando… Não foi possível colocar a reforma e a nova regulamentação do Fundo Nacional de Cultura ali, apesar de ele ser parte do Sistema. Mas, de certa maneira, aí vem a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. A Política Aldir Blanc já está sendo pensada também como uma forma de alimentar o Sistema. Não tem como esperarmos que só o Fundo Nacional de Cultura, no formato em que está hoje, ligado à Lei Rouanet, alimente o Sistema. Ainda vamos demorar para conseguir fazer isso. Por exemplo, podemos tentar colocar um diálogo com a própria Lei Rouanet, fazer uma contrapartida melhor. Era o que estava previsto no Projeto de Lei Procultura, PL nº 6722/2010. Nesse sentido, está a importância dessas duas leis. Eu acho que a Lei Paulo Gustavo dá esse impulso ao Sistema, na forma como vamos continuar pensando no dinheiro. Se entendermos essa relação, que ainda parece muito estranha para todo mundo, dessa lei com o Fundo Nacional de Cultura e com o Fundo Setorial do Audiovisual… As pessoas não entendem como funciona… As pessoas não entendem nem mesmo como funciona a transferência desses recursos para cidades e estados. É uma coisa que – trabalhando no Congresso – eu acompanhei de perto. Foi bem interessante. Qual foi a estratégia daquele momento? Era um momento muito específico. Estávamos tentando aprovar a PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] 2023. O Congresso estava um caos. Nós ganhamos a eleição, porém a base do Jair Bolsonaro[7] ainda era muito grande dentro do Congresso. Bem ou mal, o Centrão estava jogando suas cartas. Simplesmente, quando “caiu a ficha”, as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc não estavam dentro do Projeto de Lei Orçamentária 2023. Teve que ser feita uma operação muito rápida. O orçamento foi incluído numa emenda dentro da Comissão Mista do Orçamento, dentro de uma rubrica do Ministério da Cidadania, nem era do Ministério do Turismo.[8] Foi uma jogada de mestre porque era o que dava para fazer. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura não entrou no orçamento. Não se sabe o que aconteceu. De qualquer maneira, entrou agora na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias], que ainda não foi aprovada. Já entrou, também neste mesmo esquema, via PLN [Projeto de Lei do Congresso Nacional], via CMO [Comissão Mista de Orçamento]. Estou tentando falar em termo técnicos. O mais importante é: nós estamos entendendo como conseguimos fazer a política cultural dentro da coisa técnica.

Sharine: Como usar o dinheiro…

Inti: É isso. Nós ainda não estávamos entendendo como íamos conseguir ter acesso a fundos e recursos. Estamos há 20 anos “girando lâmpadas” no Sistema, mas nós não temos dinheiro. Agora, bem ou mal, temos uma bancada da cultura, com muito mais deputados federais interessados no tema, trabalhando com a gente e técnicos. Para além de termos um governo federal que é favorável à cultura, hoje temos um setor cultural e movimentos culturais com mais cabeças pensantes, que se aprofundaram e hoje entendem coisas muito técnicas, que lá atrás não entendíamos. Fomos estudar, como você. O povo foi fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado sobre o Sistema. Hoje temos pesquisa sobre isso. Já temos bastante material, até mesmo sobre a Lei Paulo Gustavo. Tem bastante gente escrevendo artigos.

Sharine: Como você acha que as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo influenciam outras instituições, como a Funarte, por exemplo? Não pode haver uma sobreposição de papeis?

Inti: Tanto a Lei Paulo Gustavo quanto a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura… Nunca tivemos um montante de dinheiro tão grande. Hoje o grande recurso da Cultura está concentrado nessas duas leis, até por conta da LOA [Lei Orçamentária Anual] 2023 ter um recurso pequeno para o Ministério da Cultura e para suas partes. Sabemos disso. Por mais que tenha tido a PEC [Proposta de Emenda à Constituição] da transição, que tenha dado uma ajuda para o dinheiro crescer um pouco mais. Sabemos que o dinheiro que temos para a Funarte, para o IPHAN é pouco. De certa maneira, agora, o que pode acontecer são essas produções oriundas da Lei Paulo Gustavo, que vai começar a acontecer este ano. No ano que vem, teremos muitos teatros, muitos espaços como a Funarte, como o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, como o CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil], como o SESC, etc, que vão se aproveitar o espaço em que vão receber essas produções. É um capital de giro. Eu acho que a produção cultural é um valor em si. Não sabemos como será o futuro, não sabemos como será a construção do orçamento para o ano que vem. Se depender dos movimentos culturais, vamos lutar para ter orçamento para a cultura, para ter mais orçamento para a Funarte, não só para que a Funarte faça editais, mas para que tenha uma estrutura melhor, para que possa oferecer cursos, para que possa estar realmente ocupada, como foi no Ocupa MinC. As leis refletem nessas instituições neste sentido. Durante este período todo, conseguimos parar para pensar os equipamentos de cultura e as instituições de cultura. Qual é seu real papel? Elas precisam fomentar. É necessário entender que ceder espaço, ceder infraestrutura é também um tipo de fomento. É claro que ter um pouco de dinheiro para pagar os cachês seria importante também. Mas é um tipo de fomento. Eu sei porque já fiz coisas aqui e foi superimportante.

Sharine: Até porque é caríssimo alugar um espaço cultural.

Inti: Há também a qualidade dos espaços, principalmente para quem é artista, para quem é produtor, que não têm seu próprio espaço, ou mesmo para aqueles que têm, mas estão longe do centro. Às vezes também querem vir apresentar sua arte, sua produção cultural em um lugar central.

Sharine: O que você acha que contribuiu para a aprovação dessas leis, em 2022, mesmo com um governo contrário? Eu entendo que a Lei Aldir Blanc teve a questão da emergência, teve a pandemia, tinha um recurso financeiro emergencial… Foram vários fatores que contribuíram. Mas na aprovação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura e da Lei Paulo Gustavo, o contexto já era um pouco diferente.

Inti: Isso é uma coisa muito curiosa. Já penso nisso há mais de dez anos. Em meu doutorado eu falo disso. As leis da cultura têm uma boa recepção no Congresso Nacional.

Sharine: Por quê?

Inti: Porque isso agrega à marca de qualquer tipo de político, menos daqueles que são oficialmente anti-cultura. Não é à toa que, na votação das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, justamente aqueles são anti-cultura foram os pouquíssimos que votaram contra. Agrega à marca. Tanto que é muito curioso pensar que a Lei Aldir Blanc foi assinada por 14 partidos. Nem sei dizer quantos deputados assinaram. 14 partidos assinam a Lei Aldir Blanc para chamá-la de sua, com coautoria. Foi um projeto de Lei de autoria da Benedita da Silva, mas que foi construída pelos movimentos. Os movimentos foram lá e disseram: “Benê, protocola aí”. Muita gente fala assim: “o Congresso nunca vai aprovar tal lei de cultura”. Hoje, estando lá dentro, vejo isso ainda mais. Hoje, por exemplo, o presidente da Comissão de Cultura, o Marcelo Queiroz, que é do partido do Arthur Lira, do PP [Partido Progressistas], está fazendo uma condução muito boa. Está respeitando bastante as pautas, os temas construídos pelas bases. Estou bem surpresa. O Mário Frias sumiu, percebeu que era persona non grata. Aliás, nem sei se está indo à Câmara dos Deputados. Ninguém sabe dele. Às vezes, ele aparece na Comissão de Cultura, uma vez a cada três meses. Mas ele não está atuante. Esse é um exemplo de que os deputados espertos entenderam que a cultura agrega.

Sharine: Será que é por causa dos movimentos da cultura…

Inti: Os movimentos culturais fazem um bom trabalho, até mesmo de diálogo e articulação com partidos diversos e com o “centrão” também. Não é somente com a esquerda que os movimentos dialogam. Dentro de alguns grupos dos movimentos culturais, tem gente ligada a partidos do “centrão”. Não são essas pessoas que puxam os movimentos e as lutas, mas tem…

Sharine: Mas são importantes para articular…

Inti: Sim, porque são essas pessoas que estão lá e falam: “olha, assina a lei tal”. Todo mundo quer ajudar o seu partido. Nessas, acaba tendo gente do “centrão” ajudando. Já vi casos… Quando foi protocolada a Lei Paulo Gustavo, sem querer, parou na “minha” um PL [Projeto de Lei] que era “ctrl c”, “ctrl v” de uma deputada do Partido Republicanos. Ela fez um “ctrl c”, “ctrl v” idêntico à Lei Paulo Gustavo, na primeira versão, antes de mexerem. Na época, ainda era um partido com muito mais bolsonaristas do que é hoje. O próprio Eduardo Bolsonaro ainda estava no partido. Eu falei: “gente, que coisa louca”. Queremos aprovar, nem que seja o dela. Mas aprovamos o que foi inscrito pelo Senado. Ela inscreveu na Câmara dos Deputados um projeto de lei exatamente igual. Isso é uma prova. Toda vez que os movimentos culturais fazem visitas aos gabinetes, sempre somos muito bem recebidos por parlamentares de vários partidos. Eles querem tirar foto. Se houver artistas conhecidos, é melhor. Eles falam: “quem está aí?”. Porque é isso: agrega. Mas a luta e a construção dos movimentos são importantes. São os movimentos que fazem esse trabalho de formiguinha e de bater em cada gabinete, mesmo que seja por WhatsApp, e falam: “podemos contar com o seu voto, deputado?”. Nas três leis isso foi feito pelos movimentos, em uma articulação força-tarefa de todo mundo. Quem tivesse o contato ia confirmando. Havia um placar. Imagine se “o cara” vai falar: “não, não quero”. Ele vai falar: “estamos juntos, contem comigo”. Isso é da política. Quando são temas polêmicos é mais difícil. Mas, neste caso, quem vai dizer “sou contra”?

Sharine: Muitos dos articuladores da Lei Aldir Blanc hoje estão no Ministério da Cultura. Você acha que isso ajudou no processo de institucionalização ou não? Iria funcionar de qualquer forma?

Inti: Vou responder do fundo do meu coração. Eu esperava que o Ministério da Cultura começasse, já no início do ano, pela Lei Paulo Gustavo. Eu achei que eles demoraram para começar a mexer com a Lei Paulo Gustavo. Isso estava irritando bastante os movimentos culturais. Não é a Lei Rouanet que nos interessa. A base da cultura não acessa a Lei Rouanet. A primeira coisa em que começaram a mexer foi a Lei Rouanet. Mas entendemos e os movimentos falavam: não é simples. Eles pegaram a “casa” “detonada”. Eu participei de um GT [Grupo de Trabalho] do governo de transição, um GT sobre o Sistema Nacional de Cultura. Eu venho estudando a virada do orçamento. Sei que, realmente, a coisa estava… Eu acho que isso ajuda, mas não é algo com que os movimentos culturais, as lutas da cultura ou a própria base do setor se importam muito. A maioria nem conhece essas pessoas. Nem sabe quem são. A maior parte da “galera” que foi nomeada para as Diretorias, Secretarias não é de figurinhas carimbadas. São nomes novos para a maior parte das pessoas.

Sharine: Não influenciam…

Inti: Alguns sim. Mas, para a maioria das pessoas, não. A maioria não sabe quem são essas pessoas. Não vou citar nomes… Eu sei quem são todos. Mas a maior parte das pessoas não faz ideia de quem são. Só a Margareth Menezes porque a Margareth é a Margareth. Ela é a foto. Ela nem precisa entender de política cultural para estar lá. Mas ela é uma pessoa que sempre foi antenada com o Sistema.

Sharine: Sabemos que 100% dos estados e 98% dos municípios já aderiram à Lei Paulo Gustavo. Você acompanhou essa articulação com os gestores estaduais e municipais? Qual o interesse desses gestores por essa lei?

Inti: Eu acompanhei. Acho que foi um trabalho que os comitês fizeram bem. Bem ou mal, eles conseguiram ativar [o interesse pela Lei Paulo Gustavo]. Eu acompanho somente o de São Paulo, mas acredito que isso aconteceu em todos os comitês, esse trabalho de força-tarefa, de busca ativa das cidades. Eu mesma mandei e-mail para algumas cidades. Tenho casa na Praia Grande (SP). Mandei e-mail para a Secretaria da Praia Grande, perguntando, e a resposta foi ótima. Até me convidaram para ir lá, conversar na Secretaria, conhecer esses trabalhos, como moradora da cidade. Mais do que tudo, acho que, na Lei Aldir Blanc, demos um passo. Na Lei Paulo Gustavo, estamos dando um segundo passo, que é: estamos ensinando as cidades a mexer com o Sistema Nacional de Cultura. Na Lei Aldir Blanc, isso já começou. Em muitas cidades, muita gente nem sabia o que é política cultural. Em 2018 e 2019, eu rodei bastante o estado de São Paulo, mas não somente. Rodei outros estados também, fazendo oficinas em 43 cidades, dialogando com os gestores, com o setor cultual, com conselhos… A falta de informação é muito grande. Acho que as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc estão nos ajudando a fazer esse caminho. Por quê? Porque quando tem dinheiro envolvido, tanto os gestores quanto o setor cultural se interessam em se envolver. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, principalmente, vai criar uma rotina, que a Lei Paulo Gustavo não consegue criar, por ser um ano só. Mas a Política Aldir Blanc vai criar uma rotina. Vai conseguir fazer a roda começar a girar, nem que seja numa velocidade lenta. Vai nos ajudar a pensar em novas formas de ter fontes de recursos. Esse trabalho da busca ativa nas cidades é isso. Estou num grupo da 4ª Conferência Nacional de Cultura que tem mil pessoas. Tem muitos gestores de cidades de que nunca ouvi falar na vida. Estão desesperados por informação, por ajuda. Vi um comentário que foi muito simbólico. Ela é uma gestora de cultura que fica dentro de uma Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer, tudo o que você pode imaginar… Ela está sozinha. Ela escreveu no grupo. O pessoal mandou portarias, guias, links… Ela falou: “mas o que eu faço com tudo isso? Já li tudo, mas não sei como fazer isso na minha cidade, não sei por onde começar. Não sei nem se existe setor cultural aqui”. Quase a peguei pela mão e falei: “amiga, vem cá, posso te ligar?”. Este é um trabalho que o MinC poderia fazer, mesmo que ele contratasse temporariamente algumas pessoas para destravar esta porta, para dar essa consultoria.

Sharine: Provavelmente, as cidades não têm um sistema de cultura mais por falta de conhecimento do que por desinteresse… Acho até que as pessoas têm interesse…

Inti: Têm muito interesse. Nessas 43 cidades que eu visitei, tinha sempre um workshop de algumas horas, em que eu tentava fazer a mediação entre a prefeitura, a secretaria de cultura, o conselho e o setor para pensarmos soluções para aquela cidade de como fazer e levantar o Sistema. Era muito legal. Nessas cidades menores, o prefeito ou a prefeita também ia. Iam os vereadores, participavam daquela imersão, pensavam a coisa juntos. Em algumas cidades, falavam assim: “Você não vai embora, vai ficar com a gente, vai ajudar a gente a implantar”. Mas agora eles terão dinheiro para fazer a Lei Paulo Gustavo. As cidades deveriam estar aproveitando para fazer as conferências com este dinheiro, para fazer tudo junto. Eu acho que foi uma “comida de bola” do Ministério da Cultura não ter articulado tudo isso junto. Espero que, na Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, isso seja mais falado. Acho que a Política Aldir Blanc tem que continuar impulsionando o Sistema.

Sharine: A Lei dura cinco anos. Depois disso, precisará ter alguma continuidade.

Inti: Temos que escrever o Plano Nacional de Cultura. Muitas cidades terão que escrever seus planos pela primeira vez. Não escreveram ainda. É um documento difícil de se fazer, até porque precisa ser pensada a política cultural. Nosso SUS [Sistema Único de Saúde] da Cultura ainda é muito abstrato. Mas, quando falamos “é o SUS da Cultura”, muita gente fala “entendi!”. Mas como vai funcionar?

Sharine: A lógica da rede é a mesma, não é? Com algumas diferenças, é claro.

Inti: Você tem um conselho, tem a questão do plano… É diferente. Mas você tem as conferências de saúde também. A maior parte do povo brasileiro não entende a estrutura do poder público e da cidadania. Ninguém aprende na escola que existe o Conselho Nacional de Saúde, que existem conferências. No novo itinerário do ensino médio, poderiam ensinar isso.

Sharine: Com certeza. Tenho mais algumas perguntas. Você falou bastante do Sistema Nacional de Cultura. Eu tenho uma pergunta para saber se essas leis fortalecem o Sistema, como foi pensado originalmente, ou se alteram um pouco a concepção original. Sei que já falou um pouco, mas se quiser reforçar…

Inti: Eu acho que fortalece, que faz o Sistema andar. O Sistema não tem um gatilho real para fazê-lo andar. E uma das coisas é o dinheiro. Ele só vai andar quando houver dinheiro, quando houver condicionantes. Eu acho que o fato de termos colocado o Sistema como obrigatório dentro da Lei Paulo Gustavo, no Parágrafo Único do Artigo 1º, no Artigo 4º e no Artigo 10º da Regulamentação. Também está no termo de adesão. O fato de termos batido nessa tecla um milhão de vezes foi uma coisa que veio muito dos movimentos culturais. E agora vamos continuar fazendo isso na Lei Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. Entendemos que o único jeito de fazer o sistema ser implantado é por essas leis, neste momento. Não há dinheiro para o Sistema. O Fundo Nacional de Cultura ainda não tem esse dinheiro. Então, fortalece sim e é a oportunidade. É a nossa chance. Não sou só eu que penso isso. Muita gente já entendeu.

Sharine: Em minha pesquisa, eu falo um pouco sobre isso. Grande parte dos artistas hoje vive de projetos contemplados por mecanismos de fomento. Mas sabemos que isso não resolve a precariedade do setor. Muitos têm dinheiro hoje para fazer um projeto, mas amanhã não têm. Conheço artistas que estão morrendo sem ter recursos de aposentadoria, sem ter um recurso financeiro. Como você acha que as políticas públicas podem melhorar essas condições, para além de ser um apoio para os projetos.

Inti: É uma das coisas sobre o que precisaremos conversar nesta Conferência e na construção do novo Plano Nacional de Cultura. Precisaremos rever algumas metas radicalmente. Em minha tese de doutorado, eu puxo algumas. Começo a pensar sobre algumas. Como resolvemos? Por exemplo, uma das metas é a questão do trabalho na cultura. A meta do trabalho na cultura é péssima. Ela só faz projeção quantitativa e não qualitativa em termos de trabalho na cultura. Enquanto não entendermos que o Plano Nacional de Cultura não pode ser pensado somente quantitativamente, mas qualitativamente, não vamos melhorar a própria legislação da cultura, principalmente em termos de trabalho, de renda, de organização, até mesmo em termos de reconhecimento do setor como um setor de trabalho. Aprovamos agora a primeira lei que escrevi inteira. É pequenininha, mas é a lei que celebra o Dia Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Cultura. O Artigo 2º da Lei coloca como um compromisso para o poder público nacional, dos estados e municípios uma série de atividades para que a cultura seja reconhecida como um setor profissional, para gerar dados estatísticos sobre o trabalho na cultura, entre outros pontos. A maioria das pessoas que trabalha com cultura não se reconhece como trabalhadores da cultura. “Ah, eu sou artista”. Tem muito aquele papo: “eu sou artista, não sou trabalhador da cultura”. Isso é uma das coisas que conseguimos ao longo dos anos. Essa discussão começou aqui, na ocupação da Funarte. A galera escrevia: “nós, artistas e trabalhadores da cultura”. Falávamos: “como assim? Artista também é trabalhador da cultura”. “Ah, mas estamos em outro patamar”. O papo era esse. Hoje já conseguimos passar… Pelo menos dentro dos movimentos, das lutas, não paramos mais por vinte horas para discutir sobre isso. Já aconteceu uma discussão de vinte horas sobre isso…

Sharine: É uma ideia ainda meio romântica?

Inti: Não, é uma ideia elitizada: o artista é mais importante que o produtor, que o técnico… Tivemos que convencer as pessoas que não… “Meu querido, sem o produtor e o técnico, você não faz”.

Sharine: Mas os artistas também estão nesse trabalho precarizado…

Inti: Justamente. Foi importante darmos essa consciência para que as pessoas entendam que estão todos no mesmo barco. Isso é cultural. No Brasil, muita gente pensa assim: “fulano é artista”. Ou é um “vagabundo fracassado”, principalmente perante a família, pessoas que trabalham com outras coisas. “Nossa, coitado”, não é? E também perante a sociedade como um todo, que não reconhece como profissão. Aquela coisa: “sou cantor”. “Mas você trabalha com que?” Acho que isso tem tudo a ver com essa precarização. A França está muito mais avançada, mas, ainda assim, não vou dizer que é perfeito. Temos outros países que estão bem mais avançados em termos não só de direitos trabalhistas, mas de direitos trabalhistas para a cultura. E também de programas, como, por exemplo, as políticas da intermitência e até reflexões sobre as quais temos que nos aprofundar, como a reflexão que o Célio Turino faz sobre o livro Macunaíma [Mário de Andrade]. Ele diz que o artista, no momento de ócio criativo, está trabalhando também e deveria ser remunerado. Ao mesmo tempo que você tem um Plano Safra de R$ 340 bilhões, não podemos achar que R$ 10 bilhões para o Ministério da Cultura é muito dinheiro. Não é. A agricultura está ganhando R$ 300 ou R$ 400 bilhões só no Plano Safra, fora o resto. A cultura está com R$ 10 bilhões. Continuamos sendo o primo pobre. Sem uma política trabalhista que nos agregue… Você vê que cada categoria caminha sozinha. Eu lembro que, quando teve a discussão sobre a ADPF Profissão Artista [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 293], chamaram o pessoal da música para construir junto. Nós não fomos porque a legislação é diferente. Essa ADPF da Profissão Artista atrapalhava a nossa ADPF contra a obrigação da anuidade da Ordem dos Músicos, que é uma entidade que sempre serviu para castrar o setor musical. Nunca ajudou o setor musical. Eu tive que conversar com as lideranças do setor do teatro e falar: “gente, pelo amor de Deus!”. Precisamos sentar e conversar. “Vocês chamaram o ‘cara’ da OMB para representar a música. Vocês estão loucos?” Acabamos aprovando o ADPF da música. Derrubamos a anuidade da OMB e estamos tentando fazer outras construções. Mas precisa do diálogo entre as linguagens para pensarmos melhor nas regras tanto de trabalho quanto de distribuição dos recursos. A pessoa fala: “e São Paulo”? Hoje estava um debate do grupo da 4ª Conferência. “Gente, fala-se que São Paulo é uma cidade rica, é um estado rico”. Mas aqui é a cidade do Brasil onde há mais trabalhadores da cultura passando fome.

Sharine: Eu não tinha essa estatística…

Inti: Aqui há milhares de pessoas… Tem muita gente se dando bem. Mas, ganhando muita grana mesmo, é uma meia dúzia. Você tem as “quebradas”, com uma produção cultural gigantesca. Hoje melhorou porque temos o fomento. Há muitas pessoas das periferias. A galera se ajudando para todo mundo aprender a escrever projetos para o VAI [Programa de Valorização de Iniciativas Culturais]. Isso é uma coisa muito coletiva que, aqui em São Paulo, aprendemos a fazer bem e muito no Ocupa MinC. Foi aqui que nasceu essa coisa de “vamos ajudar todo mundo”. Se pensarmos em termos de número, há três mil grupos de teatro na cidade de São Paulo. Isso no cadastro básico, fora aqueles que são mais amadores. Grupos de música, festivais de música incontáveis. Artistas e outras coisas também. Dentro desses 12 milhões de habitantes, há gente que só vive de cultura. Mas há fazedor de cultura que também é bancário, advogado, é faxineiro porque não consegue viver 100% da sua arte.

Sharine: Tenho mais duas perguntas. Como você acha que é possível envolver parcelas maiores da sociedade nessas políticas públicas, pensando não somente nos trabalhadores da cultura, mas também nos públicos. Vimos, por exemplo, a repercussão da Lei Rouanet[9]. Havia pessoas que eram contra, às vezes sem nem entender. Como podemos trabalhar as políticas públicas para formação de público, mediação?

Inti: Eu acho que muita gente, até mesmo da cultura, não conhece e não entende a Lei Rouanet e não entende a importância que ela teve ao longo desses 32 anos para profissionalizar o setor. Eu tenho várias questões em relação à Lei Rouanet. Mas acho que não podemos não reconhecer isso. A formação de público e essa formação em relação à importância da cultura na construção da cidadania são também um trabalho do setor. O Paulo Gustavo mereceu dar o nome a essa lei porque ele fazia questão de falar disso em seus espetáculos e em suas falas, sobre a importância do trabalho na cultura. Mais do que qualquer coisa, isso ressoa muito a fala dele. Quem dera todo mundo fizesse isso! Infelizmente, há um receio de os trabalhadores da cultura falarem de seu trabalho de uma forma mais política, neste sentido: sobre a importância do setor. Precisamos ensinar como fazer a crítica. Eu acho que a cultura tem esse papel educativo. Passamos por um período de extremos, construído sabe-se lá como, com dinheiro de fora ou o que seja, tanto que não aconteceu somente no Brasil. Vamos demorar muitos anos para sair desse buraco. Mas as pessoas não são tão burras assim. A cultura, nesse momento, não pode perder a oportunidade. Vai entrar esse dinheiro pela primeira vez. É muito dinheiro. Claro que temos que tomar cuidado, fazer com que esse dinheiro seja distribuído da maneira mais transparente, que realmente chegue às pessoas que estão precisando, e não a grandes produtores. Já sabemos que os grandes produtores conseguem dinheiro de outras formas. Acho que todo mundo deve virar um fiscal e um militante da Paulo Gustavo para que dê certo, e para que dê certo para a cultura. Não é para que dê certo para o PT [Partido dos Trabalhadores], para o Lula, não. Para a cultura. Consequentemente, é claro, vai ser bom para o governo. Mas o mais importante é que seja bom para a cultura. Eu acho que a formação de público está muito difícil porque estamos perdendo a juventude. Eu vejo pela minha filha. Ela fala para mim: “mãe, eu adoraria ir a shows, a peças de teatro, mas meus amigos só vão a bar”. Estamos perdendo para os games, para o streaming e para o bar. Quando a juventude sai, está indo ao bar, não está indo ao show, à peça de teatro. Isso é coisa de velho. Precisamos entender como vamos retomar, como vamos dialogar com a juventude para essa formação de público, de uma juventude que foi criada dentro de casa. A próxima geração, essa geração que agora está com 18 anos, perdeu três anos. Como as linguagens culturais, principalmente as linguagens menos acessíveis, como, por exemplo a dança e o teatro… Eu falo isso porque a música é mais acessível. Mas a dança e o teatro não podem ficar fechados em si mesmos. Por exemplo: “eu produzo para o meu grupo laboratório”. Eu vejo muito isso. No teatro é menos. Mas, na dança, eu vejo bastante essa ideia de que o trabalho é muito do “eu”.

Sharine: Sabemos que a quantidade de público não é o que mais importa. Mas tem que ter plateia…

Inti: Por que seu espetáculo está sempre vazio? Um: porque você não divulgou direito. Outra: porque você não forma público. Temos que pensar bastante nisso. Cada vez mais, perderemos mais público. As próximas gerações não estão interessadas…

Sharine: Até para não haver ataques à cultura, porque as pessoas atacam aquilo que elas não conhecem.

Inti: Não só… Se o tema da 4ª Conferência Nacional de Cultura é “democracia”, temos que falar sobre formação de público. A cultura não é para ela. Não adianta fazer um espetáculo que só os amigos que também trabalham com cultura vão ver. Senão, ficaremos nessa bolha eterna, sendo atacados e elegendo figuras autoritárias bizarras, que odeiam a cultura e que xingam a Lei Rouanet.

Sharine: Idealmente, para terminarmos, como você imagina que deva ser uma política cultural para o Brasil?

Inti: Acredito muito que se, realmente, tivermos formação, tivermos informação, formação e informação, podemos construir, por exemplo, um novo Plano Nacional de Cultura, com vários mecanismos e programas e estruturas para o futuro. Acho que o caminho é bom. Precisamos desburocratizar um pouco tudo isso. Precisamos de mais formação e de menos espetáculos, menos eventos para lançar o decreto tal… Não interessa. As pessoas não sabem, não estão entendendo o que está acontecendo porque não há formação sobre o Sistema Nacional de Cultura. As pessoas estão interessadíssimas. Mas só está rolando live para ficar “aquela puxação de saco”. Desculpa falar, mas é o que todo mundo está comentando… Essas lives em teatros para lançar o Decreto… Ninguém quer ver. Tudo bem, é bonito. Vai lá o grupo de teatro não sei de onde. É bonito. Mas não adianta fazer isso se não tem a formação. Se tiver a formação, acho que terá uma força-tarefa linda para implantar essa política nacional de cultura, nosso SUS da cultura e, dentro disso, nosso Cultura Viva de verdade, como tem que ser, os outros programas, fazermos a Funarte ser espaço que dialoga não só com o entorno, mas com todo o Sudeste. Acho que é o único jeito. Quem faz cultura, os movimentos culturais estão dispostos a fazer isso. Mas o MinC precisa ajudar. Acho que agora é uma tarefa do Ministério da Cultura dar informação e formação. É o que aquela gestora falou: “não adianta só me darem esses documentos. Eu não sei o que fazer com isso. Ninguém está me explicando o que eu tenho que fazer com isso”. Eu sou daquelas professoras que fazem o workshop e vão explicando… É isso que tem que acontecer. Tem que começar, do bê-a-bá, a explicar o que é o Sistema Nacional de Cultura, como são as partes do Sistema, para que serve tal coisa, o que é participação social… O que está parecendo é que todo mundo já sabe tudo. Mas não sabe. A maior parte das cidades e do setor não sabe, nunca participou de uma conferência. Renovou. Muita gente que participou da primeira, da segunda e da terceira nem está na luta, já se aposentou da luta. Ainda tem gente… Mas entrou muita gente nova, que está sedenta por informação e que não vai ter voz qualificada se não tiver formação. Eu falo isso porque realizamos a Conferência Livre dos Trabalhadores da Cultura da Cidade de São Paulo em 2021 (nós demos formação, mas nem todo mundo ficou sabendo ou nem todo mundo entendeu que tinha que participar). Tivemos muitos problemas porque as pessoas não entendiam o básico, como, por exemplo, a diferença entre orçamento, fomento e fundo. Tivemos muita dificuldade com isso, teve muita briga. É tudo coisa básica. Eu acredito que estamos no caminho certo, mas o MinC precisa dar atenção para a formação, senão vamos continuar excluindo gente e a coisa vai demorar para andar, não vai andar como gostaríamos. Vamos gastar mais dinheiro. Eu acho esse espaço muito importante. Vimos isso no Ocupa MinC. Foi a prova de que conseguimos. Quando tivemos o Ocupa MinC, fizemos várias oficinas aqui. Isso é muito legal. As pessoas realmente vinham e lotava. As pessoas se interessavam. Agora se espera que a gente faça isso não sendo um momento de golpe, sendo um momento de construção em conjunto.

Sharine: Uma política de estado, que ultrapasse vários governos, como é o SUS.

Inti: Imagine fazer uma live sobre a Lei Paulo Gustavo ou uma live sobre o Sistema em que a gente dê uma boa aula sobre o tema. Fica só entrando fulano, ciclano, comentando: “Ah, que legal te ver!” Não é isso, isso não é formação. Eu sou aquelas professoras… Você também é “nerd” como eu. Gostamos das coisas certas, bem-feitas, de dados, explicando coisa por coisa. O que eu puder ajudar… Já falei com o povo do MinC, com vários amigos lá: “queremos ajudar vocês. Não estamos pedindo cargo. Queremos ajudar vocês, nos usem”. Estamos à disposição. Já fazemos mesmo de graça, faz tempo.

Sharine: Obrigada!

 

 

 

[1] Movimento criado durante a pandemia de COVID-19 para ajudar profissionais da área técnica prejudicados pelo fechamento dos espaços culturais.

[2] Ocupação dos espaços do Ministério da Cultura e de suas vinculadas em 2016, quando o governo de Michel Temer transformou a pasta em uma Secretaria. O processo foi revertido após as manifestações. Uma das maiores ocupações foi realizada no Complexo Cultural Funarte SP, local onde foi gravada esta entrevista.

[3] Disputou as eleições municipais para a Prefeitura da cidade de São Paulo em 2016, perdendo para João Dória.

[4] Prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016.

[5] Ministra da Cultura entre 2011 e 2012.

[6] Atuaram na formulação da Lei Aldir Blanc.

[7] Presidente do Brasil entre 2019 e 2022.

[8] Entre 2019 e 2022, o Ministério da Cultura foi reduzido a uma Secretaria em um primeiro momento vinculada ao Ministério da Cidadania e, em seguida, ao Ministério do Turismo.

[9] Refere-se a uma série de conteúdos, compartilhados nas redes sociais entre 2019 e 2020, com severas críticas à Lei Rouanet sem que houvesse embasamento teórico ou dados comprobatórios.

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