Canclini na Cátedra
Entrevista com Álvaro Santi. Realizada presencialmente, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (RJ), no dia 19 de outubro de 2023
Sharine: Obrigada, Álvaro, pela sua disponibilidade para a entrevista. Estou trabalhando com as duas Leis Aldir Blanc e com a Paulo Gustavo. Comecei pesquisando quais foram os anseios dos artistas e dos outros profissionais da cultura que participaram da mobilização pela primeira versão da Lei Aldir Blanc. Agora, nessa continuação, estou tentando entender o que vai ficar dessas mobilizações para as políticas culturais do Brasil. Estou conversando com várias pessoas, de diferentes lugares do Brasil e, também, de diferentes instituições: membros do Estado, artistas, pessoas que participaram da mobilização, que foram contempladas. Podemos começar, então, com você falando um pouco da sua trajetória na gestão cultural. Você teve uma relação com a Aldir Blanc, certo? Poderia contar um pouco…
Álvaro: Eu me aposentei agora como funcionário da Secretaria de Cultura de Porto Alegre [RS], onde trabalhei por 26 anos. Quando aconteceu a pandemia, faltavam poucos anos para eu me aposentar. Eu me aposentei no início deste ano. Eu era um dos funcionários com mais experiência. Passamos por um esvaziamento da estrutura. Eu fui técnico de cultura. Teve um único concurso para o cargo de nível superior. Eram mais de vinte servidores nesse cargo. Mas isso aconteceu em 1996 e, depois, não teve outro concurso. As pessoas foram se aposentando. Então, a secretaria tem alguns terceirizados, estagiários e essas últimas pessoas que “sobreviveram”. Acabamos sendo, um pouco, referência. Ajudei um pouco nessa execução da Lei Aldir Blanc. Mas foi um trabalho de equipe muito pesado, inclusive pela falta de pessoal e pelo curto prazo. Tivemos que executar um volume de recursos que era maior do que a Secretaria tinha executado em todo aquele mandato. Tivemos que executar em seis meses. Foi exatamente o mandato que mais enxugou os recursos da cultura na prefeitura, o do Nelson Marchezan. Foi esse mandato entre 2017 e 2020. Foi bem difícil. Eu participei ativamente disso. Logo em seguida, voltamos ao trabalho presencial. Passei a trabalhar em outro setor. Antes disso, eu fiz outras coisas na Secretaria. Uma delas foi o Observatório da Cultura, que eu fundei e dirigi durante cerca de dez anos. Foi criado em 2010 e funcionou até 2018. Eu trabalhava um pouco com pesquisa. Foi uma das coisas que me trouxe aqui também [refere-se ao Seminário Internacional de Políticas Culturais, realizado em outubro de 2023 na Fundação Casa de Rio Barbosa, no Rio de Janeiro]: políticas públicas em geral e a parte de conselhos de cultura também. Eu escrevi sobre fundos, fomento. Pesquisei um pouco sobre várias coisas assim. O que mais? Fiz parte do CNPC [Conselho Nacional de Política Cultural], na primeira gestão do conselho, na instalação, até 2010. Aí eu saí. Fui lá representando a área de música. Depois, fui conselheiro de cultura municipal, pelo governo. Agora sou, desde o ano passado, conselheiro estadual de cultura, pela sociedade civil.
Sharine: Você continua, então, como conselheiro.
Álvaro: Sim, o mandato é de dois anos. Saí do município e fui para o Conselho Estadual, que era o único conselho do qual não tinha participado ainda. Durante um ano, fiquei como secretário. Fiquei na diretoria do Conselho. Em relação à Lei Paulo Gustavo, por exemplo… A presidente do conselho do qual fui secretário (nosso mandato na diretoria acabou agora, no semestre passado) chama-se Consuelo Vallandro. Ela é da área do circo. Desde o início da articulação da Lei Paulo Gustavo, ela participou dos grupos nacionais de articulação. Ela acompanha muito a estratégia. Como, nessa diretoria, eu estava muito ocupado com a questão documental, de secretariar mesmo o Conselho, foi um trabalho muito acima do que eu imaginava, ela ficou participando de grupos de trabalho, de comissões sobre isso. Eu realmente não me envolvi. Eu li, participei de algumas reuniões de comissão e tal. Mas não me detive na Lei Paulo Gustavo. Também temos questões do Fundo Municipal de Cultura, que eu gerenciei por algum tempo. Ele também foi desmontado. Foi feito um uso todo distorcido dele. O governo está usando para fins da própria gestão quando ele é feito para projetos da sociedade.
Sharine: Para fins culturais, só que do governo… Não para outras áreas.
Álvaro: Isso, só que o governo não tem recurso orçamentário próprio. Está reduzido. Eles tentam resolver isso, usando emendas parlamentares quando, na verdade, até há um outro fundo, próprio para políticas do governo. Chama-se Funcultura. Já o FUMPROARTE [Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural] é um dos primeiros fundos para projetos. É para projetos, para a sociedade. Só que o governo está usando e dizendo: “agora voltou o FUMPROARTE”. Passaram-se anos, nessa gestão, sem nada. Agora disseram: “Vamos reativar o FUMPROARTE, mas vai ser para projetos de carnaval, para o desfile oficial do carnaval”. É um evento oficial da prefeitura, não é um projeto da sociedade. Então, estão direcionando para esse tipo de coisa. Estou envolvido com essa discussão também porque tenho conhecimento do histórico.
Sharine: Qual a orientação política?
Álvaro: Estamos ainda no governo de Eduardo Leite, do Estado. É o governo que derrotou o Onyx Lorenzoni, que era o candidato bolsonarista. Derrotou graças à terceira força, que foi o PT [Partido dos Trabalhadores]. Mas é um adversário da esquerda. Ele tem que flertar com parte do eleitorado conservador. Ele é do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. Ele tem que se manter nesse equilíbrio para manter sua maioria. Mas, no segundo turno da eleição anterior, ele manifestou apoio ao Bolsonaro de forma tímida. Ele sabia que precisava fazer isso para ser eleito. De fato, ele se elegeu e se reelegeu agora. Nunca havia sido reeleito um governador do Estado no Rio Grande do Sul.
Sharine: E a prefeitura?
Álvaro: A prefeitura também. Quem venceu é do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro]. O vice dele [Ricardo Gomes] é um ultraliberal. Ele realmente é bastante antipetista. O Sebastião Melo venceu a Manuela d’Ávila no segundo turno. Ele é das forças de direita, conservadoras, antipetistas. Mas foi uma eleição bem disputada.
Sharine: A Paulo Gustavo e a Aldir Blanc tiveram planos aprovados no Rio Grande do Sul. A que você atribui isso? Foi pressão popular, foi interesse?
Álvaro: Não sei… Posso falar da Aldir Blanc no plano municipal, da capital. O que aconteceu? Tinha uma determinação muito pessoal do secretário. O secretário era um artista, na gestão anterior, na gestão do Nelson Marchezan. O Nelson Marchezan era um cara liberal. Ele queria colocar todos os equipamentos de cultura em O.S. [Organização Social]. Mas o pessoal nem sabia o que era isso. Ele tentou e economizou. Realmente contingenciou o dinheiro da cultura. Mas, como eram recursos que vêm de fora, então, ele dizia: “ótimo, dinheiro nós queremos”. Não ia dizer assim: “não quero dinheiro que vem de fora…” “O que precisa? Então, vamos cumprir as regras burocráticas para receber o dinheiro. Vou dispensar um dinheiro? Todo mundo vai receber e eu não? Inclusive vem a suprir o dinheiro que vamos economizar do nosso orçamento”. Foi isso. No contexto interno da Secretaria, havia a determinação do Secretário, que é um produtor cultural muito experiente. Muitos o criticam porque ele fez toda a carreira dirigindo o Festival Porto Alegre em Cena, que foi criado na gestão do PT. É um festival internacional de artes cênicas que era bancado pelo poder público, pelo orçamento direto, desde o início. Ele era o coordenador. Luciano Alabarse. Depois, o PT saiu e ele continuou. Ficou amigo dos prefeitos que sucederam a gestão. O que ele quer é fazer o trabalho dele. Claro, a esquerda o criticou e tal. Mas ele estava ali. Alguns críticos diziam que ele estava ali, em um serviço para se manter no cargo… Ele dizia que, se ele não estivesse ali, a Secretaria fecharia. Era a missão dele. Mas o fato é que ele conseguiu coordenar essa equipe, com dificuldade, em um sistema de pandemia, com reuniões virtuais, cobrando muito para que as coisas funcionassem. Não sei se fosse outra pessoa… Por um compromisso dele de artista mesmo, pessoal. Não era um burocrata, um cara da gestão que estava lá. Ele tinha esse compromisso. E várias pessoas, claro, na equipe, tinham essa compreensão. Conseguimos. Acho que fomos os primeiros que tiveram planos enviados. Recebemos o recurso no primeiro ou no segundo lote. Claro, houve muito problema na execução, na prestação de contas. Mas envolveu toda a secretaria para executar isso. Foram muitos processos de Inciso II [refere-se ao Inciso II do Artigo 2º da Lei Aldir Blanc: “subsídio mensal para manutenção de espaços artístico…”], aquela coisa de prestação de contas. Eu fiz as planilhas, os formulários no Google. Agora estávamos conversando sobre o que aconteceu com aqueles dados. Os dados devem estar no Google. Parece que, na Lei Paulo Gustavo, o pessoal vai se inscrever de novo e aquilo está lá.
Sharine: Vocês não têm nenhum sistema de cadastro, então?
Álvaro: Não… Foi feito emergencialmente… Existe até uma empresa de processamento de dados lá, que é da prefeitura. Mas não teria agilidade para criar esse cadastro. Então, tudo foi feito assim e em vários outros editais também. Teve uma lei emergencial que foi feita também na esteira da Lei Aldir Blanc, com recursos municipais. Foram editais para premiação de trajetórias, currículos, de certa forma, para complementar. Então, havia esses cadastros do Inciso II. Eu ficava noites a fio lá, organizando as planilhas. Foi um trabalho bem cansativo. Depois veio a execução. Na execução, eu já estava trabalhando com outra coisa, passou a tempestade. Eu dava um parecer que tinha que dizer que a contrapartida estava cumprida, um parecer técnico dizendo que havia sido cumprida a questão do inciso II e, eventualmente, algum gasto que tínhamos que dizer se era relacionado com a finalidade cultural do projeto. O pessoal do setor, de vez em quando, tinha dúvidas se podia tal coisa, se tinha a ver ou não tinha. Mas foram coisas mais eventuais, na parte depois do pagamento. O negócio todo era passar a “grana” para as pessoas, para não perder a “grana”. Eu sei que foi um trabalho.
Sharine: E a prestação de contas de vocês, como está?
Álvaro: Essa parte eu não sei, não acompanhei. Ficou com o pessoal a prestação de contas do projeto. Tinha um grupo operacional lá e havia um coordenador e uma coordenadora, que cuidavam disso. Tem a plataforma Mais Brasil. É isso?
Sharine: Agora passou a ser Transfere.gov.
Álvaro: Isso. Na verdade, só há uma pessoa ou duas lá que sabem mexer naquilo. É até uma terceirizada, não é servidora de carreira. Se ela sair, ninguém mais sabe mexer naquilo. Então, realmente não sei como ficou isso.
Sharine: E o Sistema Nacional de Cultura, como está lá? Você acha que a Aldir Blanc, de alguma forma, contribuiu ou não?
Álvaro: Digamos que é uma experiência válida. O Sistema só existe se houver recursos para transferir. Senão, não tem… “Vamos fazer um teste, então. Vamos fazer uma transferência de recursos. Vai de qualquer jeito porque é uma situação emergencial. Então, vamos ter que fazer”. Mas o Sistema não é só isso. O Sistema precisa ter Conselho, Plano e Fundo. É mais complicado. E precisa ter uma regularidade. Não é um negócio que vem assim em espasmos. O que eu falei? Posso falar de Porto Alegre e posso falar alguma coisa do Estado. No município, temos essa situação com o FUMPROARTE, que já vem de dez anos atrás. Era um fundo pioneiro, que foi modelo. Até na Assembleia do Rio, aqui, foi aprovado um modelo que era baseado em nosso Fundo. Foi fundado em 1993. Fez trinta anos neste mês, agora. Durante mais de vinte anos, ele funcionou ininterruptamente com editais semestrais. Chegava a ter, há dez anos, dois milhões de reais em um ano. Se fizéssemos uma conversão, seria uma “grana” para o município. Quer dizer, em média, chegava a financiar quarenta projetos, até cinquenta projetos por ano, só com esse fundo. Isso até 2016. Em 2017, quando entrou o Marchezan, parou. Foi um baque grande. Não teve muita mobilização dos artistas para reverter isso. É um recurso relativamente alto: chegou a ser de 0,1% do orçamento da prefeitura. Seria, hoje, de dez milhões de reais. É o percentual médio do período áureo: dez milhões por ano. O Conselho de Cultura de Porto Alegre é um conselho que não tem gestão…
Sharine: O conselho lá é paritário?
Álvaro: Eu escrevi até um artigo sobre o Conselho. É uma proposta de reformulação do Conselho, porque ele é “super-paritário”, tem 86% de sociedade civil. Mas, na prática, isso dificulta que ele tenha quórum para funcionar. É um tiro pela culatra. O Plano Municipal de Cultura foi aprovado. Quando estava no Observatório, eu participei da elaboração do Plano em conjunto com o Conselho, em um período em que o Conselho estava muito ativo. Havia muita disputa política também, mas funcionava. Foi em 2015. Foi aprovada a lei. Mas é aquela lei meio genérica, que tem muita coisa. Fizemos um plano de metas, que é um trabalho técnico. Estávamos conversando com o Conselho. Temos um plano de metas, mas nunca foi implementado. Na época, a proposta de metas não fazia parte da lei. Seria elaborada por meio de um decreto. A Câmara quis que passasse por ela. Isso é um ponto complicador. O secretário que renunciou no ano passado, o secretário do governo Melo que ficou nos dois primeiros anos [Gunter Axt] foi o último secretário com quem trabalhei. Eu apresentei para ele a proposta de metas. Eram 26 metas.
Sharine: Você está falando do governo municipal…
Álvaro: Isso, municipal. Ele quis saber como era o plano. Eu disse: “Secretário, está aqui”. Era um caderno de cinquenta páginas com 26 metas. Ele disse: “É muita coisa… Olha, temos que trabalhar com quatro ou cinco, no máximo.” Eu acho que isso é um retrato da situação. No estado, temos um fundo [Fundo de Apoio à Cultura – FAC] que tem recursos porque é vinculado com a Lei de Incentivo. Na renúncia fiscal, a pessoa tem que depositar uns 10% do valor no fundo. Então, mesmo sem ter recursos orçamentários, conseguimos fazer alguns editais por ano. Estamos em uma grande discussão agora. O Conselho funciona razoavelmente bem. Mas também tem umas dificuldades administrativas, de autonomia. Agora o Conselho fez umas mudanças. O Conselho julga os projetos de incentivo, o que é uma coisa meio complicada. Ele acaba fazendo só isso e não tem muito tempo para se preocupar com outras demandas. Agora o governador resolveu tirar isso. Ele mandou um projeto de lei, na semana passada, para a Assembleia, para tirar essa atribuição de julgar projetos.
Sharine: Não faz mesmo muito sentido, não é? Acho que, para julgar projeto, é preciso ter uma comissão.
Álvaro: Nós até propusemos isso quando assumimos a diretiva. Propusemos contratar pareceristas. É um conselho muito representativo da sociedade. Está meio desigual, mas tem pessoas de todas as regiões. Houve um grande aumento da demanda depois da pandemia. Chegou a uma situação em que 10% dos projetos estavam sendo aprovados. O recurso também não aumentou do ano passado para este. Nós julgamos, até dentro da própria lei, que estabelece a repartição regional equilibrada no estado. Acabamos preterindo alguns projetos importantes, tradicionais. Virou uma grande polêmica. Era responsabilidade do Conselho, mas respingou na secretária de cultura e no governador também. Então, as pessoas foram bater: “o festival de Gramado não recebeu autorização para captar pela lei de incentivo do estado”. “Nossa, é o fim do mundo! Gramado vai acabar!”. Foram bater na porta do governador: “governador, tem que fazer alguma coisa”. O que o governador fez? Mandou esse projeto agora em regime de urgência para mudar isso para o ano que vem. Isso é um conflito. É uma discussão boa para mais um artigo. Aliás, esse é o artigo que eu apresentei aqui, sobre a questão dos critérios de avaliação. Esses critérios, mal ou bem, estavam sendo aplicados, não é? Ainda vemos que as pessoas não têm muito apreço pela democracia na área cultural. Elas querem que o projeto delas seja aprovado. No momento que o projeto delas não foi aprovado, elas falam que foi uma injustiça. Elas nem se preocupam em saber quais são os outros projetos que foram aprovados… A feira do livro lá da outra cidade recebeu. A de Porto Alegre não recebeu… Sei lá, na trigésima edição da feira do livro de uma cidade da região metropolitana. Nessa eu fui… Mas as pessoas falam: “estão aprovando projetos sem mérito cultural nenhum, enquanto nosso grande evento…” “Mas você conhece esse projeto? Não sabe nem que projeto foi aprovado”. Isso é muito preocupante.
Sharine: Como é? Não é como a Lei Rouanet, não é?
Álvaro: É em fluxo contínuo. Houve algumas modificações esse ano. Eles passaram a fazer lotes mensais com resultado no final do mês seguinte.
Sharine: Entendi.
Álvaro: Não podíamos mudar o critério de avaliação no meio do processo. Fizemos uma discussão, mas, por falta de tempo, as alterações não se concluíram. Até pretendíamos retomar isso agora. Vamos ver como vai ficar essa questão. Plano, fundo… O Plano Estadual de Cultura é uma lei também genérica. Mas não tem metas. Não chegaram a criar metas. Então, não tem muita aplicabilidade. Eu estava assistindo agora a última apresentação dessa mesa. Talvez te interesse. É uma pesquisadora que fez uma comparação de leis emergenciais na Inglaterra e na Argentina. Ela trabalhou com grupos focais…
Sharine: Que bacana. Eu estava na outra sala…
Álvaro: É bem interessante. Fiquei curioso por ler esse artigo dela com as sugestões e as críticas dos artistas sobre a precarização do trabalho. Eu estava assistindo e estava pensando. É uma coisa que eu pensava um pouco quando saiu a Lei Aldir Blanc: “por que os artistas têm que ter uma lei emergencial? Qual a diferença? Eles são trabalhadores especiais?” Teve um programa de auxílio a todos os trabalhadores. Os trabalhadores da cultura também não são trabalhadores? Não podem se enquadrar? Por que precisam ter um mecanismo especialmente para eles? É uma provocação. Eu não posso fazer essa pergunta em voz alta em uma assembleia de artistas. Vão me olhar: “o que esse cara está fazendo aqui?”. Eu sou artista de formação. Sou bacharel em música e sou escritor também. Mas sempre tenho o olhar da gestão pública no sentido da racionalização do recurso público. Então, a primeira coisa que pensei foi isso: “por que tem que ter uma coisa especial?” Isso não vai gerar, do ponto de vista da sociedade, um olhar para os músicos já com um certo rancor? “Por que estamos dando um dinheiro aqui para os músicos? Qual a diferença? Eu sou pipoqueiro. Eu também estou sofrendo porque não está tendo evento de rua. Sou um ambulante. Por que o músico, o artista de teatro vão ganhar um plus e eu não? Qual a diferença?” Pensando desse ponto de vista… Isso é engraçado… Eu trabalhei também muito tempo na organização… Ontem fui conversar com o presidente do Sindicato de Músicos aqui do Rio de Janeiro, que é um dos maiores do país. No início da gestão do Gilberto Gil, o Ministério provocou uma grande mobilização de músicos. Eu participei disso. Foi o que me levou ao CNPC, no fim. Então, conheço um pouco. Temos uma dificuldade até mesmo de os artistas se entenderem como trabalhadores, o que leva a ter uma baixa adesão aos sindicatos, pouca organização, um trabalho muito precário, que não foi resolvido pelo governo. Ficamos esperando que o governo fosse resolver isso. Faltava mesmo uma organização. Eu estava refletindo sobre isso para pensar: “essa é uma questão do auxílio”. Depois disso… Há uma outra reflexão que eu pensava também sobre o FUMPROARTE, de Porto Alegre. Se o FUMPROARTE não tivesse sido desativado, naquele momento, ele estaria servindo, as pessoas estariam recebendo aquele edital, haveria todo um mecanismo de funcionamento semestral. Uma boa parte dos artistas estaria contemplada. É um mecanismo regular e previsível. Eu acho que isso é muito importante. Essa é uma contribuição também para falar. Isso eu escrevi em um artigo sobre a FUMPROARTE: a previsibilidade. Quando você passa quinze anos tendo um edital todo semestre, você sabe que vai ser mais ou menos o mesmo valor, isso possibilita que se formem produtores culturais, que vão se especializando e vão fazendo projetos para trazer recursos de outras fontes também. Fizemos oficinas sobre projetos. Acabei indo estudar um pouco para dar essas oficinas. Isso é uma coisa que exige regularidade, o que não é o caso dessas situações de agora, como eu disse. Precisaria dizer: “bom, já testamos. Agora vamos pensar num plano de longo prazo, como vai ser, quanto, para que.” Tem toda a questão da pactuação também, das competências. O que cada município, cada estado deve fazer. O Guilherme Varella levantou essa questão na nossa mesa ontem.
Sharine: Você foi por um caminho que seria minha próxima pergunta. Esses editais, na minha opinião, não resolvem a precarização que vemos no trabalho artístico. É uma coisa muito pontual. Às vezes, acabam acirrando a concorrência. Tem o lado bom de ter recursos para os artistas trabalharem, mas tem também esse outro lado da precarização do trabalho, da concorrência. Como você imagina que poderíamos resolver isso?
Álvaro: Pois é, o edital não é a política pública. É um dos instrumentos possíveis. Não podemos nos ater ao edital. A disputa é inevitável. A disputa sempre acontece pelos recursos. Na minha própria experiência, mesmo no FUMPROARTE, isso acontecia. No FUMPROARTE tinha uma comissão que só faz isso, só faz avaliação de projetos. Ela tem representação social nos moldes de um conselho, com dois terços da sociedade e um terço do governo. Havia disputas e tentativas de equalizar: “bom, vamos aprovar X projetos de tal área e Y projetos de outra área para termos um equilíbrio nessa distribuição”. É claro que há a questão da precarização, no sentido de que é um estado emergencial: só vai ter um edital agora e não se sabe quando vai ter o outro, embora a Lei Aldir Blanc tenha, agora, continuidade.
Sharine: São cinco anos.
Álvaro: Eu não sei dizer, mas tem uma certa previsão de regularidade. Já ajuda. Também não sei detalhes da operacionalização, desse formato de editais. Uma coisa é, como fizemos na situação emergencial, prêmio de trajetórias. É um dinheiro que realmente é uma ajuda. Ou o auxílio mesmo, que era o Inciso I [refere-se ao Inciso I do Artigo 2º da Lei Aldir Blanc: “renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura”]. O Inciso I era um auxílio mesmo, nos moldes do auxílio emergencial da Caixa. Já o Inciso II era uma situação especial para os espaços que estavam fechados. Mas agora essa situação acabou. Então, isso não faz mais sentido. Agora os editais são para projetos. Isso já faz um tempinho. Fazemos a política pública para fazer a produção cultural para o público, para a sociedade consumir, não é só para manter o artista. Temos que pensar nisso. Mesmo durante a pandemia, muitos projetos tinham a contrapartida do Inciso II. Uma parte disso também gerou produtos. A precarização realmente está dentro de um contexto maior, da “uberização” de toda a sociedade. Não dá para esperarmos que um setor… Há exceções. O audiovisual tem mais trabalhos formais, por exemplo. Mas um setor que já tinha um grande nível de informalidade, com a onda da “uberização”, vai resistir? Não, vai piorar. Estávamos nessa conversa ontem com o presidente do Sindicato. Estamos falando de um movimento que começou lá em 2004, faz quase vinte anos. Começou aqui no Rio, em São Paulo, quando o Gil assumiu. Ele também é músico, conhece bem. Então, quis dar uma ajuda. Eles se espalharam, fizeram uma caravana, foram falar para músicos de outros estados. Nós reunimos muita gente no Rio Grande do Sul para discutir. Como eu trabalhava na área de música da Secretaria, naquela época, eu comecei a pesquisar, participar das reuniões, ouvir as pessoas. De lá para cá, não tivemos uma melhoria. Não tivemos especificamente no setor de música, que eu conheço. Há uma Ordem dos Músicos, que teve uma intervenção da ditadura e, desde então, é uma máquina de arrecadar dinheiro, que não fazia nada por nós. Continua assim. Os “caras” morreram, entraram outros. Continua igual. O que se conseguiu fazer é que as pessoas trabalham sem se filiar ao órgão. Mas isso melhorou a situação delas? Não. Elas continuam na informalidade, a grande maioria. É bem difícil tentar convencer. É preciso mobilizar e tentar uma federação ou algo assim. Não dá para ficar esperando que o Ministério da Cultura vá resolver isso. É bem difícil.
Sharine: Para terminar, vou juntar duas perguntas em uma. Como você acha que podemos envolver parcelas maiores da sociedade nessas questões culturais para evitarmos algumas coisas que vimos recentemente, como, por exemplo, as críticas à Lei Rouanet por pessoas que não sabiam direito o que era. São pessoas que estão consumindo cultura às vezes sem ter muita noção do que é uma política cultural. Para terminar: como você imagina, idealmente, que deveriam ser as políticas culturais no Brasil? Acho que as duas perguntas são relacionadas.
Álvaro: É bem difícil. Eu acho que essa questão de fake news… Não tem muito o que fazer sobre isso. É diferente de qualquer outro assunto. Há os especialistas na guerra entre Israel e Palestina, agora, nesta semana, que estão se manifestando. Eu, inclusive, estou dando palpite. Claro, tem que ter uma estratégia de comunicação para envolver, para a sociedade entender, mas no sentido dessa comunicação que eu fiz sobre o processo que está acontecendo no Conselho Estadual de Cultura em relação aos projetos culturais do incentivo fiscal do Rio Grande do Sul. Eu fiquei – não digo chocado -, mas constatei, dentro da comunidade cultural, os produtores culturais mesmo, pessoas com passagem pela gestão pública, que hoje trabalham como produtores, eu os vi fazerem manifestações públicas pensando nos seus próprios projetos, irem para a tribuna, em audiência pública em Assembleia Legislativa, dizerem que tais critérios são injustos, que precisamos repensar… Falando para um Conselho de Cultura, que tem representantes da sociedade. Eu não posso ter uma expectativa de que o leigo, o consumidor de cultura, o público em geral, vá ter um entendimento crítico, uma visão mais ou menos parecida sobre esse processo. Realmente é uma situação difícil. Mas acho que passa, obrigatoriamente, pelo fortalecimento da gestão participativa. Vou insistir nisso. Agora com esse PL [projeto de lei] que o governador mandou para o Legislativo, comecei a escrever um texto para jornal para questionar diretamente essas pessoas. Dá para recolher as falas de cada um. Um ator, produtor de teatro, por causa de seu projeto, que foi rejeitado, escreveu um artigo no principal jornal de Porto Alegre, dizendo: “esses projetos que foram aprovados não têm mérito cultural nenhum”. Eu queria apontar para cada um, colocar o dedo na consciência: “olha só o que vocês estão falando. Vocês sabem o que é um Conselho de Cultura? Venham aqui discutir com a gente”. É muito mais fácil ir às redes sociais do Conselho e dizer: “vocês são incompetentes, vocês não entendem nada de cultura”. Fomos acusados até de racistas. Um pessoal teve projeto aprovado em um edital da Natura Musical. A empresa faz um grande marketing, faz um edital nacional e usa critérios de inclusão. Nunca li o edital, mas acho que deve ter um sistema de cotas ou algo parecido. Aprovaram uns quatro projetos no Rio Grande do Sul. Mas só dão dinheiro se houver aprovação na Lei de Incentivo. Não tiram dinheiro do bolso deles. Então, essas pessoas fizeram um “auê” nas redes sociais. Entenderam que tínhamos obrigação de aprovar os projetos deles, porque já estavam aprovados pela Natura, sendo que há vários projetos concorrendo, que também já têm um patrocinador, já têm uma carta de intenção de patrocínio. Não é a Natura, o outro patrocinador não fez um edital nacional, mas vai dar o dinheiro. É a mesma coisa. Eu não posso fazer um tratamento diferencial para a Natura. É falta de uma compreensão mínima dos processos.
Sharine: Mas um edital não tem nenhuma relação com o outro?
Álvaro: Não tem. Eles fazem o edital e colocam como condição… Outros patrocinadores fazem isso também. Acho que a Petrobrás fazia também. É um edital para patrocínio de projetos incentivados, que têm aprovação na Lei Rouanet ou na lei de incentivo do seu estado. É uma estratégia de marketing, como qualquer patrocínio de incentivo é. Só que eles dizem: “em vez de fazermos ‘de balcão’ o projeto que vocês vêm trazer, fazemos um grande edital, com inscrições. Nas redes sociais, aparecemos mais na jogada”.
Sharine: Poderia ser o contrário. Teriam que ser aprovados no edital de vocês antes de ser aprovado no da Natura.
Álvaro: Poderiam ter exigido isso. Evitaria um mal-entendido. Mas, é claro, eles têm um prazo para ter o projeto aprovado com a gente.
Sharine: Você quer falar mais alguma coisa?
Álvaro: Espero ter contribuído. Acho que falei bastante.
Sharine: Então é isso. Obrigada!