Canclini na Cátedra
Entrevista com Ernesto Piedras. Realizada virtualmente, pelo aplicativo Zoom (São Paulo – Cidade do México), no dia 09 de fevereiro de 2024
Sharine: Obrigada pela entrevista. Eu trabalho em uma fundação brasileira que se chama Fundação Nacional de Artes. É um órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Desde o ano passado, estou me dedicando exclusivamente à pesquisa na Universidade de São Paulo, sob a coordenação do Prof. García Canclini. Estou trabalhando com ele desde 2020. Desenvolvemos uma pesquisa sobre a institucionalidade da cultura, mas especificamente, no meu caso, sobre uma lei que tivemos no Brasil, que se chama Lei Aldir Blanc. É o nome de um músico brasileiro.
Ernesto: Não tenho conhecimento desta lei.
Sharine: Vou lhe explicar. Foi uma lei criada por artistas e por trabalhadores da cultura. Tivemos um governo conservador no Brasil desde 2019, com Jair Bolsonaro. Desde um pouco antes, os orçamentos para a cultura haviam caído muito. Não tínhamos mais o Ministério da Cultura, que foi transformado em uma Secretaria da Cultura. Enquanto passávamos pela pandemia, os artistas tiveram essa iniciativa de criar uma lei em parceria com os senadores e os deputados, federais, estaduais e municipais para a emergência cultural no Brasil. Foi uma lei muito importante.
Ernesto: Estou vendo o que é isso. É para a assistência social, não é verdade? Para os criadores.
Sharine: Sim, mas não somente isso. Foi uma lei muito importante porque havia a possibilidade de os artistas apresentarem os projetos culturais para o teatro, a música, o cinema, as artes populares, tudo isso. Foi uma lei descentralizada. O estado federal repassou os orçamentos para os governos estaduais e municipais. Isso afetou todo o Sistema Nacional de Cultura. Depois dessa lei, tivemos duas novas leis. Uma delas é chamada Lei Paulo Gustavo. A outra é chamada Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, que terá duração de cinco anos no Brasil. Todas têm essa lógica descentralizada, de repasse de recursos para as localidades, para que cada localidade atenda às necessidades de cultura, de sua cidade ou de sua região. Nosso interesse, com o Prof. García Canclini, é comparar a situação no México e no Brasil. Anotei três grandes temas para conversarmos: a institucionalidade da cultura, as diferenças entre o sistema brasileiro, com essas novas lei, e o sistema mexicano; a descentralização do orçamento, porque no Brasil há a tendência de descentralização, mas, no México, pelo que estou estudando, não é assim, é muito mais concentrado no governo federal.
Ernesto: Sim, muito. De fato, a lei vigente, que é a Lei Geral de Cultura e Direitos Culturais, me tocou por eu ser parte do Conselho Redator. Está vigente há cerca de sete anos. Já vou lhe contar um pouco mais sobre ela. Foi redigida por um grupo de sociólogos, antropólogos, advogados. Claro que eu era o único economista. Muitos advogados dizem, e eu subscrevo, que o título está incorreto. É Lei Geral de Cultura e Direitos Culturais. Creio que houve um interesse em agregar os direitos culturais. Mas os advogados diziam que, por ser uma Lei Geral de Cultura, já abarca os direitos econômicos, os direitos sociais, os direitos sociais, etc. Mas eu acredito que era uma moda de direitos culturais. Já lhe contarei por que eu fiz um exercício nesta lei. Pus-me a investigar o que poderia ser chamado de um capítulo econômico, infraestrutura, bem-estar social, investimentos, orçamentos, etc. Escrevi o que chamei de um capítulo econômico, uma série de artigos a respeito, para facilitar o trabalho orçamentário, etc. No fim, essa parte não permaneceu. Quem era a presidente da Comissão de Cultura do Senado, alguns dias depois, me disse que havia sido motivo de negociação. Quando há uma modificação em uma lei, o que preocupa muito a Secretaria da Fazenda, que dispõe dos recursos do governo, é que tenha um impacto orçamentário. Votaram “não”, porque haveria um impacto orçamentário. Eu trabalhei na Secretaria de Programação e Orçamento, já extinta. Tenho muita experiência em temas orçamentários, inclusive os que podem não ter um impacto. Mas rechaçaram e retiraram. Bom, esta é a lei que temos hoje vigente.
Sharine: É uma lei centralizada?
Ernesto: É nacional, é federal, sim.
Sharine: É federal. O que foi importante na Lei Aldir Blanc é que foi uma lei que repassou o orçamento para os estados e para os municípios. Também foi criada por movimentos sociais, não pelo governo em exercício. Não sei se há um paralelo com o que ocorre no México. Eu tenho um pouco de dificuldade para entender o orçamento mexicano. No Brasil, estou acostumada, conheço os orçamentos do governo federal. Mas, no México, para mim, é um pouco mais difícil de compreender. Então, gostaria de falar um pouco mais sobre isso.
Ernesto: Há uma Lei Geral de Cultura, que é federal, é nacional. Mas cada um dos 32 estados tem sua própria lei. Em geral, uma não varia muito da outra. Quanto aos recursos que há para a cultura, o governo arrecada porque tem a empresa de petróleo, de publicidade e tal, cobra impostos e, daí, é feita a dotação orçamentária para a cultura. O que tenho buscado, não com êxito, devo dizer, é contar com uma metodologia para essa dotação orçamentária. É muito baixa. Já disse publicamente vezes. É uma miséria de recursos. Quando há alguma crise ou recessão econômica, cortam nosso orçamento. Esta administração presidencial, embora se diga progressista, de esquerda, cortou, se não me equivoco, algo em torno de 40% do já baixíssimo orçamento. Então, a cultura, como tenho dito, vive de misérias, de esmolas. Essa parte é negociada no final do ano. Começa com o ano civil. Há cerca de quatro anos, eu me lembro que era início de um mês de dezembro, o deputado presidente da comissão de cultura me chamou porque estavam cortando o orçamento. Armamos uma estratégia entre ele, outro amigo que é muito conhecido publicamente e eu, escrevemos uns artigos que saíram em uma revista muito influente e tal, e conseguimos destacar esta parte que queriam cortar. Mas o que sempre digo aos deputados é: essa batalha tem que começar em janeiro, não em dezembro. Não temos que lutar para resgatar, mas para ter… Eu falo muito sobre um inventário de necessidades culturais e sobre como isso determina os montantes. Sobre a institucionalidade: a Secretaria de Cultura, que antes era o CONACULTA [Conselho Nacional para a Cultura e as Artes], há uns sete ou oito anos passou para o nível ministerial, agora é Secretaria de Cultura. Eu sempre digo que as pessoas que a ocupam, sobretudo na organização presidencial que terminará neste ano, têm sido muito tímidas e muito passivas. Se você é um secretário de estado, tem direito a sentar-se com qualquer outro secretário de estado e negociar. Nunca os vejo brigando por recursos, lutando por novas alternativas. Esta é a situação atualmente.
Sharine: Não há uma mobilização social contra isso, como houve no Brasil?
Ernesto: Não. Eu sinto que o setor cultural está muito fragmentado. Posso lhe dar exemplos. No setor cultural entra o cinema. O cinema, como o vejo, é verdadeiramente uma indústria cinematográfica. As pessoas que estão no cinema são, verdadeiramente, empresários de grande escala. Muitas delas, não todas. Geralmente, há cinema experimental. Mas há uma parte do cinema que é feito no México, os diretores que estão em Hollywood, que ganham o Oscar e os fotógrafos mexicanos… O cinema é um segmento muito diferente do segmento dos poetas, por exemplo, e do segmento dos artistas plásticos. O cinema tem muita ingerência na Câmara dos Deputados. Então, conseguiu ter um fideicomisso, um instituto, um orçamento. A indústria editorial também tem muito peso. Não tanto como a cinematográfica. Mas também está muito bem-organizada, gera muito boas estatísticas, etc. Se olhamos para os músicos, a parte musical também tem uma boa organização. Chama-se Sociedade de Autores e Compositores Mexicanos. Mas é uma sociedade que arrecada muito dinheiro, mas não distribui equitativamente.
Sharine: Como no Brasil…
Ernesto: Os grandes compositores ficam com muitíssimo dinheiro. Segue o modelo: quanto mais canção tiver, mais porcentagem tem. Os pequenos compositores praticamente não recebem nada. Há mais: a sociedade de pintores, a sociedade de escritores… Eu, por exemplo, não pertenço à sociedade que se chama Sociedade Geral de Escritores Mexicanos. Eu poderia filiar-me, mas não tenho nenhum incentivo. Está muito fragmentada. Então, diante de seu comentário: como fizeram no Brasil, aqui não vejo essa questão, a integração de todos os criadores.
Sharine: Como os artistas vivem? No Brasil, há uma necessidade muito grande de políticas públicas. Temos uma lei chamada Lei Rouanet. É uma lei de incentivo fiscal. Há isso no México? As empresas deixam de pagar uma parte dos impostos para o governo para colocar na cultura. Compreende?
Ernesto: Não, não há incentivos fiscais no México. O máximo que há é uma lei de doações. Uma empresa ou uma pessoa pode fazer algumas doações. Mas até mesmo essa lei, essas doações são muito complicadas. Veja, por exemplo: sou o presidente de um colégio no México. Falo em educação, não tanto em cultura. Para que possa ser objeto de doação, o colégio precisa atender a uma série de requisitos muito complicados para que uma empresa chegue e diga: “eu lhe dou uma quantidade de dinheiro ou uns móveis ou computadores”. Então, quase não operam esses donativos. Não há incentivos. Uma vez fiz um estudo. Tenho um livro inédito sobre políticas fiscais para a cultura. Deveria desenvolvê-lo e terminá-lo. Eu via, por exemplo, casos como o do Japão. Se uma grande empresa se estabelece e compra obras de arte para seus escritórios, são dedutíveis. Mas, além disso, estão obrigadas a comprar obras de arte de criadores locais, não só de grandes nomes estrangeiros ou de onde sejam. Incentivam a produção local, incentivam a aquisição de arte. Mas isso não existe no México.
Sharine: Isso é muito interessante porque o que acontece no Brasil é que existe a Lei Rouanet, mas quase todo o dinheiro é público. Então, o que acontece? As empresas descontam o dinheiro do imposto, colocam a marca delas, como uma propaganda, ou algo assim, mas não colocam quase nada do próprio bolso. Fazem cultura, fazem política com dinheiro público. Os artistas são um pouco dependentes disso no Brasil. Não há muito investimento privado em cultura. Isso muda todo o mercado de trabalho. No México, penso em como os artistas conseguem os orçamentos, como conseguem o dinheiro para fazer arte…
Ernesto: O máximo que existe aqui no México, para os artistas, é o que se chama “pagamento em espécie”. Não sei se está familiarizada com isso. Desde a década de 1970… Por um lado, o governo não dá assistência social a um pintor, por exemplo, mas lhe cobra impostos. Os artistas disseram: “não posso pagar imposto, ou seja, não tenho os recursos, apenas sobrevivo”. Então, o que o governo começou a fazer foi dizer: “Pague em espécie, pague com uma obra de arte sua”. Hoje os artistas podem fazer isso, “pagar em espécie”. Se você for uma pintora e não puder pagar impostos, pode dizer: “dou tantas peças da minha obra, para propriedade do estado, do governo”. O governo não as vende. Então, é muito comum que vá a um escritório do governo e esteja cheio de obras de arte que foram pagas em espécie. Têm uma placa que diz: “esta peça foi paga em espécie”. Mas há esta dualidade. Eu medi a contribuição econômica do setor da cultura. É um setor muito importante no México. O México é uma potência cultural e econômico-cultural. Apesar de se dizer, algumas vezes, que 6,7% do produto interno bruto é gerado na cultura, e gera emprego e gera atração turística, investimento em infraestrutura, exportações, ou seja, é propriamente um setor econômico muito poderoso, seus agentes econômicos, as pessoas que trabalham nele não recebem… Recebem os benefícios que cobram, mas não recebem assistência social… Tivemos a pandemia e a Lei Aldir Blanc… Você me perguntava como vivem… Eu escutei vários amigos artistas dizerem durante a pandemia: “eu me rendo, vou me dedicar a outra coisa porque preciso viver, preciso comer, preciso pagar contas”. Na pandemia, não tiveram possibilidades. Há estatísticas que mostram, historicamente, que 80% dos artistas têm outro trabalho no México.
Sharine: 80%? É muito…
Ernesto: Há coisas que têm mudado um pouco. Comento sobre um livro que escrevemos, Néstor e eu. Historicamente, tem sido 80%. Quando comecei a estudar, há muitos anos, esses 80% se dedicavam a algo muito diferente. Se era um poeta, durante o dia podia ser professor ou trabalhar no governo, em qualquer disciplina distinta da sua atividade artística. São muitíssimas: ser garçom, ser professor, conduzir um táxi, o que seja. É muito raro conhecer a um artista que somente se dedique a sua atividade artística no México. Isso tem mudado… Néstor e eu fizemos uma pesquisa sobre jovens empreendedores [Las industrias culturales y el desarrollo de México, Siglo XXI, 2008]. Encontramos jovens empreendedores, menores de 35 anos, que trabalham com muitas ferramentas digitais… Esse livro tem oito anos ou mais. Quase dez, talvez. Vimos que se conservam os 80% que mencionava. Mas o que ocorre hoje é que 60% dos jovens empreendedores, insisto, muito digitais, já se dedicam, como outra atividade, a atividades muito próximas de sua atividade artística. O que quero dizer com isso? Se é uma escritora, durante o restante do tempo, faz revisão, por exemplo, ou atividades semelhantes. Ou, se alguém é cantor, dá aulas de canto ou de instrumentação, etc. Mas a estatística segue em torno de 80%.
Sharine: Como vive o teatro, por exemplo, se não há muito apoio do governo?
Ernesto: O teatro, bem, deixo de lado o teatro comercial.
Sharine: Sim, falo do teatro emergente, dos artistas emergentes.
Ernesto: Há um agente muito importante no México, que são as universidades. Há universidades muito grandes. A UNAM, a Universidade Nacional Antônoma do México. De fato, na descrição de sua vocação, fala em ciência e em cultura. As universidades têm um papel muito importante. Sobretudo as públicas. Sem dúvida, são as que têm mais orçamento. É muito importante destacar a Universidade Autônoma do México, a UNAM. A Universidade de Guadalajara tem um orçamento imenso e tem uma vocação muito grande para a cultura. De fato, a Feira Internacional de Livros… Não sei se está familiarizada com ela.
Sharine: Sim, conheço.
Ernesto: É a feira de livros mais importante de língua espanhola. É uma feira entre editores, ou seja, business to business, e entre editoras e leitores. É uma feira monstruosa. Se não me engano, recebe mais de um milhão de pessoas por ano quando é realizada. Sempre se diz que, depois da feira de Frankfurt, é a maior do mundo. Foi criada e administrada pela Universidade de Guadalajara. A de Puebla também, a BUAP. Tem um nome mais complicado: Benemérita Universidade Autônoma de Puebla. Também tem um centro cultural impressionante. Há uma instância que se chama Companhia Nacional de Teatro. Também é operada com fundos do governo. O Instituto Nacional de Belas Artes também. Ele apoia algumas atividades. Basicamente, são estas as instâncias.
Sharine: Há também instâncias municipais e estaduais? As secretarias…
Ernesto: Sim.
Sharine: Eu vi que 60% do orçamento para a cultura no México é federal. No Brasil, é o contrário. Somente 11% é federal. O restante é estadual e municipal.
Ernesto: Sim.
Sharine: Outra coisa que me interessa é que, no Brasil, com a Lei Aldir Blanc, nós tivemos um encontro com o que é diferente, com o que é diverso em nosso país. A produção é muito diferente em São Paulo, Rio de Janeiro, que são as grandes cidades, e no interior do país. Há também o movimento negro, o movimento indígena, o movimento LGBTQIA+, pessoas trans, mulheres… Por outro lado, há o crescimento das igrejas evangélicas. Tudo isso muda o que se compreende como arte, o que se compreende como cultura. Há uma disputa simbólica no Brasil. O que é arte negra? O que é arte para os indígenas? Como isso se dá no México?
Ernesto: Sim, no México há esse tipo de causa. Não temos uma população negra significativa, mas sim indígena. Busca-se regatar o tema indígena com línguas, com tradições. Se me perguntasse agora um movimento teatral indígena, não estaria em minha memória. Creio que há algo. O México se envolve mais com esse tipo de causas por meio das tradições. Assim, se envolve também com os indígenas, ou seja, preserva uma tradição religiosa, gastronômica, festiva. Frequentemente, são tradições pré-colombianas, dos indígenas. É uma população muito ampla. Sempre se diz que alguma vez discutiam o escritor mexicano Carlos Fuentes e Borges, ou que estavam conversando. Borges disse a Fontes de modo depreciativo: “vocês, os mexicanos, descendem dos índios”. E Fontes disse: “Sim, e vocês, os argentinos, descendem dos barcos”. Somos uma tradição indígena muito arraigada, claro.
Sharine: Há a cultura comunitária no México, tenho lido bastante. O que pensa disso?
Ernesto: Sim, há marchas LGBTQIA+, etc. Há muitos personagens LGBTQIA+ envolvidos na política, com cargos públicos. O que percebo é que, quando há a marcha, em meados do ano, há muitos anos, não vai somente a comunidade LGBTQIA+, mas também quem não é dessa comunidade. No ano passado, me chamou a atenção. Em meu grupo de trabalho, há muitos homens e mulheres gays. No ano passado, não foram à marcha. Por outro lado, pessoas que não são gays foram. É como se houvesse um evento comunitário e as pessoas dessa comunidade talvez estivessem um pouco cansadas de estar nele. Mas já não é um evento violento. Não se violentam, ninguém os violenta. Então, há esse tipo de causa. Eu creio que a sociedade mexicana vem mudando muito, muito rapidamente. A sociedade mexicana era muito machista, historicamente.
Sharine: Entendo. Mas não nas políticas culturais? No Brasil, agora há cotas ou reserva de vagas. Há uma reserva de prêmios para negros, para indígenas, nas chamadas públicas para a cultura, nos editais.
Ernesto: Aqui não. Penso que, se introduzissem algo assim, haveria uma discussão muito grande. A população indígena é a mais desfavorecida, social e economicamente. Não é que seja diferente, é que, no Brasil, o peso da população de origem africana é muito grande, aqui não acredito que seja possível aplicar algo assim.
Sharine: Não há cotas na universidade para as pessoas indígenas? Não há essa discussão?
Ernesto: Não. Você sabe: o México parece muito com o Brasil em uma péssima distribuição de renda. Entre 50% e 60% da população está em uma categoria de pobreza. Se você encontrar a pessoa mais pobre do México, vou lhe dizer: será mulher, indígena, que vive no campo. É uma vinculação entre a raiz indígena e o poder aquisitivo.
Sharine: O que você pensa da Política Cultura Viva, Cultura Comunitária? Isso é interessante porque a Lei Aldir Blanc foi criada, em parte, pelas pessoas que participaram desse programa no Brasil, no Programa Cultura Viva, que há agora no México. É da Secretaria de Cultura, inspirado na Lei brasileira.
Ernesto: Eu fui assessor dos titulares do CONACULTA e da Secretaria por vinte anos. Nesta administração presidencial já não sou. Há cinco anos já não sou. Quando fui assessor, via um impacto relativamente baixo das ações do CONACULTA e da Secretaria. Agora, quase sinto que esse impacto é nulo. São programas que não vejo na rua, não vejo na prática. Recebi, recentemente, a visita de umas pessoas de Barcelona que vieram me ver e, também, dar oficinas. Eu lhes dizia: “sinto que hoje a política cultural está muito mais arraigada nas universidades, mas também nos estados da República, em alguns estados da República”. Eu destacaria, claro, o estado de Yucatán. O estado de Yucatán tem uns programas muito intensivos, tem capital humano muito bem preparado, pessoas que estavam na gestão cultural em serviços governamentais. Por exemplo, o estado de Yucatán ganhou um fundo para um projeto com a UNESCO. Foi o único projeto no México e não sei se o único no continente. Talvez tenha alguns mais. Mas estamos falando de uma boa questão com a UNESCO. Com o Banco Interamericano de Desenvolvimento também tem atraído recursos para o setor de economia e cultura. Eu diria Yucatán, diria o estado de Jalisco, onde está Guadalajara também. Diria o estado do México. Então, voltemos a sua questão inicial: há muita centralização, mas com muito poucos recursos. Finalmente, estão fazendo mais nos estados, o que não vejo como algo ruim. Eu não acredito que seja conveniente que, da capital, sejam dadas ordens de política cultural para o restante do país. Gosto mais de pensar em uma construção de 32 políticas culturais para fazer uma política cultural.
Sharine: Claro, é o que buscamos no Brasil.
Ernesto: Não vejo ações da Secretaria de Cultura que tenham muito impacto. Até mesmo quando estávamos na pandemia, me aterrava ver a passividade da Secretaria de Cultura. Por exemplo, eu vi que, em poucos meses, o governo britânico lançou um fundo de apoio aos criadores. Meses depois, foi com estabelecimentos culturais, como galerias e teatro. Disse-lhes: “eu lhes darei dinheiro como estivessem utilizando seu espaço, não vão fechar, não vão desaparecer”. Assim fazia. A Alemanha fez algo semelhante. A União Europeia entrou com fundos para apoiar os criadores porque os primeiros a fechar foram os espaços culturais e os últimos a abrir foram os espaços culturais, teatros, cinemas, bibliotecas, espaços de música, etc. No México, nada. Até mesmo países de outro poder aquisitivo. Por exemplo, tive algumas reuniões e uma querida amiga minha e de Néstor, Sylvie Durán, era a Ministra da Cultura em Costa Rica. Organizamos uma reunião com ela, que então era Ministra da Cultura, alguém do Equador, me parece, mais alguém da América Central. Eram cerca de cinco pessoas do continente e eu, por parte do México. Quando me dei conta, todos eram de governos. Todos eram como ministros de seus países. Cada um ia dizendo o que estava fazendo para apoiar os criadores, os gestores, etc. De repente, me perguntaram: “o que o México está fazendo, o governo mexicano?” Minha resposta foi: “eu não posso responder em nome do governo mexicano porque não trabalho nele”. Mas entrei na página da Secretaria de Cultura e lhes disse: “me envergonha dizer que, em relação à pandemia, a única coisa que a Secretaria de Cultura tem feito é disponibilizar dois livros gratuitos para baixar”. Isso não acaba com a fome de ninguém. Não é uma reação na escala do que foi a pandemia. Veja, agora entrei na página da Secretaria de Cultura. A primeira coisa que aparece é um cartão financeiro para o bem-estar. Ou seja, é um dinheiro que o governo está oferecendo para certas pessoas: pessoas de idade avançada, com poucos recursos, etc. Mas isso não deveria estar na primeira página da Secretaria de Cultura. Há uma homenagem a Luctuoso de José Alfredo Jiménez, um compositor de música rancheira, anúncios culturais e para crianças, mas não vejo uma política cultural aqui. Há o tradicional, exposições, informações sobre centros culturais, o artigo de um roqueiro mexicano. É lindo, mas com a cultura que o México tem, deveria haver uma política cultural forte, e não há.
Sharine: No Brasil, durante o governo de Jair Bolsonaro, houve muita disputa com os artistas. Diziam que vivem do dinheiro do governo, por exemplo. Não sei se isso acontece no México porque é um governo de esquerda…
Ernesto: É um governo de esquerda e eu esperava que sua relação com o setor cultural fosse diferente, mais intensa. Digo a você que, quando o governo de López Obrador entrou, ele cortou 40% do orçamento para a cultura. Na pandemia, ele cortou pela metade novamente. Ele não fez nada. A Alejandra Frausto [então Secretária de Cultura do México], sim, trabalhou muito na parte de artesanato e indigenismo na Secretaria de Cultura. Mas não vejo uma marca pela gestação da política indigenista a partir da Secretaria. Agora temos que falar sobre este fideicomisso que há para apoio à cultura pela Secretaria de Cultura…
Sharine: Não é o FONCA [Fundo Nacional para a Cultura e as Artes, atual Sistema Creación]
Ernesto: É o FONCA, sim. O CONALCULTA e o FONCA nascem na década de 1980, que foi considerada e qualificada como neoliberal. Foi um presidente [Salinas de Gortari] que privatizou muitas das empresas. Como economista, penso que foi magnífico que tenha feito isso. Abriu a economia, nos integrou à OECD [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], assinou o tratado de comércio com os Estados Unidos e com o Canadá. Mas criou o CONACULTA e criou o FONCA. Então eu digo: é interessante porque vínhamos do governo, da década de 1930, que o que fazia era cooptar e capturar o setor cultural. Ou seja, o muralismo mexicano, que é tão bonito, tão exaltado, etc, pois era feito por pessoas que recebiam muitos apoios e favores do governo. Apesar de alguns militarem no Partido Comunista, davam-se muito bem com a estrutura priista [refere-se ao Partido Revolucionário Institucional]. Salinas de Gortari chegou e disse: “já não vou comprar consciência. Já não vou pagar para que estejam do meu lado. Vou criar um conselho e vou criar o FONCA e, assim, serão subsidiados os criadores”. É o que começa a acontecer. Preste atenção: um presidente considerado neoliberal dando este passo de injetar recursos e liberalizar o setor cultural. Se me perguntar de qual gestão presidencial mais gostei em relação à cultura, foi a de Felipe Calderón, que foi do ano 2006 a 2012. A titular do CONACULTA foi Consuelo Sáizar. É uma mulher da indústria editorial muito trabalhadora, muito boa administradora, muito focada, de muitíssimos resultados. Mas também com muito carácter. Eu sei porque trabalhava próximo dela, como assessor. Ela se encontrava com o presidente e dizia: “você me encarregou da pasta de cultura, tem que dar dinheiro para esses projetos”. Com Consuelo Sáizar foi feita uma pesquisa nacional de hábitos e consumo cultural admirável. Não se voltou a fazer desde 2010, 2011. Foi feito o Atlas de Infraestrutura Cultural em 2010 e não se voltou a fazer, etc. Uma série de indicadores para fazer política cultural. Hoje vejo as pessoas que estão na Secretaria de Cultura montando exposições, quer dizer, uma instituição privada pode fazer isso. Insisto: é um governo que se diz de esquerda, mas não apoia a cultura.
Sharine: E o público? O público, no México, tem mais acesso ao museu, ao teatro que no Brasil, ou não? Como é frequência de público aos espaços?
Ernesto: Não sei se mais do que no Brasil… Mas a oferta cultural no México é muito grande. Os museus são gratuitos, a menos que tenham uma exposição especial. Mas, no Museu de Antropologia, pode-se entrar sem pagar, no Tamayo etc. O teatro obviamente é cobrado, mas em geral é acessível. O teatro comercial não vem ao caso. O que vejo é que há uma segmentação de conteúdos culturais muito marcante. O que quero dizer com isso? Há pouco falamos do teatro. Eu nunca vou a uma obra comercial, a um musical aqui no México. Quando viajo, sim. Se vou a Londres, aonde vou com frequência, gosto, de repente, de assistir a alguma obra ou de ler alguma coisa. Sempre que viajo vou à ópera. Mas, sim, gosto muito de ir ao teatro experimental, ao teatro universitário, etc. Vejo uma segmentação muito marcante desse tipo de atividade. A música também. Vou dar um exemplo. Há um espaço que se chama Auditório Nacional. Acho que deve comportar umas mil pessoas. Ali se apresenta ópera, transmitida do Metropolitan. A capacidade é de mil pessoas. Ópera, música popular, balés, concertos sinfônicos, etc. É o que se chama de espaço de grande escala, como o Metropolitan, como o Royal Opera House, em Londres, etc. É o espaço de grande escala com maior ocupação em dias e noites no ano, em todo o mundo. Ou seja, de 365 dias, não me lembro, cerca de 300 ou 320 dias têm uma atividade.
Sharine: Que bom!
Ernesto: Pela demanda que há por espetáculos. É de um viés mais comercial, sim, mas é um bom exemplo. Há muita, muita oferta. A Cidade do México é considerada uma das que têm maior oferta cultural no mundo. Há museus, há teatros, talvez em menor escala, sinfonia e ópera, em baixa escala também. Há cinema, concerto, etc. Ou seja, é uma cidade em que há muitíssimas coisas para fazer, culturalmente. Na Cidade do México há 20 milhões de habitantes. Somos 130 milhões no país. Nas outras cidades… Guadalajara tem uma oferta muito grande. Monterrey, que é outra cidade grande, é uma cidade industrial, com poder aquisitivo muito alto. Mas o que ocorre com o norte do país, a partir de Monterrey e por aí é que, como estão próximas dos Estados Unidos, têm hábitos mais estrangeiros. Apesar de já terem uma feira internacional do livro, já terem uns museus muito atrativos, de as pessoas consumirem conteúdos culturais, estão mais próximas do estilo dos Estados Unidos, de consumo, de ir a shopping center, etc. Havia um filósofo mexicano, Alfonso Reyes, que dizia… De Monterrey para cima, há uma tradição de comer carne assada, muito boa. Então, Alfonso Reyes dizia que a cultura terminava onde a carne asada começava. Eu digo que a carne asada também é cultura, é sua própria gastronomia. Mas o perfil cultural é muito diferente.
Sharine: Para terminar, gostaria de saber por que as políticas culturais são importantes para você, apesar de todas as questões, apesar de todas as diferenças que existem.
Ernesto: Quando falo sobre políticas culturais, gosto de falar sobre políticas culturais integrais. Ou seja, Néstor e eu, e tenho certeza de que você também, sempre falamos sobre a transversalidade da cultura. Eu sempre digo que a vida e a cultura não estão apartadas. Como economista que sou, quando abordo o tema da cultura, digo: política fiscal para a cultura. política de infraestrutura para a cultura, política educativa para a cultura, política integral. É por isso que eu digo: o Ministério da Cultura deveria conversar com todos os secretários. Por que não conversa com o pessoal das telecomunicações quando grande parte da apropriação de conteúdo hoje é digital? Não é a cultura e o resto da sociedade. E é disso que eu vejo que precisamos. Não uma política de fazer exposições. Essa é a única coisa que vejo na página da Secretaria de Cultura. Não vejo aqui: fundo para os criadores ou uma estratégia de exportação de conteúdos culturais ou capacitação digital para criadores ou acessibilidade on-line para públicos e espectadores, etc. Não vejo. Vejo uma série de atividades que poderiam ocorrer em 1940 ou 1970. Hoje, com os recursos tecnológicos que temos, que não são substitutos, que são uma camada adicional, deveríamos ter algo muito mais complexo. Não vejo uma agenda digital para a cultura. Acho que ela é muito importante. A constituição política do México fala sobre o direito à cultura: um direito para os criadores e um direito para o público e os espectadores. Eu sempre digo: no México ainda há 15 ou 20 milhões de pessoas sem conexão. Hoje, a conexão é o acesso a conteúdos escritos, é como a nova biblioteca, a conteúdos digitais, conteúdos cinematográficos. Ter alguém sem acesso à internet seria o equivalente a chegar a uma biblioteca e ouvir: “Você não entra na biblioteca porque é pobre. Não vou deixá-lo entrar”. É evidente que não têm acesso porque não têm poder aquisitivo. Portanto, estou preocupado com toda essa cadeia. Não há orçamentos, não há força institucional, não há capital humano que tenha a visão de dizer: “vamos fazer uma política integral para a cultura, desde o orçamento, passando pela conectividade, vínculos com o turismo, criação de empregos, combate à pobreza etc.”. Penso que há, aí, uma forte carência.
Sharine: O que pensa sobre as mudanças que vão ocorrer no México neste ano por causa das eleições?
Ernesto: Historicamente, o México tem sido um país de alternância muito limitada. Você sabe que tivemos um partido, o PRI, por 70 anos. Penso que vários anos foram muito construtivos. Logo começaram vícios e excessos de governo e de estado. Depois tivemos dois sexênios, ou seja, doze anos com o PAN [Partido de Ação Nacional]: Vicente Fox e Felipe Calderón. Em seguida, houve novo sexênio do PRI, com Enrique Peña Nieto. Hoje temos MORENA [ Movimento Regeneração Nacional]. Na minha opinião… Não é minha opinião. Veja: os que integram o MORENA são os antigos priistas que também conservaram o poder. Então, eu acredito, e esta é a previsão de muita gente, que o MORENA vai ganhar. A candidata pelo MORENA parece estar absolutamente submetida a López Obrador, ao presidente atual. Acredito que haverá uma mudança de titularidade, mas que López Obrador siga tomando as decisões. Vamos seguir a mesma rota porque é exatamente o mesmo discurso. Foi como a designaram. A forma de designá-la foi como a velha alternância do PRI, o que chamamos um “dedaço”, que é: “você será a candidata”. Então, não prevejo grandes mudanças nem nos discursos nem nas ações. Acredito que será uma continuação, nacionalmente. O que muita gente diz é que é importante direcionar o voto para que as câmaras de deputados e senadores não fiquem a favor desse mesmo partido para colocar um freio a certas iniciativas. Há iniciativas como para fazer desaparecerem os órgãos autônomos: o órgão eleitoral, o órgão de telecomunicações. Querem que a Comissão Nacional de Direitos desapareça. Disseram: “vamos transformá-la”. Mas querem subordinar tudo ao poder governamental quando são órgãos autônomos que foram se construindo por vias operacionais, institucionais. Há uma candidata alternativa que é indígena: Xóchitl Gálvez. Quem a está assessorando no campo cultural é Consuelo Sáizar, que eu disse que foi a titular do CONACULTA há 14 anos, que foi admirável. É sua assessora. Mas muita gente está dizendo que não há possibilidade de que ela ganhe. Então, não prevejo uma mudança. Eu me supreenderia muito, eu e muitas pessoas, se Xóchitl Gálvez ganhasse. Esperaria muito por isso. Aí sim haveria uma mudança. Se Consuelo Sáizar continuasse como secretária de cultura, tenho certeza de que promoveria muitas atividades rumo a una política cultural integral.
Sharine: Eu entendo. Muito obrigado, Dr. Ernesto!
Ernesto: Seja bem-vinda ao México!