Canclini na Cátedra
Entrevista com Thiago Rocha Leandro. Realizada virtualmente, pelo aplicativo Zoom (São Paulo-Brasília), no dia 31 de agosto de 2023
Sharine: Para começarmos, qual foi sua trajetória na gestão cultural, principalmente em relação às Leis Aldir Blanc, Paulo Gustavo e à Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura?
Thiago: Eu comecei minha trajetória com a cultura antes de me formar. Sou formado em direito, na Universidade Católica de Pernambuco. No finalzinho do curso, eu passei na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e fui trabalhar na Fundação de Cultura de Pernambuco, a Fundarpe. Eu trabalhava na assessoria jurídica, mas me metia muito, dava muito pitaco na gestão. Fui me envolvendo, participando mais da gestão. Virei diretor do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, o Funcultura. Eu cuidava do Funcultura e, depois, assumi também a gestão da Rede Cultura Viva, dos Pontos de Cultura do Estado. Passei um ciclo de gestão lá. Depois, vim para o Instituto Federal. Fui subsecretário do Fomento e Incentivo à Cultura aqui. Cuidava do Fundo de Cultura, da Lei de Incentivo. Trabalhamos muito com a renovação da legislação de cultura aqui do DF, que é a Lei Orgânica da Cultura. Depois disso, fiz mestrado na UNB [Universidade de Brasília], em políticas públicas, mas com foco em fomento à cultura, democratização, territorialização. Tive uma experiência no Congresso, onde acompanhei a Comissão de Cultura. Passei pela transição e cheguei até hoje.
Sharine: Legal!
Thiago: Estou nesta diretoria, que é um setor novo, mas de que eu gosto muito.
Sharine: Essa diretoria foi criada em função da Lei Paulo Gustavo? Como foi?
Thiago: Eu acredito que sim. Historicamente, o MinC [Ministério da Cultura] nunca tinha dinheiros grandes e constantes para repassar de forma sistemática para estados e municípios. Com as Leis Aldir Blanc, Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, foi inaugurada uma nova forma de estruturação de financiamento para a área de cultura. Há um dinheiro que vem para o MinC, mas que não fica concentrado, não assume o papel de Secretaria de Cultura Nacional. Ele repassa esses recursos para estados e municípios. Ao mesmo tempo, vai normatizando, estabelecendo diretrizes, pactuações, diálogos. Acredito que, nesse desafio, no modelo, ficou muito nítido o diagnóstico desde a transição: o Ministério precisa estar mais próximo das gestões locais, das gestões estaduais e, principalmente, municipais. No governo Bolsonaro, foi um pouco… O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura teve um protagonismo muito grande. Dada a ausência de políticas públicas nacionais, a política veio a partir da base, que é um modelo interessante, da base de gestores estaduais. Não chegou até a base municipal, até onde acompanhei. Os Estados sempre tiveram um protagonismo maior. Acho que, pela leitura de todo mundo que veio construir o MinC, viu-se que, com o gestor da ponta, o dinheiro pode chegar aonde nunca chegou para a cultura. A Lei Aldir Blanc ainda estava muito no caráter emergencial. A grande maioria dos municípios transformou a lei naquele auxílio, com caráter de socorrer os artistas. Era um modelo que, como havia o auxílio emergencial, todo mundo já visualizava, entendia. Depois, para pensarmos em um modelo de edital, de prêmio ou de bolsa, ficou muito nítido que precisaríamos ter uma proximidade maior. Uma das tentativas de proximidade foi a criação do nosso setor, sem dúvida. Não foi a única. Eu sempre falo: “não vamos pensar que nossa diretoria é o único espaço, o único local que vai dar assistência, formação, de jeito nenhum. Nem quero essa responsabilidade. Isso tem que ser uma coisa sistêmica. Tem que ser uma agenda do Sistema MinC”. Mas a diretoria acaba tendo um ponto focal específico para essas leis federativas.
Sharine: Vocês também atuam no repasse das verbas?
Thiago: O pagamento das verbas, em si, é feito pela SEFIC [Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural], aqui com o Henilton Menezes. Esse trâmite de pagamento, da análise do plano de ação, é a SEFIC que faz. Nós atuamos mais no sentido da mobilização, coordenamos o processo de adesão à Lei Paulo Gustavo, que teve um número muito interessante, de 98%. Estamos fazendo, agora, uma série de atividades para tirar dúvidas. Na assistência à adesão, circulamos o Brasil inteiro, quarenta vias, fizemos o Circula MinC. Fizemos dezenas de seminários, atendimento online via vídeo chamada. Abríamos o gestor como estamos agora. Falávamos: “clica aqui, cria aqui, aqui você tem que preencher, aqui você tem que pensar o que você quer, o e-mail…” Ainda temos monitoria via e-mail. Três vezes por semana abrimos uma sala com os gestores que tiverem tempo. Fizemos um processo muito bem-criado com modelos de editais, modelos de contratos, modelos de recibo, modelos de tudo que pedem. Modelo de projeto de lei para adequar o orçamento… Vamos criar um grande repositório, um grande processo disso.
Sharine: Entendi, obrigada! Como já falamos, em 2023 voltou o Ministério da Cultura, que havia sido descontinuado pela gestão do Bolsonaro. A situação do fomento à cultura e às artes no Brasil mudou em comparação com os últimos anos. O que você vê de continuidade e de mudança em relação a políticas públicas anteriores? Pode pensar anteriormente ao Bolsonaro, ao Temer, no período histórico democrático…
Thiago: Gostei do histórico democrático… Veja: em relação ao governo Bolsonaro, foi uma mudança completa, até mesmo de visão de mundo, de política pública, de institucionalidade. A volta do MinC não é só simbólica. Você também acompanhou. Quando chegamos aqui, até em termos patrimoniais, de tombamento de cadeiras, de máquina fotográfica, acervo (onde estava?) até a parte de pessoal. Setores inteiros… A Secretaria de Cultura passou por dois ou três Ministérios: Cidadania, Turismo, etc. Muita coisa se perdeu da memória. Os servidores foram muito heroicos em preservar. O que não se perdeu foi graças a isso, aos servidores e à resistência também da sociedade civil. É o que eu sempre digo: “a cultura não é o estado que faz, é o povo”. A cultura não vai acabar. Mas vai sofrer momentos de mais ataques, como foi esse. Vemos, por exemplo, a Lei Rouanet, que chamávamos “nossa lei Geni” [música de Chico Buarque de Holanda]. Todo mundo bate, joga pedra e tal. A lei mais atacada do Brasil deve ser a Lei Rouanet. Ela não acabou no governo Bolsonaro. Essa foi uma das poucas constantes. Apesar de não ter acabado, no sentido financeiro, vimos alguns retrocessos do ponto de vista da regulamentação, de supressão de instâncias democráticas, como as próprias atribuições da CNIC [Comissão Nacional de Incentivo à Cultura]. O grande marco da volta da democracia é também o das instâncias democráticas. Voltamos a discutir conferências, conselhos, setoriais, a própria CNIC voltar a ter poderes deliberativos. Eu destacaria isso. No governo Bolsonaro é o único ponto que eu poderia indicar. Querendo ou não, teve a Lei Aldir Blanc, ela rodou. Não tem como negar. Foi uma regulamentação muito ruim, na minha opinião, no sentido do tom ideológico, aconteceu uma privatização, mas funcionou. Teve uma boa adesão de municípios. Mas é o que sempre digo: ela funcionou apesar do Governo Federal. Houve uma mobilização muito bonita, muito grande, de gestores municipais, da sociedade civil… Então, você vê as políticas das artes, através da Funarte, o IPHAN [Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], o IBRAM [Instituto Brasileiro de Museus], as fundações voltando a ter protagonismo, voltando a reconstruir, a retomar. Acho o termo “retomada” muito interessante. As secretarias… Você vê a SAV [Secretaria de Áudio Visual] novamente pautando as políticas de audiovisual, para além da grande produção, todos os eixos da cadeia, direitos autorais. Eu acho que a grande novidade mesmo… Você vê a volta da RCVC [Rede de Cultura Viva Comunitária], a retomada dos pontos de cultura. Eu acho que essa gestão tem uma tranquilidade muito grande de não achar que inventa a roda. Essa é uma mania muito ruim na gestão pública. Os caras querem inventar um negócio louco… Eu digo: “não… Isso chama Ponto de Cultura, isso chama Política Nacional das Artes, chama CEU [Centro de Artes e Esportes Unificados], chama patrimônio…”. Mas eu acho que há uma grande novidade. Você revisitar e reestruturar as políticas não quer dizer que esteja fazendo igual. Por exemplo, a própria Cultura Viva vai ser relançada de forma atualizada, de forma a incorporar mudanças. De quando surgiu o programa até hoje, já precisam ser atualizados conceitos, instrumentos jurídicos, simplificações. Isso é muito importante. De fato, essa perspectiva federativa da cultura, eu sinto, é um grande passo. Já falávamos em Sistema Nacional de Cultura dez anos atrás. Mas agora vemos uma discussão, de que não vou ter tanta profundidade para falar, como se fosse o Sistema Nacional de Cultura 5.0. Quando falávamos de transferência fundo a fundo… Ainda que não sejam, efetivamente, fundo a fundo, a LAB [Lei Aldir Blanc] e a LPG [Lei Paulo Gustavo] são um modelo muito próximo: é um dinheiro que vem através do Ministério da Cultura para todos os estados e todos os municípios. Tem que ser usado em cultura, tem que ter diretriz, tem que ter pactuação com a sociedade civil. Vimos esses processos, para além dos Conselhos de Cultura, surgirem cada vez mais coletivos, como a Operativa Nacional Paulo Gustavo. Com certeza, com a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura vão surgir vários outros grupos, Mídia Nínja, Coletivo Três quatro dois Artes. São coletivos nacionais, que vão pautando a cultura e vão assumindo um papel também. O CPF [Conselho, Plano, Fundo] da Cultura… Os conselhos, para mim, continuam com primazia. Eles são fundamentais nesse processo, que é um processo paritário, com governo e sociedade civil, instâncias democráticas, conselheiros eleitos. Mas outros atores vão surgindo também e precisam, legitimamente, ser incorporados, com suas características, com suas diversidades. Sobre o fundo de cultura, o repasse de dinheiro vai ocorrer de outras formas também. Eu respondi?
Sharine: Respondeu, obrigada.
Thiago: Só para explicar: nesse modelo, nesse montante de recursos, estamos falando em 3,8 bilhões de reais da Paulo Gustavo e de 3 bilhões por ano da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, acho que essa é a grande novidade e desafio. Como isso vai dialogar com o Sistema Nacional de Cultura? Como vamos garantir diante das Políticas Nacionais? Estamos diante de um momento histórico. É o maior orçamento descentralizado da história da cultura e não podemos perder esse bonde. Temos que aproveitar para que seja uma mudança estruturante.
Sharine: Com certeza. Como você falou em mudança estruturante, como você acha que essas alterações todas afetam também, de alguma forma, as instituições federais mais antigas, como a Funarte, por exemplo, o IPHAN ou o IBRAM? Essas mudanças vão ser duradouras?
Thiago: Eu tenho uma esperança e luto para que aconteça. Devemos entender, como falamos em Sistema MinC, que as vinculadas são parte integrante dessa política, não podemos imaginar como se fossem mundos paralelos. Na Funarte, por exemplo, ou no IPHAN, no IBRAM, há muito do que falamos sobre o pacto federativo da cultura. Qual é atribuição que tem que ser do município, do estado e da união? Na educação fica bem nítido: até tal idade é do município, até tal idade é do estado, curso superior é governo federal. É óbvio que, na cultura, tudo é mais complexo. Mas, na perspectiva de circulação de arte, de espetáculos, poderíamos construir uma articulação: circulação regional, estadual ou nos municípios […] Entender as vocações de cada estado, de cada região, entender as possibilidades de uma ideia de patrimônio, de co-responsabilização de patrimônio para além do prédio. A mesma coisa quanto ao território de cultura, muito além do equipamento de cultura. Como se dá essa integração? Eu acompanho, já fui gestor local, já fui sociedade civil. A resistência ao Sistema Nacional de Cultura, em boa parte, vinha de uma incompreensão. Os governadores [diziam]: “Qual a vantagem? O que eu vou ganhar? Conselho é dor de cabeça, plano é dor de cabeça… Cadê o dinheiro?” Agora tem o dinheiro. Então, é uma oportunidade de fazermos casado, respeitando o pacto federativo, mas dando diretriz, respeitando o pacto federativo, mas exigindo a adesão ao Sistema Nacional, exigindo participação social. Para, de fato, implementarmos. Tem uma vantagem, tem um atrativo grande. Eu acho que é uma possibilidade de estruturação do MinC, incluindo todas as suas vinculadas. Se vai ser permanente, eu acho que depende muito da gente. Se for bem executado, tem tudo para ser permanente. Se você for ver a votação no Congresso, [as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo] foram aprovadas com ampla maioria porque chegam a todo lugar, independentemente de partido, independentemente de região. Isso tem um apelo para além do campo progressista, que, historicamente, vota pelo incentivo à cultura. Você tem o apelo do centro, amplo, o prefeito, o deputado que viu chegar à cidade dele. Você de fato segue a lei contra aquele conservadorismo mais radical, extremo conservadorismo. Mas a ampla maioria tem tudo para ser… Mas, para isso, tem que ser bem-feito. Precisamos entender a amplitude da responsabilidade. Tem que socorrer o setor, tem que ter edital de fomento, tem que ter política estruturante, tem que ter equipamento, tem que ter espaço, tem que ter dados e mostrar tudo isso, tem que ter pesquisa de pós-doutorado para mostrar: “olha, o desafio é esse, mudou”. É isso.
Sharine: Obrigada! Eu acho que você já respondeu uma parte da próxima pergunta. Mas vou fazer de novo. Quem sabe você queira aprofundar. A Lei Aldir Blanc, segundo a pesquisa, o material que já tenho produzido até agora, foi criada em um contexto de pandemia. Então, teve uma forte participação da sociedade civil, até por conta da emergência. Havia dificuldades financeiras, os espaços culturais estavam fechados. Mas, mesmo com a melhora da pandemia, as leis Paulo Gustavo e Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura foram aprovadas. A que você atribui essa aprovação em um governo que era contrário a essas políticas culturais?
Thiago: De fato à grande força da sociedade civil, durante a pandemia. Parece bem clichê. Mas estávamos em um contexto de pandemia. A Zélia Duncan dizia no vídeo: “‘ah, eu não preciso de cultura…’ ‘Então, desliga teu rádio, para de ler um livro, corta teu Netflix, não vê mais novela'”. Em um contexto de pandemia, houve certa economia de recursos, entre aspas, houve um remanejamento para a saúde. Na perspectiva econômica, ficou muito explícita a necessidade de socorrer alguns setores. Mesmo com todo o preconceito ao setor da cultura, cultura e entretenimento, foi inegável o impacto que esse setor estava sofrendo, com casas de show fechando, casas de formatura, de festas de 15 anos fecharam, ficaram dois, três anos sem eventos. Restaurantes, casas de show… Isso era muito visível, para além do artista individual. Era muito difícil bancar uma narrativa que dizia: “olha, não teve”. A cultura foi um dos setores mais afetados, um dos primeiros a parar, um dos últimos a voltar. Mas isso não foi suficiente para sensibilizar o Governo Federal, tanto é que o pessoal fala: “a Lei Aldir Blanc foi no governo Bolsonaro. Mas eles vetaram essa lei, eles votaram contra. Há uma correlação de forças no parlamento. Quando se vê que a matéria está ganhando, ninguém quer colocar seu voto contra. “Quando vejo que vai ser todo mundo a favor, acabo votando a favor também, mas eu trabalhei contra o máximo possível”. Tentei tirar de pauta, tentei adiar a discussão, a votação, tentei obstruir. Teve muito voto favorável à Lei Aldir Blanc, à Lei Paulo Gustavo e à Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura de quem trabalhou muito contra. […] Mas acho que a grande questão foi a força da sociedade mesmo. Isso foi também um efeito muito bonito de união, de fortalecimento das instâncias municipais, dos fóruns estaduais e municipais de cultura, de artistas. Você tinha desde uma base… Eu acho que foi um momento de união muito grande também porque a cultura estava muito atacada. […] Isso gerou também uma união das diversidades da cultura, das pluralidades, do grande produtor até o pontinho de cultura. Porque o “vagabundo da cultura” era todo mundo. É algo com recorte de classe, de gênero, de raça, tem pessoas de todos os segmentos culturais afetadas. Mas esse ataque sistêmico do governo Bolsonaro promoveu uma maior união e a mobilização foi muito bonita. O pessoal fazia mapa. Surgiu a Operativa Paulo Gustavo em todos os estados, em todos os municípios. O pessoal fazia mapa de votação, mutirão de ligação. Foi uma coisa incrível. A maioria dos gestores públicos se mobiliza, os governadores e tal. É um case de sucesso, de fato.
Sharine: E como foi feita essa articulação com os estados e municípios para que chegássemos a esse patamar de 98% dos municípios aderindo à Lei Paulo Gustavo e de 100% dos estados?
Thiago: Nós tivemos… Estou desenhando aqui como se fosse um polvo, que tem vários braços, várias ramificações, várias estratégias em paralelo, ao mesmo tempo. Estamos chamando de “tecnologia de mobilização social”. É esse processo, cujo primeiro grande desafio foi quebrar aquele muro invisível, mas extremamente eficiente, que separava o governo da sociedade civil ou o governo federal dos governos estaduais, dos governos municipais. Nós quebramos isso. Então, para conseguir essa adesão, foi fundamental a coordenação do Ministério da Cultura, a atuação da Secretaria dos Comitês, aqui da nossa diretoria, sem dúvida nenhuma. Nós fizemos várias estratégias. Uma delas foi imprimir como se fosse um listão de vestibular, com os nomes de todos os municípios do Brasil. Colocamos na parede. Quem passava tinha que anotar um município. Pegava o telefone, ligava. “Ah, o município onde eu nasci! Canhotinho (PE), da minha avó!” Ia atrás. Fizemos uma mobilização da equipe, de pontos focais por estado, por região, pegar o telefone, mandar e-mail, mensagem, WhatsApp, ir atrás. Teve um lugar aonde fomos e descobrimos que quem mandava lá era a primeira-dama, não era o prefeito. Ligamos para a primeira-dama: “a senhora sabia que seu município está perdendo dinheiro?” Passaram-se duas horas e o secretário municipal ligou. Mas eu acho que foi uma amplitude de fatores. Nós fizemos tudo isso, mas não estávamos sozinhos. Havia esse exército de operativas da Lei Paulo Gustavo em cada estado, em cada município, outros coletivos também. Não foi só a operativa da Paulo Gustavo. Tinha uma rede de gestores já muito articulada, o fórum de gestores estaduais e municipais já muito estabelecido. Nós pegamos essas instâncias que surgiram e se uniram em um contexto de enfrentar os ataques do governo Bolsonaro e nos aproximamos, dissemos: “vamos juntos”. Então é isso. Teve município que disse que não, que o prefeito não queria receber o dinheiro. Assim que assumimos esta gestão, houve muita live, muita reunião, muito seminário, muita audiência pública sobre a Lei Paulo Gustavo. Quando o decreto foi publicado, em maio, já tínhamos feito dezenas e dezenas de mobilizações, o projeto já tinha milhares de pessoas que sabiam do que se tratava, já pré-mobilizadas. Isso foi fundamental, foi o primeiro passo. Segundo: quando foi aberta a plataforma, quando o decreto foi lançado em 11 de maio, o MinC fez uma circulação em 40 dias. Nós fomos, presencialmente, aos 27 estados da federação. Dividimos entre os servidores, que são cinco ou seis. Ia diretor, ia coordenador-geral, ia coordenador, ia chefe de divisão, ia servidor sem cargo. Todo mundo teve que ajudar. Esse evento presencial teve parceria, como sempre, com o governo estadual. Com isso, já dividíamos e chamávamos a responsabilidade para que o governo estadual chamasse os gestores de cultura de todos os municípios. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, deu 100% dos municípios presentes. Em outros, deu 50%, em outros deu 40%, 80%, 90%. Mas você movimentava, olhava no olho, dava o contato. Demos nossos telefones para todo mundo. Dávamos o WhatsApp. Isso dava uma sensação de confiança: “olha, vocês não estarão sozinhos, o MinC voltou, aqui está meu telefone, vamos ajudar na adesão, mas também na execução, também na prestação de contas”. Em paralelo ao Circula, o e-mail começou a ser respondido, começaram os atendimentos. As pessoas ligavam. Foi dando uma segurança para o gestor: “olha, está funcionando”. Vamos aprender aqui. Ficamos muito felizes de notar isso. Recebemos muito feedback: “é a primeira vez que vejo alguém do MinC aqui”. Nesse semestre já fomos duas vezes para Rondônia. Fomos a Ji-Paraná, município que nunca deve ter recebido uma visita do Ministério da Cultura. A Secretária falava: “não sei se algum ministério já rodou os 27 estados, como o MinC”. Isso muda também. Olha: “trezentas mil” lives antes de começar a Lei Paulo Gustavo; teve o evento do lançamento; teve a presença física nos estados; resposta constante de e-mail, atendimento virtual; e mutirão, tecnologia de vídeo porque nos ligavam. São 5.700 municípios. É um absurdo. Mas quando vamos dividindo por estado: “olha, você tem que cuidar de 93 município do Rio de Janeiro”. “Tá, com 93 eu consigo pensar em uma escala: somos eu e mais três. Vamos atrás. Cada um vai fazer dez ou quinze ligações por dia, vai mapear, conta com o governo estadual”. Estamos na reta final. Começaram a sair as nomeações para os escritórios estaduais do MinC. Então, há o ponto focal do MinC. Houve divulgação: “quem vai ser o primeiro estado?” A Ministra Margareth começou a gravar um vídeo em cada estado que abria o escritório. Começou a ter disputa: “também quero o vídeo da Ministra”. É isso.
Sharine: Você acha que tudo isso fortalece o Sistema Nacional de Cultura como foi pensado originalmente ou atualiza sua concepção original? Ou as duas coisas?
Thiago: Os dois. Eu acho que resgata porque passamos seis anos com o Sistema Congelado porque o Governo Federal era anti-sistema. Então, resgatamos isso, ao mesmo tempo com novos desafios. O município ainda não tem um fundo, mas já está recebendo dinheiro federal da cultura. Foi uma dúvida da maioria: “eu não tenho fundo. Posso receber?” Dissemos “pode”. “Eu não tenho conselho”. “Tudo bem, mas vocês terão que criar…” Muitos municípios não tinham conselho, mas tiveram que fazer escuta porque a Lei obriga, agora. Não é uma obrigação futura a ser implementada. Para lançar os editais da Lei Paulo Gustavo, é preciso ter escuta. Então, foi feita audiência pública e viram que há gente atuando na cultura na cidade. Acho que é um resgate enorme do Sistema Nacional de Cultura. Ao mesmo tempo, demanda uma atualização constante: o surgimento de novos atores, a agitação para as conferências. Efetivamente, todos os municípios tiveram que assinar um documento se comprometendo. Houve essa discussão: não era razoável que a adesão ao Sistema Nacional de Cultura fosse um requisito para os municípios receberem o dinheiro da Lei Paulo Gustavo. Era um número muito pequeno. Os dados ainda estão muito desatualizados. Uma das grandes viradas foi dizermos: “vamos batalhar menos pela adesão” [ao Sistema Nacional de Cultura]. Tinha todo o processo da adesão, era aquele negócio: você assinava, imprimia o documento, pegava assinatura, colocava no correio, chegava aqui, pegava outra assinatura, digitalizava, anunciava e tal. Tivemos, nos últimos seis, oito anos, mudanças tecnológicas também. Um dos grandes focos do Ministério da Cultura foi entender: “quem aderir à Paulo Gustavo vai aderir ao Sistema Nacional de Cultura”. Vamos focar na implementação de fato. Não é assinar um papel. Quero ver quais os conselhos estão sendo criados, quantos planos, quantas conferências, quantas secretarias novas. Quando o MinC acabou, vimos um efeito cascata (ainda vou fazer uma pesquisa sobre isso) de queda no número de secretarias de cultura. Agora estamos ouvindo relatos que dizem: “aqui o prefeito vai recriar a secretaria”. Em muitos lugares, o dinheiro da Lei Aldir Blanc, da Lei Paulo Gustavo, é maior que o fundo de participação que o município recebe. Vamos bombar o SNC.
Sharine: Tenho mais três perguntas. Sabemos que esses mecanismos de fomento são importantes, são fundamentais, mas não resolvem a precariedade dos artistas e dos outros profissionais da cultura. Muitas vezes, eles não têm renda fixa, não têm direitos, como aposentadoria, e vivem de projetos. Como você acha que essas políticas públicas também podem melhorar essas condições?
Thiago: Eu acho que é um desafio. Este Ministério tem um olhar para isso. Na SEFIC, há uma diretoria específica [Diretoria de Políticas para os Trabalhadores da Cultura]. É o Deryk Vieira Santana que está à frente. Ela vê os trabalhadores da cultura, de fato, como trabalhadores, como classe trabalhadora. Às vezes, vemos: “com oitenta anos no palco, que coisa linda!” É óbvio que é bonito de ver, mas às vezes é a romantização da precarização. Ela precisa trabalhar porque, senão, não se aposenta. Isso passa por uma articulação governamental, até de reconhecimento dessa “galera”, até mesmo do MEI [Micro Empresa Individual]. Tem uma “porrada” de situações concretas, na arte, que você não consegue pagar. Isso requer uma atenção sistêmica. Tem que ser uma pauta do Governo Federal, como um todo. É óbvio que, com a possibilidade de ter políticas de fomento direto, você pode criar condições para estruturar as cadeias produtivas, principalmente com a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. A Lei Paulo Gustavo é emergencial. Mas eu, ali, que sou empreendedor da cultura, penso: “Será que vale a pena fazer um estúdio na cidade?” Digo: “não, é uma vez só”. “Mas, olha, todos os municípios do agreste pernambucano vão receber esse dinheiro por cinco anos”. Aí começa: “Vou me dedicar a isso mesmo, vou abrir um estúdio de gravação, vou trazer equipamentos…” Eu concordo com você: as leis não resolvem, mas podem ser o pontapé, o empurrão estratégico para estruturação de cadeias produtivas locais, econômicas, que dialoguem, que se fortaleçam. Faltam elementos para eu entrar em detalhes, numéricos. Mas políticas de carreiras, de aposentadoria, de reconhecimento de direitos, de políticas trabalhistas, de organização. Fala-se muito do aplicativo do Uber, mas esse processo de uberização está ocorrendo em inúmeras condições e ainda vem o negócio de inteligência artificial para tornar tudo mais complexo. Então, as leis não resolvem a precariedade desses profissionais, mas dão um socorro emergencial e, mais do que isso, se bem pactuadas, se bem estruturadas, podem ser uma mola impulsionadora de estruturação de cadeias.
Sharine: Para além dos artistas, desses outros profissionais da cultura, como envolver parcelas maiores da sociedade? Vemos, por exemplo, ataques à Lei Rouanet… Muito disso parte do desconhecimento, não é? Como criar público, como fazer esse tipo de mediação?
Thiago: Mais uma vez, não depositando todas as fichas nessas leis, eu acho que elas têm um potencial para fazer com que dinheiro de cultura chegue aonde nunca chegou. Sempre falamos: “o dinheiro da cultura são 100 mil reais para a peça de teatro, olha que absurdo!”. Mas, quando vamos ver, são dez apresentações, cinco atores para dividir. Mais do que isso: teve a costureira, teve o cara da luz, da iluminação, o bilheteiro, o pipoqueiro, todo mundo que foi andando e deixou a cidade mais segura, foi de Uber, foi de táxi, saiu para tomar uma cerveja, para comer uma pipoca depois. Tudo isso movimenta. Só que isso era pouco visualizado por muita gente. Nas grandes capitais, há política, tudo isso. Mas agora estamos falando em um município de cinco mil habitantes, de vinte mil, que vai começar a ter dinheiro para um projeto em um colégio para formar público, para uma oficina, para um showzinho na praça, que vai começar a ser visualizado. O “tiozinho” do bar, da padaria, vai pensar: “toda vez que tem show aqui na praça…”. Tudo isso vai chegar, vai poder ser visualizado também na ponta. Tudo isso passa também por um processo de comunicação, de disputa ideológica da sociedade, de cultura mesmo. A criminalização da cultura foi sistêmica, era uma diretriz. A própria Lei Rouanet agora mudou de logo. Vai ter lá o nome “Lei Rouanet”. Porque era “Lei de Incentivo à Cultura”. Um bocado de gente foi ver apresentações de uma orquestra e não sabia que aquilo era Lei Rouanet. Passa por um processo de fortalecimento da democracia. A Ministra Carmen Lúcia falou dessa relação entre democracia e cultura. “Cultura e democracia” é o tema da Conferência Nacional. Acho que são conceitos que estão muito interligados. Um fortalece o outro.
Sharine: Obrigada! Para terminarmos: o que você acha que seria uma política cultural ideal para o Brasil? O que você imagina?
Thiago: Não tem como responder [risos]. Não tem receita de bolo. Eu acho que a política de cultura ideal para o Brasil de cinco anos atrás é totalmente diferente da política de dez anos atrás, que é diferente da de hoje, que é diferente da de amanhã, provavelmente. Eu acho que a política para 2023 tem muito esse sentido de retomada, de reconstrução, de repactuação, de investimento, de descentralização. Eu acho que esse tripé: estados, municípios, governo federal, com obrigatoriedade de sociedade civil participando do funcionamento na prática do SNC, é o caminho. É por aí. É experimentando, é criando políticas integradas, pactuadas, é errando, é consertando, calibrando. A premissa é essa: não fazer sozinho. Não existe a pessoa iluminada, sozinho não dá certo, não funciona. É quebrar esse muro invisível entre o governo federal e governos estaduais e municipais; entre governo e sociedade civil; entre governo e academia – existe esse muro também. É óbvio, dentro dos parâmetros. Não é “oba-oba” […] São programas, mas de uma perspectiva compartilhada.
Sharine: Muito obrigada, Thiago!